Denis Lerrer Rosenfield*
A liberdade é conquistada a duras penas. Sua perda pode ser relativamente rápida, mesmo imperceptível. Lutas políticas e civis se estruturam segundo suas diferentes acepções, que terminam por ser bandeiras que, com dificuldades, são levadas adiante. Frequentemente essas diferentes acepções são objeto de disputas acirradas, podendo até mesmo perverter a essência mesma do que seja a liberdade.
A liberdade é dita diferentemente segundo os interlocutores, os contextos e as definições. A rigor, caberia falar de liberdades, nas quais entram em linha de consideração a liberdade de empreender, a liberdade de escolha, a liberdade de pensamento e expressão, a liberdade da pesquisa científica, a liberdade de ir e vir, a liberdade de organização sindical e política, a liberdade religiosa e a liberdade de escolha dos dirigentes e representantes políticos.
A questão, porém, reside em que pode ocorrer um sequestro progressivo de certas acepções, outras permanecendo aparentemente intactas, até que outro sequestro reduza ainda mais o seu espectro. Tomemos a liberdade de imprensa e de expressão. O Estadão, pasmem, continua sob censura, configurando uma situação "normal", como se essa "anormalidade" fosse minimamente aceitável. O governo recuou, diante da pressão dos meios de comunicação, das medidas mais liberticidas de seu Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) em relação à imprensa e à mídia em geral. Para esse setor empresarial, as coisas aparentemente voltaram ao normal.
O problema, contudo, consiste em que se trata de uma simples aparência, pois sob a cobertura eufemística de "direitos humanos" outras medidas atentatórias às liberdades continuam constando em seus outros 500 itens e propostas. Pense-se, por exemplo, nos ditos "conselhos ambientais", que deveriam ser necessariamente consultados para a criação e ampliação de uma empresa em geral ? siderúrgica, de construção, de mineração, entre outras. Trata-se, sob a cobertura do politicamente correto, de propor a criação de "conselhos sindicais", "sovietes", para utilizar a linguagem russa, que passariam a ter ingerência na vida mesma das empresas, cerceando a liberdade de empreender.
A confusão de acepções chega a ser de tal monta que o próprio sentido da democracia é deturpado em função de um linguajar baseado numa doutrina "superior" dos direitos humanos. Assim, a democracia representativa se torna a bola da vez, com propostas de sua substituição progressiva pela democracia dita participativa. A linguagem utilizada é a da busca de uma sociedade mais justa e solidária. No entanto, quando vem à tona o significado dessas novas palavras, surgem as verdadeiras definições, como se a verdadeira sociedade justa e solidária fosse a que nasceria da destruição do capitalismo, definido como fonte de todos os males. Mais concretamente, a sociedade "justa e solidária" vem a ser identificada às propostas comunistas e socialistas dos irmãos Castro e de Hugo Chávez. Este último chegou até a ser defendido por nossos governantes como um verdadeiro democrata. Liberticidas são apresentados como libertários.
Há, também, toda uma campanha em curso que defende maior ingerência do Estado na vida dos cidadãos, cerceando a sua liberdade de escolha. Aqui, o sequestro da liberdade é dito ser feito em nome da saúde do cidadão, como se este fosse incapaz de discriminar por si mesmo aquilo que lhe convém ou não. O prazer, em particular, faz parte da escolha individual, não devendo o Estado ingerir num domínio que deveria estar ao abrigo de qualquer intervenção externa. O ato de regular os direitos individuais a partir dos direitos dos outros não pode ser confundido com uma ação administrativa estatal que se apresenta como a representação da virtude. O que não cabe é o indivíduo simplesmente receber uma imposição, dita do "bem", do que lhe deveria convir. A própria noção de prazer ? isso cada um sabe de sua própria experiência de vida ? tem os mais diferentes significados, podendo estar associada também à dor. Já Freud tinha concebido a indissociabilidade entre as pulsões de vida e morte. Cada um tem o direito de escolha de seu próprio corpo, de suas formas de expressão e de satisfação.
A liberdade de expressão e de empreender é vista igualmente com desconfiança a propósito da publicidade, como se essa atividade devesse ser cada vez mais controlada, retirando de sua alçada uma série de produtos considerados como "nocivos". Segundo essa concepção, o Estado é que determinaria o que seria tido por nocivo ou não para os cidadãos. A questão é de monta por estar baseada na confusão entre "influenciar" e "determinar". A rigor, a publicidade "influencia" o cidadão, não retirando deste sua capacidade de livre escolha. Ao contrário, ela a pressupõe. Posso comprar ou não um produto que me é apresentado publicitariamente. Daí não se segue que o cidadão seja completamente determinado, como se fosse um robô manipulável, desprovido de livre-arbítrio.
Causa espanto, também, que propostas ditas inovadoras de um "Brasil do século 21" estejam baseadas em posições retrógradas, avessas à liberdade de conhecimento e de pesquisa. Fala-se um pouco menos, neste período eleitoral, dos enormes problemas enfrentados pela CTNBio a propósito da pesquisa com transgênicos e da liberalização de sua comercialização. Até ainda recentemente, o dito "princípio da precaução" era identificado com o "princípio do imobilismo", na verdade, o princípio de restrição da própria pesquisa científica.
A liberdade de pesquisa foi conquistada após longos esforços, que perpassaram vários séculos, tornando as universidades lugares de realização das liberdades. Algumas ditas "novidades" são, agora, apresentadas como se estivéssemos diante de uma nova postura ante o mundo, quando são propostas de volta a um mundo anterior à conquista dessas liberdades.
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*PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS. E-MAIL: DENISROSENFIELD@TERRA.COM.BR http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20100524/not_imp555809,0.php
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