sábado, 1 de outubro de 2011

Um mundo pós-aids?

PATOLOGIA DA ÉPOCA
Cláudio César Dutra de Souza*
Trinta anos após o primeiro diagnóstico, os avanços no combate ao HIV sepultaram uma série de ideias preconceituosas associadas à doençaChegamos este ano ao trigésimo aniversário de uma doença que modificou definitivamente nossos valores e percepções sobre relacionamentos e sexualidade. A Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (Acquired Imune Deficiency Syndrome, ou Aids) nasce, oficialmente, em 5 de junho de 1981, nos EUA, quando o Centro Americano para a Prevenção e Controle de Doenças registrou um estranho surto de pneumonia em Los Angeles. Nesse mesmo período, várias ocorrências de um raro tipo de câncer chamado Sarcoma de Kaposi aconteceram em San Francisco, levando os estudiosos a concluir que algo de muito estranho e sério estava ocorrendo. A sigla aids só foi oficializada em 1982, sendo que em seu início a doença era conhecida como Gay-Related Immune Deficiency (GRID), já que o primeiro grupo a ser afetado pela nova doença eram os homossexuais masculinos americanos. Naquela época, de acordo com o filósofo e ativista francês Daniel Denfert, existia uma sigla pouco conhecida através da qual os pacientes com aids eram referidos nos corredores dos hospitais: WOG – Wrath of God, ou seja, Ira de Deus. Nos idos de 1980, um paciente soropositivo carregava, de fato, uma sentença de morte em curto prazo.
Não obstante a gravidade natural da doença, ainda sem tratamento naquela época, o doente de aids sofria em dobro pelo preconceito contra si. A crença inicial de que a aids afetava tão somente “grupos de risco” tais como homossexuais, viciados em drogas injetáveis e “promíscuos em geral”, deixava implícito, para alguns, que de certa forma aquelas pessoas, por seu comportamento desviante, haviam feito por merecer o mal de que padeciam. Nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, Ronald Reagan e Margareth Thatcher lideravam uma guinada conservadora de resgate dos valores tradicionais após décadas de fortes reivindicações sociais e libertárias nos anos 1960 e 1970. Mais do que nunca, o modelo tradicional familiar era vendido como a correta proteção contra os malefícios da “peste gay”. Tais injunções foram corroboradas pelo Papa João Paulo II, ao afirmar que castidade e monogamia deveriam ser observadas como forma aceitável de evitar a doença.
Susan Sontag sintetizou em seu livro A Aids e suas Metáforas (1989) os principais estigmas e preconceitos que os doentes sofriam em meados da década de 1980. Para Sontag, a aids, além de punir os “culpados”, provocava igualmente uma situação de perigo aos “inocentes” que poderiam ser expostos a um risco imerecido. O desconhecimento e a ignorância foram responsáveis por diversas e tristes cenas de exclusão de soropositivos nas escolas, no trabalho e no ambiente social como um todo. Vivia-se o que Foucault iria conceituar como um “erotismo discursivo generalizado”, onde o sexo das crianças e dos adolescentes foi privilegiado como um importante foco de observação e sobre o qual se dispunham uma série de dispositivos institucionais e estratégias discursivas como forma informação, prevenção e vigilância. Entretanto, tal situação logo veio a se modificar. Nas décadas seguintes, estudos aprofundados provaram o erro de se pensar em “grupos de risco” quando, na verdade, havia “comportamentos de risco”, tornando todos, incluindo os heterossexuais, suscetíveis à contaminação pelo HIV. Desde o surgimento da aids, estima-se que 25 milhões de pessoas morreram e que ainda temos 34 milhões de infectados no mundo todo.
"No momento, a certeza de que temos
é que um mundo pós-aids está
 cada vez mais próximo."

No entanto, a certeza de “morrer de aids” foi gradativamente substituída pela realidade de “viver com aids”. O esforço conjunto de cientistas, movimentos sociais, filantropos e governos foram responsáveis por enormes avanços para deter a disseminação do HIV, frustrando as funestas previsões iniciais sobre uma pandemia apocalíptica de proporções incontroláveis. Grupos de medicamentos, os conhecidos coquetéis, possibilitaram ao portador do vírus HIV uma vida praticamente normal por tempo indeterminado. Aliado às campanhas de prevenção, o índice de contaminação pela aids é menor do que 0,5% no mundo desenvolvido, embora ultrapasse os 4% na África subsaariana, segundo dados de 2009 da Unaids. A boa notícia é que o Brasil possui os mesmos índices dos países desenvolvidos graças ao empenho social e governamental em focar o problema desde muito cedo. Embora polêmicas, as quebras de patentes para os principais medicamentos que compõem o coquetel contra a aids em 2001, 2007 e 2011 possibilitaram acesso às classes mais vulneráveis a um tratamento gratuito via SUS. Cabe lembrar que, embora sob controle, a aids é ainda uma doença grave e sem perspectivas de cura.
Exatamente por isso, a vulnerabilidade dos mais jovens fez com que a sua sexualidade fosse encarada de forma mais direta e franca, já que não se constitui em uma questão se o adolescente está fazendo sexo, ou não, mas sim como ele está se protegendo. Nos relacionamentos amorosos, o conceito de lealdade começou a substituir gradativamente o de fidelidade. Lealdade pressupõe o uso do preservativo em qualquer aventura extraconjugal, na suposição tácita de que elas acontecerão de qualquer forma. Ironicamente, o “castigo divino” que propiciaria o retorno a valores mais conservadores acabou por sepultá-los de vez em prol de uma nova racionalidade positiva na qual é sempre prudente evitar um juízo de valor precoce. No momento, a certeza de que temos é que um mundo pós-aids está cada vez mais próximo.
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*Psicólogo clínico, mestre em sociologia pela Universidade de Paris X
Fonte: ZH on line, 01/10/2011

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