Rubem Alves*
1980, 5 de novembro
Já faz bastante tempo que a Raquel descobriu a morte. Ontem, entretanto, sua sensibilidade foi a um ponto que eu não havia imaginado. Era bem cedo. Ela veio à minha cama, me acordou e me perguntou:
“— Papai, quando você morrer você vai sentir saudade?”
Levei um susto, era uma pergunta para a qual eu não estava preparado, fiquei mudo, sem saber o que dizer. Mas ela, 5 anos de idade, já sabia sem que ninguém lhe houvesse ensinado, que morte é o lugar da saudade. Ou da ausência de alguém que se ama. Ai, vendo o meu embaraço, ela disse: “— Não fique triste. Eu vou abraçar você...”
1981, dezembro
Raquel: “Quando eu era pequena, quando eu tinha 2 anos, eu pensava duas coisas erradas. Eu pensava que os pretos eram pretos porque não tomavam banho. E pensava que as pessoas velhinhas, enrugadinhas, passavam palitinho na cara para ficarem enrugadas...”
1981
Dona Abadia foi uma mulher que nos serviu durante vários anos. Era muito querida. Ela era mulata com uma mancha mais forte no rosto. Raquel saiu em silêncio da sala, foi ao banheiro, escolheu um sabonete e trouxe-o como presente para Dona Abadia com as instruções: “ — Você chega em casa, passa o sabonete na mão, faz bastante espuma, passa no rosto até ficar bem branquinho, passa água, e depois volta, bem limpinha, bem cheirosinha...”
1981, outubro
No consultório do dentista havia uma mãe com um filho que não parava. Após haver observado a cena durante muito tempo a Raquel dirigiu-se à mãe do menino e lhe disse: “Ainda há muitas coisas que a senhora precisa ensinar ao seu filho, não?”
1982, janeiro
Explicando o gesto católico: “É assim: Em nome do Pai, do Filho e do Sílvio Santos...”
Comentando uma planta novinha: “Quando ela ficar plantuda...”
Comentário linguístico: “ — Canteiro é uma palavra errada. Canteiro é lugar de canto. Lugar de planta é planteiro...” (Essas duas observações me fizeram pensar que as crianças, naturalmente, têm um pouco de Manoel de Barros dentro delas, habilidade que vai sendo perdida quando, nas escolas, a língua é ensinada conforme a gramática e o dicionário.)
1982
“ — Papai, no céu, como vai ser o corpo da gente?” Eu respondi segundo a teologia mais ortodoxa: “Será como aqui. Eu serei eu, você será você, criança, brincando...” (Pausa). “Mas, e a dona F? Vai ficar encurvadinha daquele jeito, de bengala?” “Claro que não. Deus nos vai dar corpos novinhos...” “Ah! Quer dizer então que Deus vai tirar aquelas gorduras que a tia Z tem penduradas debaixo do braço?”
(Por ocasião de uma cirurgia da boca, cirurgia da qual nasceu o livro A operação de Lili). De repente a Raquel arrancou, do meio dos seus brinquedos, um ursinho velho e fofo, que fora do Sérgio. Abandonou as bonecas bonitas e ficou com ele, pondo roupa, fralda, com carinhos enormes. Perguntei a ela “Por que”? Ela me explicou: o ursinho se parecia com ela. Ela estava com a boca costurada pela cirurgia, e também o ursinho tinha a boca costurada. Perguntei o nome do ursinho e ela me respondeu: “Não é ursinho. É menina. O nome dela é Raquel.”
O assento do carro estava rasgado, e de dentro saía um enchimento esverdeado.
“ — O assento está igual ao Hulk, rasgando a roupa e ficando verde...”
Depois de ver o filme ET, a Raquel chorou muito. Depois pediu para ir logo para a cama para parar de chorar. No dia seguinte, hora do jantar, pede para ir ver a estrelinha do ET. Mas estava nublado. Resolvi brincar e disse que o ET estava atrás de uma moita de arbustos, no jardim. “Deixa de ser bobo, papai. O ET não existe...” “Mas ontem você chorou por ele. Por que é que você chorou por uma coisa que não existe?” “ — Por isso mesmo. Chorei porque ele não existe. Eu gostaria que ele existisse. Mas ele existe só na terra da fantasia...”
Apresentando uma tia já bem velha a uma nova amiguinha: “ — Esta é a minha tia “A” que ainda não morreu...”
“ — Há pipis de três tipos: os curtinhos, como o meu; os compridinhos como os dos meninos; e os com pelinhos ...”
A visita estava se arrastando. Ela sai da sala, vai até a cozinha, volta e diz: “ — O relógio me disse que já é hora de vocês irem embora...” Essa honestíssima intervenção da Raquel nos obrigou a rir e a improvisar um lanche.
A Raquel conta uma mentira para a professora de fono. A professora, diplomata, contra-ataca contando a estória do Pinóquio, sua mentira e o seu nariz. Como boa educadora pede que a Raquel tire as conclusões. “Foi muito bom para o Pinóquio. Com aquele narigão ele podia cheirar melhor que as outras crianças...”
Explicando o cemitério ao Marcos, os túmulos verticais: “ — Aqui ficam as pessoas que são enterradas de pé...”
Na saída da igreja encontra-se com um moço conhecido, amigo:
“ — Raquel, eu te vi a semana passada, só que não me lembro onde...”
“ — Não se lembra? Foi no médico...”
Conversa vai, conversa vem...
“ — Você está tão grande. Quantos anos?”
“ — Seis”.
“ — Quem diria! E eu me lembro quando você nasceu...”
“ — Você não se lembra nem das coisas que aconteceram na semana passada e vem me dizer que se lembra de coisas que aconteceram seis anos atrás?”
Observando “hippies”, com suas roupas estranhas, corpos cobertos de tatuagens, vendendo artesanatos: “Quantos homens feios tomando conta dessas coisas bonitas...”
Ao almoço acha um fiapo de pano sobre a mesa que tinha uma parte mais gorda e me pergunta: “Papai, este é um espermatozóide seu?”
A Mani me contou. Telefonou-me. Atendeu a Raquel.
“ — Raquel, você dá um recado para o seu pai?
“ — Pra lhe dizer a verdade não vou dar o seu recado não porque o meu pai está que não aguenta mais com tantos recados...”
1981, Campos do Jordão, olhando para as montanhas
“Por que as coisas são coisas? Elas não ficam tristes por serem coisas?” Lembrei-me de um poema de Fernando Pessoa: “Tenho dó das estrelas, luzindo há tanto tempo... Não haverá um cansaço das coisas, de todas as coisas, como das pernas ou de um braço? Um cansaço de existir, de ser...”
1982, 24 de dezembro
Oração de agradecimento na ceia de Natal:
“...e meu Deus, eu desejo que você tenha um feliz nascimento amanhã...”
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*Rubem Alves é escritor, teólogo e educador.
Fonte: Correio Popular online, 23/05/2010
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