Em Istambul, com Pamuk
RESUMO Prêmio Nobel de Literatura e expoente da ficção turca, Orhan Pamuk fala com exclusividade à Folha em Istambul sobre a relação intensa que mantém com a cidade onde nasceu e que constitui um dos focos da sua obra. Avalia a censura, comenta a influência de clássicos do século 20 e revela a impressão que teve ao ler Machado de Assis.
ÀQUELES QUE BUSCAM O EXÓTICO EM SUA CIDADE -"alegria, sorvetes e muita cor" -, Orhan Pamuk, 57, responde irritado: "Essa não é a minha Istambul!".
De fato. Sua Istambul é feita de gente simples que caminha apressada por ruas estreitas e úmidas pela neve, sob o cheiro dos pãezinhos redondos de gergelim vendidos nas esquinas. No entanto, ele é o homem que recolocou no mapa do século 21 a outrora resplandecente capital do Império Otomano.
Fala da cidade com amor e compreensão. "Quero colocar uma distância entre mim e ela, sem fazer generalizações", explica o Nobel de Literatura de 2006, que recebeu a Folha em seu apartamento no badalado bairro de Cihangir. Na janela, a deslumbrante vista do estreito de Bósforo -"o coração coletivo" que divide a cidade entre Ásia e Europa. Pamuk é o Balzac de Istambul.
De timbre anasalado, sotaque marcante, discorre quase sem parar sobre perseguição política -"não sofro censura porque sou famoso"-, sobre a natureza do romance -"é a arte de esconder o centro"- e explica por que não escreve contos -"sou digressivo".
Revê também a contribuição de clássicos da intelligentsia do século 20, como Walter Benjamin, Erich Auerbach, Edward Said e Claude Lévi-Strauss.
Com este ultimo, partilha a sensação de sentir-se "à margem". A melancólica Istambul de Pamuk, de becos e vielas, só faz sentido se for imersa no fluxo de sensações e sentimentos de seus primeiros anos.Pamuk é o Proust dos pobres.
Folha - Hoje é quase um clichê destacar a divisão da cidade entre Oriente e Ocidente, não importa o aspecto que levemos em conta -história, cultura, religião etc. O que significa ser um morador de Istambul hoje, sob o peso dessa tradição?
Orhan Pamuk - Não olho para a cidade desse modo. Vou deixar clara minha posição: escrevo sobre Istambul não porque tenha um programa a apresentar sobre ela, mas porque vivi aqui toda a minha vida! Moro neste apartamento há 18 anos. Na verdade, minha motivação é escrever histórias sobre seres humanos.
Não quero ser autoconsciente demais sobre a cidade. Se alguém disser que a Istambul de meus livros pode ser exemplo disso ou daquilo, não foi o que quis dizer.
O fato de a cidade ser dividida entre um lado asiático e um europeu lhe diz alguma coisa?
Para alguém daqui, não há distinção entre partes europeia e asiática. Um nova-iorquino não diz que está indo ao Brooklin, assim como um morador de Istambul não diz que está indo para a Ásia.
Censura é um problema para os escritores turcos?
Na literatura, censura não é tão importante. Não esqueça que Dostoiévski escreveu todos os seus maravilhosos romances sob a censura do czar. Então, literatura não sofre censura? Sim, sofre, em assuntos como religião.
Veja, não estou dizendo que não haja censuras ou que o governo não faça pressão sobre certos assuntos tabus, como as minorias ou a limpeza étnica.
Hoje, ao menos podemos falar sobre os curdos, mas, dez anos atrás, isso era difícil. O próprio governo percebeu que o único modo de lidar com isso é por meio da livre expressão, embora o histórico de livre expressão na Turquia seja horrível.
Contudo, a maior parte da pressão é sobre os jornalistas e as pessoas que não são representadas por organizações como, por exemplo, a Pen International. Esses, sim, sofrem, pois ninguém sabe nada deles.
