Roberto Romano*
Em excelente programa televisivo sobre o Sexto Forum Político da Unimed/Porto Alegre foi discutido por mim, Fernando Gabeira e outros convidados o tema de nossa forma estatal, incluindo os gritos de guerra que sobem dos vários partidos. Indiquei na ocasião a gravidade que reside nas mútuas acusações de golpe, vindas da esquerda e direita. Em data recente, um general falou à Folha de S. Paulo defendendo o regime ditatorial e apontando o viés autoritário das forças esquerdistas. Essas últimas, por sua vez, sempre que alguém critica os donos do poder brasileiro (incluindo velhos corruptos e oligarcas ditos “incomuns” pelo presidente da República) apontam o dedo para um suposto plano golpista da mídia. Os dois lados mostram profunda e ridícula intolerância, nada compatível com os postulados fundamentais do Estado democrático.
A tolerância é tema antigo em todos os setores da vida política, social, ideológica. Poderíamos discutir o assunto de maneira irônica: a intolerância (como a ideologia, a pretensão política, a tentativa de controlar as formas sociais), segundo a consciência de todo operador político ou religioso, é culpa dos outros. Ninguém admite ser intransigente e exclusivista nos embates públicos ou privados. Todos “apenas” defendem a ortodoxia, supostamente universal. É deprimente o espetáculo de um ente que deveria pensar, no instante em que ele descarrega sua carga de ódio, inveja e oportunismo tacanho na vida pública, envenenando o próprio ar que respira.
O convívio democrático exige que toda pessoa tenha o direito de pensar de acordo com a sua consciência. Ela não pode ser obrigada por ninguém a aceitar dogmas ou normas, sem delas ter a experiência translúcida que a persuada. Os castigos físicos, as promessas de bens ou felicidade, a entrega de poderes, nada justifica ir contra a própria consciência. Ninguém pode ou deve impor crenças ou atos ao próximo. No século anterior a consciência foi vilipendiada por sistemas políticos e foi tida como “pseudoproblema”, em filosofias como a de Louis Althusser. Ela também foi atenuada em Freud, Marx e Nietzsche, os mestres da suspeita moderna. Mas a sua vigência nunca será expulsa do mundo especulativo e prático.
Um lugar comum da filosofia política é o símile entre Estado e música. Na Renascença, o jurista protestante François Hotmann usa as imagens da harmonia para descrever o governo desejável. Ele cita o bom tempero musical do governo, segundo a República de Platão. Diz o filósofo: os que tocam instrumentos musicais ou cantam em várias pessoas, “seguem certa medida e ressoam um canto harmonioso, mistura de vozes diversas reunidas e concordes as quais, se chegam a se fragmentar um pouco apenas e sair do tom, ferem os ouvidos de quem as ouve. E no entanto aquela harmonia se baseia na perfeita consonância de vozes diferentes”. De modo idêntico, segue Hotmann, “no governo da coisa pública, composta de pessoas de alta, média e baixa qualidade, quando as diferentes partes se unem, se ligam e se incorporam, não existe harmonia tão musical, nem melodia melhor acordada. A concórdia procede da união, amor e mistura dos cidadãos do mesmo Estado, como se fosse uma forte corrente e rija, para garantir uma coisa pública que não dura muito tempo sem justiça”. Por falta de tolerância de católicos e protestantes, nos tempos de Hotmann, milhares morreram, desde o mais pobre cidadão aos reis.
Quando a política gera truculência — sons e fúria — chegam as armas e a quebra da ordem legal. Tolerância e democracia significam harmonia dos opostos (“palintonos harmonie”, segundo Heráclito de Efeso). O contrário só promete ataques físicos. Se as correntes políticas brasileiras insistirem nos rugidos selvagens, ameaçando destruir adversários como se inimigos fossem e não compatriotas, golpes de Estado serão inevitáveis. Tais atos extremos geram tiranias, violentam direitos, ignoram liberdades. Duas ditaduras (a de Vargas e a de 1964) bastam para mostrar que a intolerância política desgraça um povo. Que a campanha presidencial não traga uma nova ditadura, de esquerda ou direita, é o que todo democrata deve exigir. Agora, porque o futuro a nós pertence.
________________________________________________*Roberto Romano é professor de Ética e Filosofia Política na Unicamp
Fonte: Correio Popular online, 26/05/2010
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