quarta-feira, 19 de maio de 2010

Somos todos do bem

Ao menos é o que apregoa o psicólogo americano Dacher Keltner, professor da Universidade da Califórnia e autor de um estudo que contesta o ceticismo radical

Por Moisés Sznifer, de São Francisco

Trava-se nas prateleiras uma batalha do bem contra o mal. Algo que contrapõe a visão de Rousseau à de Thomaz Hobbes, o “bom selvagem” contra o homem-lobo. De um lado, despontam obras como O Gene Egoísta, de Richard Dawkins, e On Evil (“Sobre o mal”), de Terry Eagleton, que enfatizam o lado mais obscuro dos seres humanos. De outro, livros como o recém-lançado The Empathic Civilization (“A civilização da empatia”), de Jeremy Rifkin, e Born to Be Good (“Nascidos para o bem”), do psicólogo Dacher Keltner. Professor da Universidade da Califórnia e diretor do Centro de Ciências Greater Good (Bem Maior), Keltner diz na entrevista a seguir que escreveu seu livro na tentativa de “desmistificar” uma visão sombria unilateral que paira sobre a espécie humana. Segundo ele, a emoção prevalecente da compassion (misto de simpatia e solidariedade) foi muito bem elaborada por Darwin, mas propositadamente negligenciada pelos autores mais pessimistas. Aluno do psicólogo Paul Ekman, Keltner conviveu algum tempo com o dalai-lama, de quem absorveu o conceito confuciano de Jen, segundo o qual o significado de uma vida honrada passa pela bondade, pelo respeito aos outros e a gratidão. Apoiado nestas três fontes, escreveu um livro fácil de ler, repleto de metáforas inusitadas, anedotas simpáticas e exemplos curiosos acerca de vidas plenas de significado. É uma contribuição relevante à chamada psicologia positiva que prospera na Universidade de Berkeley, a mesma onde nasceu o movimento hippie, aquele que pregava “a paz e o amor” nos anos 60.

Jen Science é o título do primeiro capítulo de seu livro. Do que se trata?
Jen é a ideia central dos ensinamentos de Confúcio e se refere a uma complexa combinação de elementos como bondade, humanidade e respeito, intervenientes nos relacionamentos. Para Confúcio, uma pessoa Jen é alguém capaz de catalisar os bons fluidos emanados por outros, evitando absorver os negativos. O Jen é também aquele sentimento profundo que o envolve quando você consegue extrair o bem dos outros. Podemos identificá-lo fisicamente, por meio de neurotransmissores (a serotonina, por exemplo) e potenciais de ação, em áreas do cérebro que promovem a confiança, o carinho, a devoção, o perdão e a alegria.

Paul Ekman identificou seis tipos de emoções, das quais quatro são negativas, uma positiva e uma neutra. Como afirmar, então, que as pessoas foram programadas para ser boas?
Ekman partiu da teoria da evolução de Darwin sobre as emoções. São, para ele, representações da nossa evolução enquanto mamíferos e expressas em muitas partes do corpo – olhos, respiração, pele etc. Ekman fixou-se basicamente nas expressões faciais. Por 15 anos tenho estudado como manifestamos nossas emoções a partir do tato, da voz e dos movimentos de cabeça. Observei a existência prevalecente de emoções, como desejo, riso, compaixão, interesse e gratidão, o que me permitiu formular que estamos programados para as emoções positivas. É a minha proposição, ainda que Ekman dela divirja.

THE AGE OF EMPATHY >>>

de Frans de Waal
O famoso primatologista, pioneiro no estudo das emoções nos primatas, propõe que a empatia
é um comportamento instintivo dos mamíferos, que não seriam primordialmente gananciosos ou beligerantes.
<<< THE EMPATHIC CIVILIZATION
de Jeremy Rifkin
Defende que o homem começa a viver a “Idade de Empatia”, em que o domínio de energias renováveis faz emergir um contagiante sentido de urgência da necessidade de solidariedade para evitar o colapso do planeta.
Mas em seu livro você cita uma obra de Darwin que reproduz uma lista de 25 emoções negativas e apenas 16 positivas. Não seria outra indicação contrária à tese de que nascemos para ser bons?
A natureza humana apresenta variadas nuances e emoções. A genialidade de Darwin foi mostrar que todas essas emoções negativas (como medo, raiva, nojo) são produtos da evolução. Mas frequentemente é negligenciada sua afirmação de que nossa emoção mais forte é a solidariedade. Este sentimento está no âmago de quem somos como espécie. Darwin pintou um quadro bem complexo, ao qual estamos retornando agora de forma integral, pois há boas e más emoções.

