sábado, 22 de maio de 2010

Gestalt no Brasil

Walter Ribeiro - entrevista

Um dos pioneiros da gestalt no Brasil, abordagem que muda inteiramente a forma de encarar a relação entre psicólogo e paciente, ex-professor da UnB defende apaixonadamente a técnica e critica o crescimento “deturpado” do método
Os cabelos brancos e a voz frágil indicam que Walter Ribeiro, 84 anos, é, no mínimo, alguém com muita coisa para contar. Bastam 15 minutos de conversa para ver que o psicólogo é mais que um senhor experiente. Walter talvez seja a personificação do que se convencionou chamar de sábio. Passou os últimos 38 anos debruçado sobre livros, teorias e mestres da gestalt, método muito diferente de encarar a relação entre psicólogo e paciente. No consultório, a gestalt não é terapia, é a busca pelo autoconhecimento. E o terapeuta, um ajudante na missão.
A abordagem foi formulada por um casal de alemães judeus — Frederick e Laura Perls — que fugiam do nazismo durante a Segunda Guerra Mundial. A dupla publicou o primeiro livro em 1951, já em Nova York. Vinte anos depois, Walter Ribeiro estava na primeira turma de brasileiros que fizeram um curso sobre a gestalt. O psicólogo gostou tanto da nova proposta que decidiu incorporar sua formação como filósofo à teoria.
“A gestalt é, em si, uma filosofia. Ela vai buscar força em si mesma”, diz. Walter tentou implantar os ensinamentos do casal Perls na gestão de pessoal do Banco do Brasil, onde trabalhou de 1945 a 1974. Não conseguiu. Chegou a dar aulas na Universidade de Brasília (UnB), mas desistiu ao esbarrar no que chama de “intolerância” do ex-reitor linha-dura José Carlos de Almeida Azevedo. Pediu demissão em 1977 e, desde então, trabalha para si mesmo. Walter recebeu o Correio em seu apartamento na Asa Norte, onde falou por duas horas e meia sobre o desafio de aplicar a gestalt — nos consultórios e na vida.

                                                                                                                                                                     Paulo de Araujo/CB/D.A Press
A gestalt está para aquilo que se chama de terapia assim como a pedagogia de Paulo Freire está para aquilo que se chama de ensino A diferença fundamental é que você deixa de tratar o outro como um inferior, como um doente, e passa a tratá-lo como um igual. Na nossa civilização, foi implantado há muito séculos um sistema hierárquico de convivência. Nós achamos que esse sistema é responsável pela maior parte dos distúrbios e desajustes da pessoa A gestalt está crescendo deturpadamente. A grande maioria dos profissionais que se intitulam dessa forma não entendeu a essência da coisa


A cura pela igualdade

Como surgiu a gestalt terapia?
Nossos gurus são um casal de judeus alemães, Frederick e Laura Perls. Eles eram psicanalistas muito estudiosos e, no início do século 20, a Alemanha era um local de intensa ebulição cultural. Inspirados na fenomenologia, nos ensinamentos de Edmund Husserl, Friedrich Nietzsche e Henri Bergson, eles começaram a duvidar do sistema de análise e acharam que você tinha que ter uma relação mais olho no olho, mais horizontal com os pacientes. O nome “gestalt” é um pouco enganoso, é uma palavra alemã que quer dizer configuração, forma, todo. Eles decidiram usar esse nome porque remetia à ideia de que o ser humano é contextual, um ser abordado globalmente na sua existência.

No que a gestalt difere de outras abordagens da psicologia?
A diferença fundamental é que você deixa de tratar o outro como um inferior, como um doente, e passa a tratá-lo como um igual. Na nossa civilização, foi implantado há muitos séculos um sistema hierárquico de convivência. Nós achamos que esse sistema é responsável pela maior parte dos distúrbios e desajustes da pessoa. Assim, essa abordagem significa tratar o outro como um sábio que foi obrigado a esquecer a sua sabedoria. E fez isso para se adaptar melhor aos meios hostis em que nós sempre vivemos, para ser aceito e amado, quando, na realidade, o anseio de todo o ser humano é ser aceito e amado pelo que ele é — não pelo que ele deveria ser. Daí a dificuldade de entender essa proposta. Ela conflita com todas as crenças da nossa cultura europeia, ocidental.

Esse sistema hierárquico foi absorvido pelos consultórios?
Pela sociedade como um todo, pelo nosso ensino, pelas nossas famílias. Você não foi tratada na sua família como uma igual a seus pais. Foi tratada como um serzinho que não sabe nada e que deve ser moldado à forma — à gestalt — dos seus pais. Por isso, o nome “gestalt” é enganoso.

