Entrevista com Moshe Idel
Moshe Idel
No hebraico moderno, Qabbalah é uma palavra que se usa normalmente para indicar um recibo fiscal, particípio do verbo "leqabbel", isto é, receber. E paciência se no mundo contemporâneo a mística judaica dos cabalistas enlouquece, deformada em moda New Age.
De repente, descobrimos ligações impressionantes entre a introspecção da alma experimentada na práxis religiosa de outros tempos e o estudo do inconsciente com as técnicas da psicanálise. Esse estranho cruzamento, até a Qabbalah de Madonna & Cia., certamente não é desprezado, mas causa a ironia de Moshé Idel, depois de uma vida dedicada à sempre nova reinterpretação dos textos medievais e modernos, da Espanha à Europa Central, passando pelas sinagogas de Safed e pela cidade da Galileia, onde esses perscrutadores do Incognoscível se encontraram.
Tendo sucedido a Gershom Scholem no ensino de mística judaica na Universidade de Jerusalém, há 22 anos, Moshé Idel teve a coragem de revirar essa visão com o livro "Qabbalah, nuove prospettive", que a editora Adelphi republica, atualizado e corrigido com uma ampla introdução.
Quando o encontro em Verona junto com Elisabetta Zevi, responsável pela seção de hebraística da editora Adelphi, durante uma pausa do seminário "Filosofia versus Kabbalah", organizado pela Fundação Campostrini, esse professor israelense de origem romena pode sorrir comprazido sobre os êxitos dessa controvérsia. "Nenhum estudioso é um Papa. Eu me esforço para corrigir os meus erros. Mas as pesquisas históricas que floresceram nesses 20 anos certamente não legitimaram o violento debate levantado em Israel contra mim, por lealdade ao mestre, pelos seguidores de Scholem".
Eis a entrevista.
Portanto, é errado traduzir literalmente o conceito de Qabbalah, isto é, "recibo", como uma Tradição intocável?
A Qabbalah, sem dúvida, é uma Tradição. Como tal nos foi transmitida e assim deve ser estudada com o devido rigor. Isso não nos exime de reinterpretá-la, depurando-a dos erros de quem nos precedeu.
Por isso, o senhor rejeita a acusação de ter traído Gershom Scholem?
Quando ele me recebeu pela primeira vez, eu era um jovem laureando, e ele já era um professor emérito. Eu lhe submeti aquelas que me pareciam ser contradições entre os seus textos de épocas diversas. Fui brusco, coloquei-as sobre a mesa, sublinhadas. Alguns dias depois, eu recebi em casa uma carta sua com uma meticulosa resposta. Ela terminava com uma frase que não me esqueço: "Bendito aquele que te ajuda a corrigir os teus erros em vez de jogá-las contra ti". Ainda sigo esse ensinamento do mestre Scholem, que me acolheu ao seu lado.
Mas o senhor, Moshé Idel, é só um estudioso ou também um místico?
Espero não lhe desiludir, mas sou só um estudioso. A palavra chave que me impulsiona é a curiosidade. Como nos revela a sua autobiografia, Scholem, desde jovem, utilizou técnicas místicas na sua abordagem da Qabbalah. Não por acaso ele a elevou a sistema de pensamento judaico, e como tal contraposto aos sistemas filosóficos orgânicos de Kant e de Hegel. Eu, ao contrário, vejo na Qabbalah mais simplesmente um modo de viver. Considero o ritmo da vida mais significativo do que as ideias, sem necessidade de contraposições filosóficas.
O senhor não é um místico, não é um filósofo. Como pode então adentrar na esfera do irracional?
Racional, irracional: para mim são só etiquetas. Não busco a verdade nos sistemas filosóficos. Para mim, Aristóteles está errado assim como Platão. Tudo o que pensamos é imaginário. O racionalista Maimônides tem um lugar de honra na história do judaísmo, mas é um imaginário assim como os cabalistas.
Insisto: essa declarada estranheza à introspecção não constitui um limite aos seus estudos?
Admito que foi preciosa para mim a relação instaurada com um místico estudioso da Qabbalah como o rabino Mordechai Attia. Graças a ele, posso dizer que conheci o caso existencial de um cabalista verdadeiro. Mas certamente não o acompanhei quando ele pretendia retrodatar em tempos bíblicos o texto fundamental da Qabbalah, o "Zohar". Continua sendo incontroversa a sua colocação medieval sancionada por Gershom Scholem.
Porém, o senhor tem que admitir que o boom dos estudos contemporâneos sobre a Qabbalah se deve à portentosa capacidade com a qual a mística judaica antecipa a investigação psicanalítica da alma humana.
David Bakan publicou em 1957 uma pesquisa para demonstrar a influência da Qabbalah no pensamento de Freud. Considero isso um exagero. Mas indubitavelmente a Viena de Freud era uma praça em que os rabinos tinham peso, e Freud entendia de cultura judaica mais do que se imagina. É provável que ele tenha sofrido a influência do chassidismo. Mas ao contrário eu duvido que ele conhecia a fundo a Qabbalah.
Mas o movimento chassídico fundado na Polônia por Baal Shem Tov no século XVIII não é talvez a terceira manifestação da Qabbalah? E depois, coincidentemente, esse místico é lembrado como um curandeiro milagroso...
Certamente. Mesmo que estudiosos como Martin Buber a tenham transmitido, não especialistas em Qabbalah, é ali que a mística judaica se revificou chegando até nós como experiência criativa.
A imprevisível difusão mundial dos estudos sobre a Qabbalah é filha de um espírito dos tempos apocalípticos?
Pode ser. Ciclicamente, renova-se a convicção de que o Messias pode vir a qualquer momento. Mas não vem. Continuo cético diante de manifestações de messianismo político derivadas de eventos históricos aparentemente portentosos, como por exemplo a vitoriosa guerra israelense dos Seis Dias. Tais circunstâncias assinalam que, diferentemente do que defendia Gershom Scholem, a Qabbalah pode ser alimentada pela euforia em vez do trauma do exílio. Mas continua sendo uma parcialidade do caso judeu.
A Qabbalah como continuidade em vez de revolução?
Exato. Seria limitado estudá-la como resposta a uma crise histórica, quando, ao invés disso, ela se renova entre nós como tradição.
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*A reportagem é de Gad Lerner, publicada no jornal La Repubblica, 26-05-2010.
A tradução é de Moisés Sbardelotto
Fonte: IHU online, 29/05/2010
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