Em obras como "O Livro Negro", o sr. mostra grande fascínio pelo registro da vida cotidiana de Istambul. Qual a relação de sua obra com as crônicas de jornal e o romance de folhetim?
As páginas de folhetim, especialmente do final do século 19, produzem, ao mesmo tempo, o desenvolvimento da arte do romance e também o da nação burguesa, a invenção de seus caracteres e identidades nacionais e das artes -como pintura ou literatura. Tudo isso está (estreitamente) relacionado ao folhetim.
Os romances de folhetim foram muitos influentes na invenção da identidade nacional, sinais e símbolos da nação.
Esse é o caso da Turquia, onde o modernismo ocorreu tardiamente, após a queda do Império [Otomano]. Em "Istambul" [Cia. das Letras], por exemplo, traço o desenvolvimento não da identidade turca, mas de algumas características da cidade. É o caso da melancolia ou das ruas pobres e escuras. Isso foi criação do folhetim.
E o sr. também identifica essa influência em seus livros?
[Levanta-se da mesa e pega um antigo folhetim sobre Istambul] Venho de uma família de classe média alta que adorava jornais, e também sempre gostei de lê-los. Costumava visitar minha avó materna, que vivia numa casa enorme. Era uma pessoa estranha, que nunca jogava os jornais no lixo e, quando eu ia lá com minha mãe, costumava ler boa parte deles.
Em lugares não particularmente ricos e onde a modernidade chegou tarde, os jornais foram muito importantes.
Sua descrição de Istambul -como um lugar "precário", marcado pela "falta de pureza"- evoca a descrição que Lévi- Strauss fez de São Paulo em "Tristes Trópicos".
Faço menção direta ao livro em "Istambul". É um modo de abordagem de estilo cultural, que evoca o sentimento de se sentir à margem das civilizações ocidentais, ser feliz com a autoconsciência de estar à margem, com uma percepção diferente do tempo, da razão na história, da fatalidade.
Mas "Tristes Tópicos" é um livro extremamente literário, mais do que uma obra de antropologia. Gosto muito dele.
É curioso o seu comentário, porque a antropologia anglo-americana, em especial Clifford Geertz, ataca "Tristes Trópicos" justamente por ser literário demais...
Certo dia, disse à minha filha, que chegou a estudar antropologia na Universidade Columbia [EUA], que não há nenhum futuro para a antropologia. Todos os antropólogos serão politicamente incorretos. Não importa o que faça, as pessoas sobre as quais você teceu julgamentos poderão dizer, 50 anos mais tarde: "Não, não é assim, eu não sou assim, mas, sim, deste jeito!". [risos] E aí você encontra o sentido do "politicamente incorreto".
O sr. fala de Istambul como uma cidade desprovida de centro e parece tentar transferir essa característica topográfica para a estrutura de seus romances.
Dei um curso na Universidade Harvard no último outono em que defendi que a arte do romance é, essencialmente, contar uma história e esconder seu centro.
Romances são estruturas com centros sugeridos. Se o centro é verdadeiro ou falso, depende do romance -como, por exemplo, a história de detetives, cujo centro é a morte. Ou o centro é ambíguo demais, como em "Finnegans Wake" [de James Joyce]. Escrever novelas é desenvolver um centro, mas sem torná-lo óbvio demais nem escondê-lo demais.
É inventar, descobrir, seguir as pistas que levam a esse centro. Dou como exemplo a leitura que [Jorge Luis] Borges faz de "Moby Dick" [de Herman Melville]. Primeiramente, pensou que fosse um romance social sobre pescadores, depois, sobre a loucura do capitão Ahab, e acabou vendo nele um sentido cósmico.
Por que nunca escreveu contos?
Boa pergunta. Eu sempre disse duas coisas a mim mesmo: quero escrever -e contos, novelas curtas. Mas sou dono de um temperamento artístico que acrescenta, acrescenta, acrescenta e sobrecarrega as coisas. Não sei a razão, mas é desse jeito que sou.