A gestalt pode ser usada em quais circunstâncias?
Em todas. Ela objetiva examinar a sua vida e em quais pontos suas crenças e valores estão te perturbando. Alguém que esteja sofrendo por não ter um namorado ou namorada, por exemplo, pode ter alguns vícios de comportamento ou talvez isso ocorra pela dificuldade de encontrar pessoas com as quais ela se afine melhor. Uma das coisas que nós consideramos é que a nossa cultura tem verdades demais e nós as temos enfiadas nas nossas cabeças há muito tempo. Nós herdamos crenças e valores que são dificultadores do convívio.

Por exemplo?
O homem é diferente da mulher. Em quê? A sociedade exige que ele tenha determinandos comportamentos. Quando eu comecei a fazer terapia, há uns 800 anos (risos) — e terapia é um péssimo nome, porque indica doença, e não é doença, é vício de comportamento —, uma das coisas que eu percebi foi que fazia mais de 20 anos que eu não derrubava uma lágrima. O homem não chora, não é mesmo? O homem é treinado, adestrado para não chorar, para esconder suas emoções. E a mulher é treinada para ser subjugada, frágil, alguém que sempre precisa de amparo. A única vantagem que as mulheres levam com isso é que elas conseguem desenvolver a maior arma que nós temos para o conhecimento: intuição. A análise usa a razão, chega a conclusões com base em um conhecimento passado. Só que esse passado pode ser a pseudosabedoria daquele que está no papel de terapeuta.

O tratamento — ou essa busca de si mesmo — seria mais como uma conversa, algo mais humano?
Mais humano e menos invasivo. Nós cultivamos uma honestidade intelectual, no sentido de que alguém dentro de você sabe o que é melhor para você, mas você perdeu esse contato por causa de uma educação que te tirou dessa visão. E aí entra também o aspecto político da coisa: não existe instituição política, religiosa, que não queira impor ao seus membros as suas verdades. O que fazemos é lidar com a máquina de criação de valores que cada um tem dentro de si e que está enferrujada.

Isso é maravilhoso. Mas é uma coisa bem difícil, não?
Não é difícil, é quase impossível. As argamassas de condicionamento que nós temos são muito fortes. E quanto mais a pessoa é sofrida, mais ela é agarrada às suas crenças. A gente se desvaloriza em relação às nossas próprias crenças. Uma pessoa que tem autoconfiança e autoestima não tem problema. Ela tem as respostas, não prontas dentro dela, mas ela tem a capacidade de procurar as respostas de que precisa. Mas a sociedade — a educação, e todos os outros ramos — quer que você acredite nas respostas dela para que você fique dependente. E você, ficando dependente, é mais útil à sociedade do que a você mesmo. O conflito entre o indivíduo e a sociedade é genuíno. Você tem que, com serenidade, buscar ajustamentos criativos para sobreviver da melhor forma possível. É uma coisa simples, mas dificílima. O nosso treinamento é todo para tentar curar o outro, sem virar os olhos para dentro de si. O psicólogo que não se cuida, que não sabe direito quem ele é, será um adestrador, porque considera o outro uma massa de modelagem.

Então o psicólogo que trabalha com a gestalt acaba criando uma relação com o paciente?
Claro. Você não tem um pacote único de receita para lidar com todos. Se a pessoa é mais lesada, você a trata em função daquele sofrimento maior que ela teve para que ela perceba o quanto está acreditando pouco em si. Na hora em que o próprio psicólogo consegue acreditar nisso, ele passa essa crença para a pessoa. Isso é a intuição. Não com palavras, nem com convencimentos, mas com a atitude humana de acreditar ou não.

Por conta dessa forma de encarar as coisas, a gestalt sofre preconceito por parte dos psicólogos?
Demais. A gestalt está crescendo deturpadamente. A grande maioria dos profissionais que se intitulam dessa forma não entendeu a essência da coisa. E isso não é um processo consciente ou maldoso, mas por conta da própria formação cultural. Eles acham que essa postura vai tirar a força e a autoridade deles. Quando é justamente com a autoridade que nós pretendemos acabar. É a autoridade que está levando a humanidade para o buraco.

E há muitos profissionais que trabalham com a gestalt?
O profissional convertido plenamente ainda é extremamente raro. Mas tem muita gente utilizando as palavras da coisa, falando só da boca para fora. Esse é um ponto essencial: é preciso trabalhar muito mais com a emoção do que com a razão. Mas a nossa cultura está cultuando a razão e nós estamos cada vez mais distantes de nós mesmos. A aproximação do homem de si mesmo o coloca meio como um pária na sociedade, porque ele fala diferente. Aí está uma comparação interessante: a gestalt está para aquilo que se chama de terapia assim como a pedagogia de Paulo Freire está para aquilo que se chama de ensino.
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Reportagem: Carolina Vicentin
Fonte: Correio Braziliense online, 22/05/2010

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