Em seu livro, você afirma que nossa busca por uma vida significativa requer engajamento com emoções. O que isso significa?
_Se você observar muitas tradições e pensadores ocidentais, como Platão, os estoicos, os puritanos e Kant, concluirá que eles exprimiram um enorme ceticismo em relação às emoções como manifestações adequadas ao ser humano. No entanto, observamos na cultura mediterrânea uma grande sabedoria acerca delas. É principalmente nas culturas norte-europeias, sobre as quais escrevo, que prevalece ainda um grande desdém para com as emoções. O que estamos aprendendo agora, graças às pesquisas científicas, é que elas são muitas, boas e más. Se quiser viver bem, você precisará lidar com seu ser emocional e estar conectado às emoções dos outros. Se quiser ser feliz nos seus relacionamentos, também. Quase todos os nossos maiores insights na vida estão baseados na emoção, na sua verdade e na sua beleza. É a ciência nos fazendo retornar para este aspecto fundamental de nossas vidas.

Toda cognição é precedida por uma emoção, concorda?
Einstein dizia que toda ideia que teve, surgiu de uma sensação em seu corpo. É incrível, a teoria da relatividade emergindo do corpo...

Einstein também contou, em sua biografia, que na infância sonhava em viajar na velocidade da luz. Isso é pura emoção!
Incrível, não sabia disso...Concordo! É interessante supor que nossos pensamentos provêm unicamente de processos cognitivos que residem em nossa consciência, e acharmos que isso é tudo. Mas subjacente a isso há um corpo, o inconsciente, e sabemos hoje que a maioria das nossas intuições mais profundas, como o amor, a confiança e a verdade, é emocional. Eventualmente, em alguns casos, como quando se está fazendo palavras cruzadas, é possível que não haja nenhuma emoção presente.

O neurologista António Damásio afirma que nossas emoções ocorrem no teatro do corpo e nossos sentimentos no teatro da mente, logo as emoções precedem os sentimentos. Qual a diferença entre emoções e sentimentos e qual a relação que se estabelece entre eles?
Essa é a questão mais difícil no estudo científico da emoção. Algo que começou com William James no final do século 19, estimulado por outros pensadores. Temos esses corpos de mamíferos com músculos, padrões fisiológicos e hormônios que são produzidos por eventos emocionais. Isso é emoção pura, a ação dos músculos da face, a fisiologia. E é a partir daí que decorre uma incrível gama de sentimentos.

Damásio diz que não se consegue esconder as emoções, que transparecem em seu corpo. Já os sentimentos você pode disfarçar. Você concorda com Damásio e Oliver Sacks, quando dizem que as emoções designadas como puras e competentes ocorrem antes no corpo, e só depois começa-se a pensar sobre elas?
Tendo a concordar que isso ocorre com as emoções clássicas – raiva, espanto e estupefação. Porém, há um certo grupo de sentimentos – o sentimento de que você sabe alguma coisa ou o sentimento de que algo é verdadeiro – que pode estar apenas na mente. Mas a maioria das grandes emoções sobre as quais estamos conversando tem um grande componente corporal.

BORN TO BE GOOD >>> de Dacher Keltner

Neste estudo, o autor investiga uma pergunta sem resposta da evolução humana: se os humanos foram programados para levar uma vida “sofrida, embrutecida e curta”, por que é que evoluíram com emoções positivas?

 <<< O GENE EGOÍSTA
de Richard Dawkins
Uma revolução na maneira de olhar o mundo: o gene não tem nenhuma moral nem comportamentos altruísticos, tenta apenas sobreviver, competindo por espaço vital e recursos limitados para a reprodução.

Quando você afirma que nascemos para o bem, não estaria emitindo um juízo moral sobre as emoções?
Isso contraria a tese de Richard Dawkins de que o gene não tem noção do bem e do mal, busca apenas sobreviver. Quando escrevi meu livro estava frustrado com Richard Dawkins, devido à sua obra O Gene Egoísta. Entendo que as emoções são morais. Sabemos, por exemplo, que o sentimento de repugnância é uma forma de condenar a pureza das ideias e do caráter das outras pessoas e até pode levar ao genocídio. Isto é um resultado imoral das emoções. Há todo um movimento que tentei resumir no livro, em que emoções como vergonha, raiva, asco e compaixão são apresentadas como manifestações de julgamento moral, o que é irrefutável. Também sabemos que essas emoções são moldadas pela evolução, e estamos descobrindo quais partes do corpo e da mente estão a elas vinculadas. Acabamos de publicar um estudo que mostra que há certos genes que ajudam a construir sistemas fisiológicos, que viabilizam essas emoções. Publicamos recentemente um artigo sobre um gene existente no terceiro cromossomo, que nos indica quão compassiva e calma uma pessoa pode permanecer ao lidar com o estresse. Penso então que Dawkins estava contaminado por uma ideologia quando escreveu que temos um gene egoísta. Há dados hoje que evidenciam a existência de genes não egoístas, interessados no bem dos outros e que, portanto, possuem um certo conteúdo moral. Penso que Dawkins está equivocado.

