domingo, 16 de maio de 2010

A vingança de Capistrano

Moisés Mendes*

Uma história do tempo antigo. Em janeiro de 1916, Joaquim Francisco de Assis Brasil recebeu o amigo João Capistrano de Abreu no Castelo de Pedras Altas. Assis Brasil recém havia concluído sua obra medieval no meio dos campos de Pinheiro Machado. O castelo seria o contraste simbólico da nobreza e de alguma sabedoria com a crueza e o primitivismo do campo.

Claro que pretendia ver o historiador admirado com esse conflito, que só poderia ser percebido se Capistrano observasse o entorno. O visitante chegado do Rio contemplou bois e ovelhas pastando e se recolheu. Assis Brasil escreveu em seu diário: “Passou todos os dias e algumas noites a ler, não tendo observado coisa alguma do Rio Grande”.

A decepção do gaúcho está contada em Pedras Altas – A vida no campo segundo Assis Brasil, de Carlos Reverbel, e em J. F. de Assis Brasil, de Paulo Brossard. Quem passa dias e algumas noites lendo filosofia de twitters em 140 toques poderia parar, um feriado que fosse, para conviver com os conflitos de Assis Brasil, a figura mais bonita da mitologia gaúcha. Assis Brasil é o nosso Joaquim Nabuco.

Pois a frustração de Assis Brasil tem um sentido até hoje. O gaúcho ilustrado esperava que o amigo, dedicado a entender o Brasil, compreendesse o significado de Pedras Altas também pela observação. A obsessão de Capistrano era livresca, e a realidade concreta dessa ponta meridional do Brasil, ainda sem um significado maior para o conjunto dos trópicos, não lhe interessava. Imagine-se a decepção. A obra de Assis Brasil tinha apenas a utilidade de uma hospedaria silenciosa para que o historiador pudesse ler no veraneio no pampa.

Naquele verão de 1916, Capistrano vingou-se, por antecipação, do nosso olhar desleixado para outras paisagens. Era cearense, tentou compreender como um país se molda não só pelos seus mitos e heróis, mas pelos movimentos nem sempre visíveis do povinho. Assis Brasil pretendia, com suas ideias do que seria a vanguarda da agropecuária para o início do século 20, contribuir para a modernização do Rio Grande.

Se os dois se encontrassem hoje, sentados à sombra do castelo, Capistrano poderia argumentar: olhem para a minha Maranguape, lá onde passei minha infância, e eu então prestarei mais atenção na Bojuru de vocês. Capistrano cobraria um olhar miúdo, aquele que vasculha detalhes para entender os arredores, como Assis Brasil queria que o amigo fizesse na visita a Pedras Altas. E certamente perguntaria por que o Sul até hoje não entende as misérias e os descaminhos do Nordeste.

Capistrano poderia indagar: por que vocês, no meio da fartura, entendem todos os contrastes a meio palmo do nariz mas não assimilaram ainda o vasto significado de uma ajuda governamental a quem ainda come calangos? Por que ajudamos a pagar – e todos pagamos – os bônus dos executivos dos bancos quebrados em Londres e nos recusamos a entender o que é um Bolsa-Família para a gente de Maranguape? Por que nos incomoda a contribuição a um programa social gerador de renda, por mais precária que seja, em sertões sem fábricas, shoppings e hipermercados?

Assis Brasil entenderia a queixa e poderia responder que é preciso insistir em alguma saída para o sertão, como ele pretendia fazer com o campo. João Capistrano Honório de Abreu balançaria a cabeça, como se dissesse que essa é uma conversa interminável até para um historiador. E ficaria por algum tempo contemplando as ovelhas, antes de se recolher à leitura.
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*Jornalista
Fonte: ZH online, 16/05/2010

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