quinta-feira, 20 de maio de 2010

Luc Ferry - entrevista

Ferry, a família e a filosofia

Luc Ferry em Porto Alegre em 2007 - Foto: Carlos Rodrigues

A editora executiva do Segundo Caderno e colunista de Zero Hora, Cláudia Laitano, entrevistou, via e-mail, o intelectual francês Luc Ferry, ex-ministro da Educação na França e professor de filosofia tido como um dos grandes responsáveis pela “onda pop” da disciplina nos últimos anos. Com livros que unem rigor e didatismo mas não se furtam de falar também para o leitor leigo sem formação filosófica profissional, Ferry tornou-se um filósofo de amplas vendas com o conjunto formado pelos livros Aprender a Viver e A Sabedoria dos Mitos Gregos. Ferry é um militante da ideia de que a filosofia precisa lutar para recuperar seu espaço na vida intelectual da gente comum, e que deve ser uma fonte de questionamentos espirituais e de ação concreta. Em suma, que deve ser, como o foi na Antiguidade, a ciência da vida boa. Ou, nas palavras da apresentação da entrevista feita por Cláudia, também chamada de “a chefe”: “Falar de filosofia, acredita Ferry, é tratar dos temas cotidianos da existência humana: o outro, o amor, a morte, a felicidade, a dor, a transcendentalidade.”

Essa urgência da filosofia de voltar ao âmago da vida política e social levou Ferry a agir politicamente como ministro da Educação na França. Durante sua gestão, assinou a polêmica disposição proibindo aos alunos da rede pública o uso de símbolos religiosos (incluindo aí crucifixos cristãos, o véu islâmico e a estrela de David judaica”. Em 2007, quando esteve em Porto Alegre como o convidado inaugural da primeira conferência do primeira edição do Fronteiras do Pensamento, Ferry foi questionado pela plateia a respeito da decisão, controversa por ser tomada pela França berço do pensamento liberal iluminista. Respondeu: “É preciso avaliar o contexto. A França tem a maior comunidade islâmica da Europa e a terceira maior comunidade judaica do mundo, atrás apenas de Israel e Estados Unidos. O que aconteceu no início dos anos 2000, à época da aprovação da lei, foi um recrudescimento do conflito árabe-israelense. Pequenos judeus e magrebinos estavam usando símbolos como se fossem armas em um conflito ideológico. O objetivo daquela lei foi impedir a guerra de se introduzir no ambiente escolar.“



Três anos depois, Ferry estará de volta a Porto Alegre amanhã, como como um dos convidados do 6º Fórum Político Unimed/RS, que se realiza das 9h às 17h30min, no BarraShoppingSul (Diário de Notícias, 300) – e para antecipar um pouco dos temas que o filósofo deve abordar em sua palestra, Cláudia Laiano fez a entrevista abaixo – que, infelizmente, não coube toda no espaço restrito da página de jornal, mas que pode ser lida na íntegra aqui no blog. Uma entrevista na qual Ferry discorre sobre a filosofia hoje, o papel da família no mundo contemporâneo, o declínio das vanguardas e uma pá de outros temas. Divirtam-se:

Zero Hora — Há um “novo ateísmo” defendido por autores célebres como Richard Dawkins, Christopher Hitchens e o senhor mesmo? Nossa época é mais receptiva a esse tipo de reflexão?
Luc Ferry — Eu sou descrente, agnóstico, mas o ateísmo militante sempre me pareceu absurdo. Primeiro, porque respeito as religiões, mas também porque não se pode evidentemente demonstrar a inexistência de Deus mais do que sua existência.

