Muita bobagem foi dita na semana passada sobre a “vida sintética” criada pelo cientista americano Craig Venter. Então, aqui vai um guia prático para entender (talvez) o que foi feito, o que não foi feito, e quais as implicações disso.
O QUE FOI FEITO
Os cientistas produziram (sintetizaram) em laboratório uma cópia do genoma de uma bactéria, colocaram esse genoma “sintético” dentro da célula de uma outra bactéria cujo DNA original havia sido removido, e essa célula, então, “ganhou vida”, assumiu as características da bactéria original (da qual o genoma foi copiado) e passou a se reproduzir normalmente, produzindo, eventualmente, milhões de cópias dela mesma (como faz qualquer bactéria cultivada in vitro).
O QUE NÃO FOI FEITO
Os cientistas não criaram vida “do nada”. Não transformaram matéria inanimada em matéria viva. Também não produziram uma célula “artificial”, como disse muita gente por aí. O termo “sintético” refere-se ao fato de que o genoma da célula foi sintetizado (confeccionado) em laboratório. Não significa “sintético” como se diz de uma camiseta de Lycra comparada a uma camiseta de algodão. O genoma foi confeccionado com moléculas orgânicas idênticas às de qualquer outra célula viva na natureza.
Os cientistas também não provaram que Deus não existe nem nada desse tipo. Também não explicaram como a vida começou. “Apenas” mostraram que, de posse dos ingredientes e da receita certa, é possível confeccionar um genoma funcional em laboratório.
O QUE HÁ DE IMPORTANTE/INTERESSANTE NISSO?
Os ingredientes básicos, nesse caso, são os ácidos nucléicos adenina (A), timina (T), citosina (C) e guanina (G), que formam a estrutura básica do DNA.
Respondendo a uma pergunta que meu pai me fez: Essas moléculas A T C G são idênticas em todos os seres vivos. TODOS mesmo. Se você coletar DNA de uma rosa, uma bactéria, uma baleia, um ser humano, um cachorro, uma lagartixa, uma barata, um fungo, um grão de arroz ou uma folha de mogno, o genoma de cada um deles será composto das mesmas bases A T C e G.
Os ingredientes químicos da vida são os mesmos para todos os seres vivos. Só o que muda é a receita. Dependendo da quantidade e da ordem de letrinhas, você pode construir qualquer coisa entre uma bactéria e um elefante. Imagine só!
Mas o que isso tem a ver com o experimento da célula sintética? Pois bem: O que os cientistas fizeram foi ler a sequência de bases A T C G do genoma de uma bactéria e sintetizar uma cópia desse genoma em laboratório, letrinha por letrinha.
E de onde vieram as bases A T C e G para isso? Esses ácidos nucléicos podem ser comprados de várias empresas fornecedoras, como se compra qualquer outro insumo de laboratório. Eles podem ser sintetizados quimicamente (grudando átomos de hidrogênio, nitrogênio e oxigênio) ou purificados de microrganismos cultivados in vitro. Você liga lá e pede: “Me manda dois vidrinhos de A, um vidrinho de T” e pronto…. Eles entregam na sua casa.
Os cientistas da equipe de Venter, então, leram a receita do genoma de uma bactéria, reproduziram essa receita em laboratório e botaram essa receita genética dentro de uma outra bactéria cujo DNA original havia sido previamente removido. Como se você tirasse o motor de um carro e substituísse por outro.
Esse é um ponto importante da pesquisa: Os cientistas não produziram uma célula sintética inteira. Ou um carro inteiro. Eles produziram um genoma sintético que foi colocado dentro de uma célula já formada pela natureza e esse genoma funcionou. Botaram o motor sintético dentro de um carro sem motor, e o carro funcionou. O que não é pouca coisa!!! Na verdade, é muita coisa!!! Mas é fato que as outras peças necessárias para o carro funcionar (mitocôndrias, ribossomos e outras organelas essenciais) já estavam presentes na célula original para a qual o genoma sintético foi transplantado. Sintetizar o carro inteiro seria algo imensamente mais complicado. Eu diria até impossível!
Agora, para entender melhor a importância disso, a melhor analogia é pensar no genoma como um software. Um software que, em vez de 1 e 0, utiliza os códigos A T C e G. Há décadas os cientistas já são capazes de transferir genes (pedaços menores do genoma) de um organismo para outro. Agora, reproduzir um genoma inteiro é algo bem diferente.
Podemos pensar nos genes como programas aplicativos específicos, tipo Word ou Excel, e no genoma inteiro como um sistema operacional, que faz a máquina toda funcionar e no qual os aplicativos precisam estar inseridos para funcionar também. Foi isso que Craig Venter fez: ele sintetizou, pela primeira vez, o sistema operacional inteiro de uma célula.
As aplicações, agora, podem ser muitas. Agora que o processo de programação genética foi “dominado”, torna-se possível alterar essa programação ao gosto do cliente. Você precisa de uma célula que chupe CO2 do ar para combater o aquecimento global? Beleza, vamos programar uma para isso. E você precisa de uma que sintetize etanol via fotossíntese? Vamos programar uma para isso também…. E assim por diante.
Alguém aí quer encomendar uma célula?
Abraços a todos.
FOTOS: No alto do post, um pôster com uma representação gráfica do genoma de M. mycoides JCVI-syn1, como foi batizada a linhagem de bactérias contendo o DNA sintético. (disponível no site do J. Craig Venter Institute)
Acima, uma foto de microscopia das próprias bactérias M. mycoides JCVI-syn1, em cultura e em pessoa. (também disponível no site)
__________________________________________Fonte: http://blogs.estadao.com.br/herton-escobar/software-celular-sintetico/ - 26/05/2010
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