Contos, assim como poesia, dependem demais da epifania, isto é, de inspiração.
Já eu sou um paciente corredor de longa distância.
Essa sua tendência a escrever em demasia, como diz, é uma influencia da tradição barroca hispânica?
Na linha de Peres Galdós?
Sim.
É, sim, de fato, embora o próprio Galdós tenha sido influenciado por Balzac. A arte do romance quer abarcar o todo, como Balzac escrevendo, escrevendo, escrevendo...
Um panorama total, uma pintura da sociedade, cobrindo tudo, identificando tudo, abarcando tudo, vendo tudo.
Obviamente, isso está relacionado ao desenvolvimento das nações, à ideia de que todos os homens são iguais, de que tanto os reis como os vassalos são iguais.
"Istambul", de fato, tem um sentido enciclopédico, e esse é provavelmente um sentimento que partilhamos no desenvolvimento da modernidade, quando a nação é inventada e uma nova geração vem à luz.
Tudo sobre a nação passa, então, a ser interessante, e é preciso escrever, escrever, escrever e tocar, tocar, tocar em tudo! Nesse estágio, romances são menos poesia e mais crônica, como é bem o caso de Balzac. Já "Ulisses" [de Joyce] tende mais para a poesia.
"O Livro Negro" deve muito ao romance "A Fugitiva" [6º volume de "Em Busca do Tempo Perdido", de Proust], não?
Sim, claro. Sempre fui criticado por escrever romances em que a personagem feminina é colocada no pedestal, é elusiva, desaparece. Digo a mim mesmo que eu não deveria estar fazendo isso, mas acabo fazendo de novo. Mas esse é um tema que desponta não só em "A Fugitiva" -trata-se de um tema medieval, o da poetificação da figura feminina. Gosto disso!
Talvez seja esse o modo como sou constituído: um "macho man" tradicional, não-moderno, que inventa esse tipo de personagem feminina! [risos]
O que "Istambul" tem a ver com a ideia de ruínas de Walter Benjamin? Ele o influenciou?
Esse é um tema que me agrada. Ruínas, claro, sugerem tristeza, como foi observado por Montaigne no século 16, e elas permanecem como a essência da poesia melancólica.
Benjamin, de fato, me influenciou. Identifico-me com ele por ser uma pessoa muito ambiciosa e pelos tantos grandes projetos que concebeu, muitos dos quais não conseguiu terminar. Gosto de pessoas ambiciosas, porque têm visões novas.
Nesse sentido, sinto que vivo em um lugar que ainda é virgem, intocado, que não dispõe de muita literatura e sobre o qual ainda há muito a escrever.
Meus alunos na Columbia me perguntaram se pretendo escrever sobre a universidade, sobre Nova York, os EUA, e eu respondi: "Não, nunca! Vou escrever é sobre Istambul -e, especialmente, jamais um romance passado numa faculdade americana!". [risos] Um romance de campus! [mais risos].
Mas o sr. vê Istambul como um "lugar vazio"...
Era um lugar vazio nos anos 1950 e 60, não agora. Há sempre uma confusão sobre isso, pois a Istambul que descrevo em meu livro vai dos anos 1940 até meados dos anos 70. A velha cidade era realmente suja e ruim de viver, tomada pela pobreza, com as pessoas trabalhando em lugares insalubres.
Mas desde 1975, quando termina meu livro, até hoje, a cidade mudou demais, ficou muito maior, mais rica e mais turística.
Quando nasci, ela tinha 1 milhão de pessoas, hoje conta com dez a 11 milhões. Há bairros inteiros além das colinas a que nunca fui em toda a minha vida!
O sr. certamente sabe que um dos maiores críticos literários do século 20, Erich Auerbach, veio para a Turquia para fugir do nazismo...
Sim, minha mãe foi aluna dele.
E o que sabe a respeito de sua estada aqui?