ZH — A polêmica sobre a proibição da burca está viva na França e na Bélgica. Não é o caso da Grã-Bretanha, um país com muitos imigrantes. O senhor tem uma explicação para esse fenômeno?
Ferry — Francamente, a burca é um horror, e todas as mulheres livres no mundo árabe suplicam literalmente aos ocidentais que não deixem o islamismo radical mais fanático se desenvolver. Eu respeito profundamente a religião muçulmana, mas a burca não é um signo religioso. É uma postura política agressiva. A Grã-Bretanha se deixa de quando em quando devorar pelo fanatismo em nome de uma lógica de tolerância de guetos que considero detestável. É um pouco como os guetos negros americanos, que não deram nada de bom e mesmo levaram à catástrofe. Eu creio que meus amigos ingleses acabarão pagando muito caro por isso…

ZH — O senhor escreveu sobre a importância da redescoberta da filosofia pelos jovens na série Aprender a Viver. Mas há muitos leitores mais velhos que compram e leem essas obras. O que é mais difícil: a conquista de novos leitores para a filosofia ou o convívio com a crítica de colegas que temem uma suposta banalização dos conceitos filosóficos?
Ferry — O que ocorreu foi que vimos na arte como na literatura e na filosofia o fim das vanguardas. Por definição, os autores de vanguarda não se dirigiam ao povo, à massa, mas sempre a uma elite. Eles estavam “à frente”, eles eram os guias geniais, como Stalin ou Kim il Sung. Hoje, todos os filósofos e escritores de minha geração se reconciliaram com a democracia, como antes de nós haviam feito os maiores. Sejam de esquerda ou de direita, se dirigem a todos e escrevem claramente. Nos reencontramos com o ideal democrático. Lembro que Rousseau, Voltaire ou Sartre eram lidos pelo povo, como Kundera, Philip Roth ou García Márquez hoje. Derrida é um total desconhecido assim que você deixa o solo das universidades americanas. Jamais encontrei um não-universitário que tenha lido Derrida. Essa época vanguardista, que não construiu nada de bom ou grandioso, ficou para trás. Por outro lado, devo lhe dizer que sou professor universitário há 30 anos, dei aulas em todos os níveis, orientei teses de doutorado ao longo dos anos e nunca tive a menor crítica de meus colegas sobre a questão da popularização da filosofia porque mais de 3 mil entre eles utilizam meu livro em suas aulas! Passei em torno de 20 anos de minha vida traduzindo, editando e comentando os maiores filósofos alemães, Kant, Fichte, Schelling, Hegel, Adorno, Horkheimer, Cassirer e outros mais. Não sou um desses intelectuais midiáticos que vivem à margem da universidade e que não conhecem seus clássicos. Na verdade, meu livro não se dirige especialmente às crianças. É uma forma de dizer, um artifício literário, um procedimento retórico que usei para me forçar a contar a história da filosofia e explicar os conceitos mais difíceis de maneira simples.

ZH — No livro Famílias, Amo Vocês, o senhor escreveu que a família, as crianças em particular, tomou o lugar da religião e das ideologias na vida espiritual do homem moderno. Quais serão as consequências desse fenômeno num país como o Brasil, onde não existe uma tradição republicana sólida? Esse “retorno ao lar” pode ser contraditório com a construção de uma sociedade mais justa?
Ferry — É preciso saber que, na Idade Média, não se casava jamais por amor. Pode-se dizer que houve, desde o Antigo Regime, três idades da família. Na Idade Média, como os historiadores das mentalidades nos mostraram, não se casava jamais por amor. O objetivo do casamento era sobretudo a transmissão do nome, do patrimônio, mas também a necessidade econômica: se trata de fabricar os braços para fazer viver o negócio. Isso não se discute mais. O nascimento do trabalho assalariado vai subverter essa situação porque vai levar a emancipar os indivíduos do peso das comunidades tradicionais e por uma razão simples: o mercado de trabalho que nasce com o capitalismo constrange os indivíduos à ir trabalhar nas cidades. De um só golpe, eles se libertam das formas tradicionais de controle social e, ao mesmo tempo, eles adquirem, graças ao salário, precisamente, uma autonomia financeira. O que os levará a querer não se casar mais à força, mas por escolha, e portanto, se possível, por afinidade eletiva, ou seja, por amor. É o nascimento do casamento por amor. Mas antes desse último se tornar a regra para todas as uniões (ou quase), como é o caso de hoje, há uma época intermediária, a da família burguesa, que mistura o casamento arranjado e o casamento sentimental em proporções variadas. Bem entendido, há um ponto fraco: nas grandes cidades europeias, pode-se dizer que cerca de 50% dos casamentos terminam em divórcio — a vitória do casamento por amor é também a do divórcio! Com efeito, se se casa exclusivamente por razões sentimentais, o amor dá lugar ao ódio, que, como sabemos, uma vez presente, não deixa motivo para se permanecer juntos e ocorrem as separações. O problema, certamente, são as crianças, que vivem frequentemente mal essa situação. Ou seja, é preciso evitar idealizar as épocas onde as pessoas se divorciavam menos. Na família burguesa do início do século passado, certamente, ninguém se separava: isso não se fazia em um meio decente! Mas o preço a pagar era muito pesado, notadamente para as mulheres que sacrificavam com frequência sua vida profissional, e muito rapidamente, sua vida privada, a um marido que lhes passava para trás alegremente. Hoje, as pessoas se divorciam e se separam, mas, paradoxalmente, se ocupam por vezes mais e melhor das crianças por meio de um “divórcio seguro” do que por um casamento falido, minado pelas mentiras, as hipocrisias e os segredos de família…

