quinta-feira, 20 de maio de 2010

Intolerância religiosa nas escolas

Mônica Sifuentes*

Nunca havia visto uma burca, o chamado véu integral islâmico. Somente soube o que era quando se anunciou, pela televisão, que o governo francês cogitava proibir o uso do véu — ou burca — pelas mulheres muçulmanas nos locais públicos. A intolerância religiosa tem sido tema recorrente na imprensa estrangeira e a questão do uso do véu lá fora mereceu destaque na mídia brasileira. Curioso que não se dê a mesma notoriedade ao crescente número de casos de discriminação religiosa que ocorrem aqui mesmo, neste País multicultural chamado Brasil.

A polêmica em torno do uso do véu muçulmano me veio à lembrança quando ouvi pelo rádio uma entrevista da jornalista Denise Carreira, da Relatoria Nacional do Direito Humano à Educação. A Relatoria, segundo soube, envolve a articulação de 30 organizações e redes nacionais de direitos humanos e conta com o apoio da Unesco. Nessa entrevista, a jornalista descrevia o seu trabalho de investigação a respeito da intolerância religiosa em escolas do Rio de Janeiro. A situação ocorre principalmente em relação aos alunos, familiares e professores adeptos das religiões de matriz africana, como o candomblé e a umbanda.

Constatou-se elevado número de casos em que os seguidores ou simpatizantes dessas religiões são vítimas de agressões físicas, como socos, pontapés e até apedrejamento. Outras vezes a agressão é verbal, submetendo-os a constrangimento e vergonha. Há casos de demissão ou afastamento de professores que levaram livros ou material sobre essas religiões para estudo em sala de aula. Outros relatos atestam a omissão de professores e diretores diante da violência praticada contra os alunos por motivos religiosos. Segundo a relatora, essas situações levam os estudantes à repetência, evasão ou solicitação de transferência para outras unidades educacionais, comprometem a autoestima e contribuem para o baixo desempenho escolar.

O que mais chama a atenção na entrevista, no entanto, é o alerta sobre a invisibilidade dessa questão no debate educacional, muito embora se registre aumento das denúncias de discriminação e violência contra as pessoas adeptas dos cultos religiosos de raízes africanas. Há um pacto de silêncio a respeito do assunto, o que se nota pelo seu insignificante registro pela imprensa. De fato, o uso do véu muçulmano no exterior tenha talvez tomado mais espaço da mídia e das discussões acadêmicas no Brasil do que a discriminação velada contra aqueles que, em vez da burca, usam as contas, os colares ou os objetos de devoção próprios das religiões afro-brasileiras. É mais fácil discutir os problemas dos outros do que os nossos.

A Constituição brasileira assegura a liberdade de crença e o livre exercício dos cultos religiosos. Ninguém é obrigado a ser católico, evangélico, espírita ou mesmo ateu. A lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional estabelece, em complemento, que o ensino religioso é parte integrante da formação básica do cidadão, sendo “assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil” (artigo 33). Desse modo, se por um lado se reconhece a importância da religião como elemento de formação do cidadão, por outro se exige das escolas públicas e particulares o respeito a toda e qualquer forma de crença religiosa, ou até mesmo a ausência dela. Obviamente, desde que essa liberdade de opção ou não opção religiosa ocorra em respeito às leis, aos costumes e aos princípios fundamentais do Estado brasileiro, como a dignidade da pessoa humana.

No tocante à história e cultura afro-brasileira, desde 2003 a matéria foi incluída no currículo oficial da rede de ensino no Brasil (Lei 10.639), devendo ser obrigatoriamente ministrada nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares. O conteúdo programático dessa disciplina inclui o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à história do Brasil. Sob nenhum aspecto, portanto, justifica-se a proibição da leitura em classe das histórias e lendas dos deuses africanos, como ocorreu em escola no Rio de Janeiro. Como também não se justificaria a proibição da leitura e estudo dos deuses e heróis greco-romanos.

As informações colhidas pelos membros da Relatoria Nacional do Direito Humano à Educação, em seu trabalho de pesquisa, tanto no Rio de Janeiro como em outros estados brasileiros, farão parte de relatório que será apresentado ao Congresso Nacional, ao Conselho Nacional de Educação, ao Ministério Público Federal, às autoridades educacionais, aos organismos das Nações Unidas e às instâncias internacionais de direitos humanos. Espera-se que esse importante trabalho resulte, ao menos, em uma campanha de conscientização sobre o respeito à diversidade de religião nas escolas. E que a mídia e as autoridades lhe deem a importância necessária.
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*Juíza federal em Brasília
Fonte: Correio Braziliense online, 20/05/2010

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