Ela foi bem dramatizada por Edward Said em "Orientalismo" [Cia. das Letras]. Auerbach escreveu "Mimesis", seu famoso livro sobre a literatura ocidental, fora do Ocidente. É a ideia de que os julgamentos finais e as representações mais sintéticas da cultura só se dão se você se muda para fora. Isso, obviamente, é a forma como Said vê as coisas: é preciso estar "fora" da cultura árabe, "fora" da cultura americana etc. O imigrante, aquela pessoa que está do lado de fora, tem uma visão melhor do todo.
Há outros escritos e cartas de Auerbach, sobre a Turquia e sua situação política. Ele era muito agudo, observou vários aspectos que os intelectuais locais não notaram -como, por exemplo, quão autoritário era o Estado turco, o direito das mulheres ou as mudanças culturais.
Ele teve alguma influência sobre a intelligentsia local?
Não muito, porque estava sempre ocupado com suas coisas, gostava de estar com os livros dele. Tinha amigos, claro-outros professores alemães e intelectuais locais-, mas não se envolvia com a vida política daqui.
O sr. mencionou o livro "Orientalismo", de Edward Said. Como o avalia hoje, passados 32 anos de sua publicação?
Foi um livro muito influente, central para os intelectuais pós-coloniais. Mas, hoje, seu prestígio e seu livro têm sido usados pelas sociedades pós-coloniais -como Índia, países árabes etc.- para legitimar os governos nacionais.
Claro, existe, de fato algo chamado orientalismo, as potências ocidentais o utilizaram para servir seus fins imperialistas. Isso tudo é verdade, mas não é a verdade toda.
Porque hoje os intelectuais dessas sociedades ainda estão falando dos horrores do imperialismo britânico. Acho que devem falar sobre isso, dos haréns que havia, por exemplo. Entretanto, deveriam estar criticando os haréns de hoje: as mulheres não vivem mais neles, mas suas consequências culturais ainda vigoram.
Em vez disso, esses intelectuais criticam apenas os escritores-viajantes ocidentais e como eles representaram os haréns. Evitam confrontar seus próprios governos, suas próprias ditaduras terríveis, seus países que não têm democracia e onde as mulheres são escondidas dos olhos públicos.
Gosta de lecionar na Columbia?
Sim! Foi o primeiro ofício que tive na vida, aos 52 anos, além de escritor. Mas não sou um professor nato. Este é alguém muito feliz com o que faz, como uma mãe que dá uma colherada de comida a seu filho e diz "mamãe ficou feliz"! Mas gosto da atmosfera tranquila e das bibliotecas.
Em que trabalha agora?
Estou escrevendo um livro sobre vendedores de rua de Istambul, que comercializavam um bebida otomana típica, chamada "boza". Em sentido amplo, é sobre as pessoas que vêm para as grandes cidades, como Buenos Aires, São Paulo, Istambul ou Cairo. Pessoas que imigraram aos milhares e vivem em favelas, lutando para sobreviver.
O que está lendo?
Muitas coisas. Se der uma olhada em torno, verá um livro de Umberto Eco ["História da Beleza", ed. Record], alguns livros de viagem do século 16, o catálogo de uma exposição chamada "Sobre a Melancolia", a biografia de uma escritora turca que morreu em 1964 e que fora amiga de Atatürk [militar e líder histórico turco que assumiu o país em 1923 e iniciou sua guinada para o Ocidente, com a fundação da República].
E Machado de Assis, o sr. conhece?
Em 1980, quando estive nos EUA pela primeira vez, me deparei com seus livros porque estavam nas mesmas estantes das obras do boom latino-americano! Machado é original e genuíno no sentido de ser precursor de Kafka. Gosto de seu humor negro -diria, na verdade, bizarro.
_________________________________________________
Reportagem: MARCOS FLAMÍNIO PERES
O jornalista Marcos Flamínio Peres viajou a convite do governo da Turquia.
Fonte: Folha online, 23/05/2010
Nenhum comentário:
Postar um comentário