ZH — O que a filosofia pode ensinar aos jovens que usam antidepressivos?
Ferry — Nossas sociedades, pelo menos na Europa, têm os direitos do homem e o mercado, ou seja, o respeito ao outro e à riqueza. Em sentido contrário, elas carecem de espiritualidade, elas são desprovidas de sentido e é isso que empurra os jovens em direção à droga ou às seitas. Para compreender bem isso, é preciso evitar uma confusão que, por ser muito frequente, sacrifica de saída toda compreensão da noção de espiritualidade laica: é, de fato, indispensável distinguir claramente dois tipos de valores, os valores morais de um lado e os valores espirituais, de outro. Nada é mais prejudicial ao entendimento da filosofia, mas sobretudo da realidade humana, do que misturar essas duas esferas claramente distintas. Constantemente, a confusão se instala entre elas, não somente no interior do debate público e político, mas por vezes também na literatura filosófica onde o termo vago e geral “ética”, empregado a torto e a direito, vem borrar permanentemente as fronteiras. As coisas são, porém, muito simples. A moral, em qualquer sentido que a entendamos e qualquer que seja sua doutrina de referência, é, em primeiro lugar e antes de mais nada, o respeito ao outro, a quem é preciso dar as boas-vindas, a generosidade e mesmo, usemos a palavra, a bondade. Pode-se com certeza consagrar, se for o caso, um seminário universitário de um ano a essa definição de moral, mas pode-se também dizer as coisas simplesmente: eu me conduzo moralmente com meus vizinhos e próximos quando os respeito e os ajude, quando lhes reconheço um direito imprescritível a pensar diferentemente de mim e que, mesmo nessa hipótese, faço o que posso para que lhe tornar a vida mais doce e mais fácil. Para nós, europeus de hoje, a moral comum tomou essencialmente a forma de uma declaração, a dos direitos do homem, à qual é bom acrescentar, como tenho sugerido, a vontade de fazer o bem, de ajudar ativamente os outros _ aquilo que se chama, na acepção correta, a benfeitoria. A organização humanitária Irmã Emmanuelle, os direitos do homem e a bondade, o respeito ao outro e a generosidade, a moral comum da qual comungam hoje a maior parte de nossos concidadãos.

