Rubem Alves*
Disse Álvaro de Campos que “a vida é uma grande feira e tudo são barracas e saltimbancos...” Disse certo porque a feira e os saltimbancos já estão armados: futebol, o grande circo que faz parar tudo, até os bancos... Não há nenhum outro esporte que provoque tanta paixão, tanta alegria, tanta tristeza. O futebol dá sentido à vida de milhões de pessoas que, de outra forma, estariam condenadas ao tédio. É remédio para a depressão. É o assunto nas manhãs de segunda-feira em bares, escritórios, fábricas, táxis, construções, possivelmente confessionários, pelos pecados que a paixão faz cometer... O futebol é a bola que se rola no jogo das conversas. O futebol faz esquecer lealdades políticas, ideológicas, religiosas, econômicas, raciais. É a grande religião ecumênica. Acabam as diferenças. Todos são iguais, são torcedores de futebol. No mundo inteiro.
Nesse circo, eu sou o palhaço. Os palhaços são aqueles que transformam as coisas sérias em coisas engraçadas. Em tempos antigos, quando os reis se reuniam com seus ministros graves e sérios, havia a ministro do riso, chamado bobo da corte. O bobo da corte tinha direitos que nenhum dos ministros sérios tinha. Ele tinha permissão para fazer piadas do próprio rei. Conta-se que numa grave reunião dos ministros de um reino o rei se embaralhou dando explicações esfarrapadas para uma pequena corrupção de seu filho caçula. Reis e presidentes estão sempre a fazer besteiras e a dar explicações esfarrapadas. Todos os ministros concordavam graves e sérios, com medo de serem demitidos. Menos o bobo que interrompeu a arenga do rei e disse: “Majestade, há explicações que são piores que uma ofensa”. O rei ficou danado. “O senhor tem até o fim do dia para explicar-se, sob pena de passar uma semana no calabouço...” O bobo deu uma risadinha e saiu da sala. Ao fim do dia, terminada a reunião, o rei se dirigia sozinho para os seus aposentos mergulhado em seus pensamentos, caminhando por corredores desertos, cheios de colunas. Atrás de uma dessas colunas o bobo estava à espera de sua caça. Quando o rei passou ele saiu detrás da coluna que o escondia e agarrou com força as nádegas murchas do rei. O rei deu um berro enfurecido e o bobo disse: “Perdão Majestade, eu pensei que fosse a rainha...”
Por vezes há mais sabedoria no traseiro que na cabeça. Pelo menos é isso que pensa a psicanálise. Um psicanalista é uma pessoa que não acredita na cara. O que lhe interessa são as partes escondidas, vergonhosas. O rei, ao sentir seu traseiro apertado pelo bobo teve uma experiência espiritual, Zen: ficou iluminado.
Contaram-me, não sei se é verdade. O atacante burlou toda a defesa e avançava veloz para fazer o gol. O goleiro, vendo o gol certo, tratou de antecipar-se. Não esperou. Avançou para o atacante para fechar o ângulo. Aconteceu, entretanto, que a bola rolou mais veloz que o atacante. O goleiro chegou à bola e se preparou para o chute que a mandaria para o meio do campo. O atacante, temeroso de que a bola o atingisse em suas partes sensíveis, virou de costas para o goleiro e abaixou-se para proteger a cabeça. O goleiro chutou. Pois não é que a bola bateu no traseiro do atacante, tabelou, voltou, passou pelo goleiro e entrou no gol? Essa é uma preciosa lição de política: com o traseiro também se fazem gols...
Assim eu faço. Agarro o futebol pelo traseiro e faço meus gols... O futebol não merece ser levado tão a sério. Ele deve ser levado a riso. (O Futebol Levado a Riso, Editora Verus).
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*Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
Fonte: Correio Popular online, 30/05/2010
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