quarta-feira, 5 de maio de 2010

Bicho não é gente

CLÁUDIO MORENO*

Plínio, o grande naturalista de Roma, dizia que o elefante era o mais humano dos animais – e por várias razões. Primeiro, porque entendia a língua do seu país, obedecia às ordens que recebia e lembrava muito bem de suas tarefas. Depois, porque era sensível aos prazeres do amor e da glória, e possuía, num grau raro até mesmo entre os homens, noções de honestidade e justiça. Além disso, demonstrava extraordinária prudência, pois, embora fosse corajoso, sempre procurava evitar as perigosas viagens por mar, recusando-se a subir em qualquer navio sem que antes seu tratador prometesse, solenemente, que um dia o traria de volta para casa.

Havia evidências indiscutíveis de que este nobre animal tinha uma inteligência fora do comum e dela se orgulhava. Plínio conta que Mutianus, que foi cônsul por três vezes, conheceu um elefante que, tendo aprendido a traçar com a tromba todo o alfabeto grego, fazia questão de riscar na areia macia a frase “Eu mesmo escrevi estas palavras” – e a este contrapõe o exemplo daquele outro que, envergonhado por ter nascido com o raciocínio mais lento, tinha sido surpreendido, à noite, revisando em segredo as lições que o treinador lhe ministrava durante o dia...

Os leitores do passado aceitavam candidamente esses relatos de Plínio. Não enxergavam o absurdo contido na simples ideia de um paquiderme alfabetizado, nem indagavam como é que se descobre quando um elefante está com vergonha, ou que método ele usa para revisar as lições do dia anterior. O romano de dois mil anos atrás imaginava que os animais eram muito mais próximos do homem do que realmente eles são, atribuindo-lhes a capacidade de pensar e de entender a linguagem humana – não muito diferente, aliás, de uma querida amiga minha que, ainda hoje, mantém “conversas sérias” com o cachorro, certa de que basta falar bem devagar para que o danado entenda frases repletas de orações condicionais e de verbos conjugados no futuro!

Infelizmente, essa confusão entre os dois mundos nem sempre é tão inofensiva. Há gente pregando por aí o fim de qualquer limite, rebaixando o homem e endeusando o animal, a quem atribuem “direitos”. Mas são seres irremediavelmente diferentes! Eles têm lá seus sentimentos, desenvolvem algumas habilidades, trocam mensagens básicas com os demais membros da espécie – mas isso é tudo. Só nós temos a capacidade de dizer não a nossos instintos, só nós podemos ter consciência de nós mesmos (e disso o nosso rosto é a expressão mais visível) e só nós nos preocupamos em definir os limites éticos de nossa relação com os animais. Eles não têm direitos; nós é que temos deveres para com eles, uma responsabilidade que se tornou gravíssima no momento em que todos os animais deste planeta – da foca ao tigre, da anta ao canguru – passaram, tanto quanto o gato de nossa casa, a depender do bem ou mal que decidirmos fazer.
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*Escritor. Educador.
Fonte: ZH online, 04/05/2010

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