Ignácio de Loyola Brandão*
Os infelizes reuniram-se pela terceira vez em um pequeno prédio, de onde podiam ouvir a música que vinha das lojas da Rua Teodoro Sampaio. Uns dizem que foi na Rua Cristiano Viana, outros na Alves Guimarães e ainda na Capote Valente. Não há certeza. Havia oito membros a mais do que na segunda reunião que não tinha sido nada fraca. As pessoas apareceram de orelhada, vieram no boca a boca. A não divulgação por meio de um pequeno anúncio classificado foi deliberação do primeiro encontro. Desnecessário gastar dinheiro. Tiveram razão aqueles cinco primeiros associados.
A conversa preliminar girou em torno da designação: seriam associados, membros, componentes, participantes, integrantes? Andam à procura de um termo simpático. Ali estavam homens profundamente infelizes, arrasados pelas intempéries da vida. A expressão é deles, ainda que possa soar arcaica. Intempéries da vida. Eu jamais usaria tal expressão, porém desejo que este relato seja autêntico, diga como as coisas estão se passando.
Quando se soube no bairro que os infelizes estariam se reunindo outra vez, houve intensa movimentação. Todos queriam saber onde, quando, a que horas, o que seria preciso fazer para se inscrever, participar. A maioria movida pela curiosidade. Saber quem eram os infelizes da região. Pura maldade. Muitos imaginaram que haveria testes, entrevistas para se determinar o grau de infelicidade, para se obter uma graduação, uma nota de corte que permitisse uma hierarquia na organização. Outra palavra ainda pendente. É uma organização, instituição, fundação, clube, associação, sociedade, partido, facção, bloco, confraria, congregação, centro comunitário, o quê? Centro comunitário foi uma definição rechaçada unanimemente, indica movimentos sociais, ideologias superadas.
A ideia de testes e entrevistas foi aventada - o termo é deles - e logo descartada. Como determinar os parâmetros para se avaliar a infelicidade? Trata-se de algo subjetivo, íntimo. Como dizer que a infelicidade de A é maior do que a de M? Como encontrar critérios? A menos que fosse possível definir os vários níveis de infelicidade:
Profunda ou incomensurável
Abissal ou abismal
Crônica ou aguda
Insolúvel ou dolorida
Amargurante ou fingida
Pretensa ou impertinente
Inebriante ou apaziguante
Genética ou adquirida por contágio
Bacteriológica ou alérgica
Persistente ou intermitente
Suportável ou arrasadora
Os critérios são aleatórios. Não incluem ordem classificatória. Um verticalmente prejudicado (quase escrevi anão, vejam só) sugeriu que deveria haver cotas para determinadas parcelas menos favorecidas. Argumentou-se que a infelicidade atinge a todos, seja índio, afro, amarelo, GLS, coxo, vesgo, maneta, careca, obeso, raquítico, albino. Como determinar o nível de dor e sofrimento causado pela infelicidade?
Na terceira reunião havia filas que se estendiam pela Cristiano Viana e seguiam atravessando a Rebouças, continuando pela Rua Estados Unidos e terminando na Rua Atlântica. Sem que se soubesse onde era o encontro. Soube, porque tenho uma amiga infelicíssima com que converso na esquina. Neste terceiro encontro aconteceu o impasse que promete persistir e será tema recorrente. E se a infelicidade em vez de dor causar prazer? Prazer para alguns, argumentou um professor de lógica que todos sabem ser visceralmente infeliz.
A mulher dele garante que ele não teve um único dia feliz a vida inteira. Prazer para uns, não prazer para outros, ele prosseguiu. "Estou mergulhado na infelicidade há exatos 37 anos, quatro meses e seis dias, porque sei perfeitamente em que momento esta sensação começou." Discutiu-se se a infelicidade seria sensação ou emoção, mas como havia prioridades, o assunto foi postergado (outra palavra feia, mas que foi usada, lamento). As causas, motivos, razões, princípios, não estão em pauta, rebateu o arquiteto que teve a ideia dos encontros. Chamemos encontros, por enquanto; houve quem sugeriu simpósio, todos acharam horrível.
Se houver alguma conclusão, volto ao assunto. Infelizmente, para participar você precisa ser recomendado por algum infeliz no grau 10. Não adianta eu dar as dicas. E se souberem que você é feliz, será rechaçado na porta, pode contaminar. O porteiro tem faro apurado, é um homem infelicíssimo, amargurado, triste, sem nenhuma autoestima.
---------------------------------------* Contista, romancista e jornalista brasileiro. Colunista do Estadão.
Fonte: Estadão on line, 07/10/2011
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