sábado, 1 de outubro de 2011

“A invisibilidade deixa a criança à mercê dela mesma”

ENTREVISTA: JORGE BROIDE*

A FAMÍLIA DE FILIPE IV (AS MENINAS)” (1656),
DE DIEGO VELÁZQUEZ

Para especialista, crianças e adolescentes violentos carecem do olhar estruturante do outro e estão impedidos de falar sobre seus próprios dramasDedicado há 33 anos ao trabalho com crianças e adolescentes, o professor da Faculdade de Psicologia da PUC de São Paulo Jorge Broide sustenta que, por trás do comportamento violento de um jovem, existe com frequência a impossibilidade de ser visto e ouvido.
Para o especialista, é preciso remover o manto de invisibilidade que cobre esses jovens na família, na escola, na rua e permitir que possam falar sobre suas vidas a fim de que exista alguma perspectiva de mudança na sua condição. Na terça-feira, por telefone, o psicanalista porto-alegrense, 57 anos, radicado na capital paulista há 45, concedeu a seguinte entrevista:

Zero Hora – O senhor diz que a rua invadiu a escola. A que o senhor atribui esse fenômeno?
Jorge Broide – Esse fenômeno, que tem ocorrido nas cidades brasileiras, principalmente nas periferias, é o efeito da retirada do Estado nos últimos 30 anos. Nesse período, com o neoliberalismo, o Estado se recolheu. Se a presença dele antes já era precária nesses lugares, ficou mais precária ainda. Com isso, começa a vigorar nesse território não mais a lei do Estado, da ordem do simbólico, e sim a lei da violência, de quem tem mais força. Assim, avança o tráfico de drogas, que tem mais força num contexto de ausência do Estado. Essa desorganização e fragmentação do território gera fenômenos novos e contraditórios. Por um lado, permite o surgimento de novas maneiras de as pessoas se agruparem, se organizarem e lutarem pela sobrevivência. Por outro, gera formas de violência típicas de onde vigora a lei do mais forte. A rua invade a escola exatamente quando o espaço da escola é ocupado por esse território fragmentado. O professor não consegue mais falar em nome do conhecimento, da humanidade, da cultura. Ele fala em nome próprio, e tem diante dele um adolescente de 1m80cm falando também em nome próprio. Nesse caso, é evidente que o professor fica acuado. É como se deixasse de haver a divisão entre aquilo que é a escola e aquilo que é a rua, e a rua, com suas regras próprias, entra para dentro da escola.

ZH – A partir dos anos 1960, a psicanálise, entre outras disciplinas, contribuiu para colocar em xeque valores ditos tradicionais como família nuclear, a escola e o próprio Estado. Sua posição sugere uma certa nostalgia dessas instituições. O senhor acredita que, nesse caso, a psicanálise contribuiu para jogar fora a criança com a água do banho?
Broide – Não se trata de uma nostalgia, muito pelo contrário. O território no mundo mudou muito com o processo de globalização. Trata-se de encontrar políticas públicas que deem conta dessa transformação. Quando falo em Estado, me refiro a políticas públicas. A questão hoje é como o Estado – não aquele Estado antigo com políticas públicas antigas – pode exercer o seu papel na sociedade. O que é uma verdadeira política de segurança? O que é verdadeiramente falar de educação, de saúde mental? Enfim, o que se coloca hoje como ação do Estado? Não há resposta para isso. É um fato muito novo. Não se trata de ressuscitar o velho Estado, as velhas instituições, a velha família ou a escola antiga, que certamente não dão conta do que está ocorrendo hoje.
"Esse menino estava enredado numa
invisibilidade brutal. Essa questão é
tão central que podemos falar em
três hipóteses para o olhar do outro em
relação a essa criança:
 ou é um olhar aniquilador, que destrói o filho;
ou é um olhar que estrutura;
ou é a ausência do olhar.
Aqui, a invisibilidade deixa a criança
 à mercê dela mesma, de suas próprias pulsões,
sem que possa ser pautada, estruturada
pelo olhar do outro."
(Caso do menino de 10 anos que disparou a arma contra a professora)
ZH – O senhor diz que é preciso reabilitar a palavra na relação entre família, escola e jovem. O que significa isso?
Broide – A reabilitação da palavra se dá de várias formas. A psicanálise precisa estar onde a vida está. É preciso haver a possibilidade de se falar, na escola ou nas comunidades, do que não é dito. Conflitos e desejos, na medida em que não podem ser falados, se transformam em sintomas. Passamos a lidar com uma série de sintomas que se apresentam como rupturas na escola, no território, nas ruas. Temos que abrir caminhos para a palavra que antes não podia ser falada, para o pensamento que não podia ser formulado. Entendo que o papel da psicanálise é fazer com que a palavra circule. O que pode ser dito, pode ser pensado e transformado.