ZH — Desse ponto de vista, qual é a fronteira entre moral, religião e filosofia?
Ferry — Sonhemos um pouco e imaginemos um instante, pelo prazer da reflexão, que dispomos de um bastão mágico que nos permitiria fazer, de um só golpe, todos os seres humanos deste mundo se conduzirem de maneira perfeitamente moral em relação ao outro. Não haveria mais neste planeta nem massacres nem violações, nem roubos nem mortes, nem injustiças, nem guerras, nem genocídios. No limite, as nações não teriam mais necessidade de exército, de polícia, de prisões nem de sistema judiciário repressivo. Isso seria simplesmente uma revolução. Porém, e aí aparece em plena luz a diferença entre valores morais e valores espirituais, isso não nos impediria nem de envelhecer, nem de morrer, nem de perder um ente querido, de experimentar a dor de um ser amado, nem mesmo de ser infelizes no amor, estar enamorados de quem não nos ama, de sofrer um acidente ou, simplesmente, de nos aborrecer no curso de uma vida cotidiana engolida pela banalidade. Quem nunca sonhou com outra existência? Ou pensou alguma vez, como Rimbaud, que a “verdadeira vida está lá fora”? Quem jamais se cansou de acordar cada manhã com o mesmo homem ou a mesma mulher na mesma cama, com o mesmo trabalho, os mesmos narizes das mesmas pessoas ao redor de si? A lógica do amor e a da moral são coisas muito diferentes. A literatura é cheia de histórias sentimentais que terminam mal porque as pessoas corretas moralmente não são amadas por aqueles pelos quais se enamoram. De resto, nós poderíamos nos conduzir como santos, viver na generosidade, o respeito e a bondade mais admiráveis que existam, aplicar os princípios da moral mais sublime da maneira mais perfeita que isso não mudaria nada: não apenas o amor não é questão de razão nem de ética, mas também perdemos aqueles que amamos, não escapamos do sofrimento, da doença, da banalidade e do tédio. Quem ousará imaginar que esses diferentes temas existenciais não são investidos de valores, e mesmo de valores mais poderosos e mais preocupantes que os valores morais? Você pode viver como um santo ou uma santa, respeitar e ajudar os outros, aplicar os direitos do homem como pessoa… e envelhecer, e morrer, e sofrer. Porque essas realidades, como disse Pascal, são de outra ordem, que releva bem a que a filosofia tem, de fato, pela “vida do espírito”, e que chamo aqui, com fidelidade à tradição, as “espiritualidades”, que vão além da moral, mas não se confundem com as religiões. Mesmo que os valores espirituais não se reduzam em nada aos valores morais, deve-se compreender que existem dois tipos muitos diferentes de espiritualidades. Um deles trata de Deus, e são as religiões, e os outros não, e são as grandes filosofias. Para dizer as coisas da forma mais simples possível, as espiritualidades religiosas tentam definir a boa vida, a vida feliz como diz Santo Agostinho, em referência a um deus. Daí vem a ênfase que elas colocam em geral sobre as virtudes de certa humildade em nome da qual se remete ao Ser Supremo para o que é saudável. As grandes filosofias, ao contrário, culminam sempre numa tentativa de propor uma resposta laica à questão da vida boa, por uma operação de sabedoria que não passa nem por um deus nem pela fé, mas pelos meios laterais, aceitando a condição de mortal, e pela simples ludicidade da razão. Os teólogos não falham jamais, desde o início dos tempos, em denunciar a fatuidade da filosofia, de acusá-la a todo momento de pecar por orgulho à maneira de Santo Agostinho, chamando “Vós, os soberbos” aos filósofos neoplatonianos que tanto gostaria de convencer a aderir a sua fé.

ZH — A filosofia tem cumprido o seu papel no mundo contemporâneo?
Ferry — Uma das grandes falhas intelectuais do período contemporâneo é que, sob efeito do fortalecimento das ciências humanas e do pensamento do inconsciente, a filosofia cedeu muito frequentemente à tendência de desertar das interrogações sobre a sabedoria e a vida boa, a deixar, sendo resolutamente laica, o terreno das espiritualidades às religiões. De repente, a filosofia se reduziu na maior parte do tempo a ser a crítica da tradição, a ser a desconstrução, genealogia ou arqueologia dos sistemas de pensamento anteriores. E quando quis ser mais positiva, limitou-se no essencial a uma reflexão sobre a esfera moral e política, como se vê, por exemplo, em autores, de resto muito respeitáveis, como Rawls e Habermas. Essa redução da filosofia a uma simples moral foi acompanhada por vezes do que se chama uma epistemologia, uma reflexão sobre o conhecimento tocante às ciências duras (Popper é um bom exemplo) em relação às ciências humanas (Habermas é outro). Mas, em todo caso, desertou-se do essencial da filosofia, que fazia seu nome e seu objetivo: a sabedoria, essa aprendizagem da vida boa sem a qual a noção mesma de filosofia não teria nenhum sentido nem a menor razão de ser.
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Fonte: ZH online, 20/05/2010
http://wp.clicrbs.com.br/mundolivro/2010/05/20/ferry-a-familia-e-a-filosofia/  

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