Se nascemos para ser bons, como explicar as atrocidades cometidas por Pizarro contra os incas, Hitler contra os judeus, Stalin contra os contestadores do regime, os Inquisidores contra os hereges; o racismo, os genocídios e a escravidão?
É uma das perguntas mais difíceis. Quando observamos nossa evolução, vemos as tendências genocidas e o comportamento de lutar e fugir integrados em nossas estruturas primitivas de mamíferos e de répteis. As coisas em que estou interessado – estupefação, estética, narrativa, compaixão e drama – são adições posteriores à nossa natureza evoluída. Claro que estamos sempre em conflito com outros, enquanto indivíduos e culturas. Creio que deveríamos nos perguntar profundamente como essas coisas surgem. Dias atrás julguei interessantes os comentários feitos por algumas pessoas ao abordarem este assunto. Chamaram minha atenção sobre as práticas punitivas dos pais, na Alemanha nazista. Pais puniam seus filhos com castigos corporais. Segundo esses observadores, foi essa cultura profundamente violenta, dos pais castigarem fisicamente as crianças, que permitiu a emergência do nazismo e isto, por sua vez, fez emergir uma violência nos processos cognitivos, no livre pensar. Um exemplo oposto: os chineses viajando no século 16, para a África, nunca tinham tido a ideia de escravizar os povos como faziam os europeus. É sobre evidências como estas que devemos pensar coletivamente.

Como você julga o trabalho do etologista Konrad Lorenz, que afirma que somos extremamente agressivos por natureza?
Sim, somos agressivos. Há realmente instintos agressivos que emergem, por exemplo, quando alguém se aproxima de nosso filho de uma forma ameaçadora. Há, também, estudos do neurologista Joseph LeDoux mostrando que, se vejo a figura de uma pessoa de um background étnico diferente do meu, minha amídala cerebral é acionada de imediato e impõe o ato reflexo de lutar ou fugir. É parte de quem somos. Mas o trabalho de Lorenz foi atualizado por Franz de Waal, ao estudar os aspectos relacionados a comportamentos sociais de primatas, sobre como resolvem conflitos, cooperam, têm aversão à iniquidade e compartilham alimentos. Parte de minha missão com o livro é realmente desafiar o leitor a concluir: sim, nós nascemos com esta agressividade da espécie e ela é parte da nossa cultura, mas vejam também o outro lado da história, os inúmeros exemplos de cooperação, solidariedade, alegria e amor.

Como o bem pode prevalecer na luta contra o mal?
Como resposta, darei alguns exemplos: sabemos que aqui nos Estados Unidos nossa unidade básica, a família – que está com problemas – tornou-se uma unidade frágil de socialização. Se você busca criar crianças boas, solidárias, você estará contribuindo para construir um mundo melhor. Haverá de contar histórias que versem sobre o amor, a bondade, a solidariedade, a compaixão. São as histórias que narramos antes da criança dormir. Precisamos ensinar a elas uma linguagem de emoção para fazer surgir esses conceitos. Outro exemplo: quando pensamos em Estados, países e nações, entendemos que a igualdade pode realmente nos ajudar. Sabemos que um Estado com um bom sistema legal elimina matanças por vingança, e transforma culturas baseadas em vingança em culturas de perdão. Há muitas conexões interessantes entre este material e a pergunta mais ampla de como se constrói uma sociedade melhor.

A AGRESSÃO >>>
de Konrad Lorenz


Investiga o comportamento animal. Ao examinar cada espécie viva em uma escala ascendente, o Nobel em Fisiologia e naturalista demonstra que as tendências agressivas são parte essencial do processo de preservação da vida.

<<< ON EVIL
de Terry Eagleton
Uma surpreendente defesa da realidade do mal, com base em fontes literárias, teológicas e psicanalíticas. Sugere que não se trata de mero artefato medieval: o mal é um fenômeno real com força palpável no nosso mundo contemporâneo.

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Fonte: Revista ÉPOCA NEGÓCIOS online, maio/2010 nº39.



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