ZH – Uma parte desses comportamentos violentos, ao se cristalizarem, também fazem uso da palavra e dão origem a um discurso. Alguns exemplos são os os ramos violentos das torcidas organizadas de futebol ou os jovens que combinam confrontos pelas redes sociais.
Broide – O discurso, nesse caso, consiste em esconder aquilo que está ocorrendo com eles. É o discurso defensivo, por assim dizer. Quando partem para uma briga, precisam descarregar uma violência enorme que há dentro deles. O que estou dizendo é que a psicanálise pode nomear essa violência enorme existente no interior do sujeito para que esse sujeito possa se apropriar disso, pensar sobre isso e transformá-lo.

ZH – Como pais e professores podem agir diante de casos como o de São Caetano do Sul, no qual um menino de 10 anos disparou contra uma professora e, em seguida, se matou?
Broide – No caso de São Caetano, vou me pautar pelos fatos divulgados pela imprensa. O eixo central para a gente pensar no caso desse menino é a invisibilidade. Veja a invisibilidade em que se encontrava esse menino na escola e na família. Em primeiro lugar, não é possível que uma criança de 10 anos que comete um ato dessa natureza não tenha nenhum sintoma, nenhum sinal. Nesse sentido, ele estava invisível. Em segundo, quando se deixa uma arma em casa ao alcance de uma criança, isso também é um indício de que a criança está invisível. Na escola, todos dizem que ele era normal. Não estou fazendo aqui uma análise patológica, de normal versus doente. Estou dizendo que alguém prestes a cometer um ato como esse dá algum sinal. Esse menino estava enredado numa invisibilidade brutal. Essa questão é tão central que podemos falar em três hipóteses para o olhar do outro em relação a essa criança: ou é um olhar aniquilador, que destrói o filho; ou é um olhar que estrutura; ou é a ausência do olhar. Aqui, a invisibilidade deixa a criança à mercê dela mesma, de suas próprias pulsões, sem que possa ser pautada, estruturada pelo olhar do outro. Havia uma arma carregada em casa, ou ele a carregou se estava descarregada. Como é que uma criança de 10 anos aprendeu a fazer isso? Na escola, ninguém estava olhando para ele, todos diziam que ele era normal no senso mais comum da normalidade. Quando se suicidou, ele estava na realidade matando não a si mesmo, mas àquilo dentro dele que cometeu o ato insustentável para si mesmo. Os jovens da periferia sofrem de invisibilidade porque ninguém os vê, eles só imaginam poder ser vistos se tiverem roupas de grife, tênis de marca, e seu sofrimento leva à violência.

ZH – É possível traçar relações entre esse episódio e o da escola de Realengo, no Rio, quando um ex-aluno invadiu uma escola e matou 12 crianças?
Broide – Voltamos à questão daquilo que não pode ser dito e à diferença entre poder dizer e não poder dizer. No caso de Realengo, esse rapaz enfrentou bullying a vida inteira. Ficou conversando interiormente com o bullying a vida inteira. Acabou formulando a resposta 10 ou 20 anos depois porque nunca tinha podido falar sobre isso, não havia quem o escutasse. Também estava na invisibilidade, e foi isso que gerou essa violência tremenda. A invisibilidade não permite que se estabeleçam limites. Se ele estivesse sendo visto, o bullying teria sido interditado na infância e ele poderia falar sobre isso.
----------------------------------------
*Psicanalista e professor da PUC de São Paulo
Fonte: ZH on line, 01/10/2011

Nenhum comentário:

Postar um comentário