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O ser humano vem ao mundo e a primeira coisa que faz ao chegar é lançar
um olhar maravilhado sobre essa realidade, e daí passa a amá-la
imediatamente. Depois, o que acontece, vai sabê-lo, infelizmente, desde a
infância. O que acontecerá é que ele será negado, como essa grande obra
prima da natureza, esse imbatível mistério que é o ser humano… será
inexoravelmente, ferozmente, desmantelado e reduzido a um papel,
tornando-se um contador, um aluno, um marido, um funcionário, um Papa,
um Presidente, etc., na procissão dos papéis que mantém prisioneiros
todos os seres humanos. É preciso dizer logo que, por isso, o ser humano
ainda não conseguiu realmente habitar neste planeta.
É fundamental que todos saibamos quais são as gaiolas mortais que cada
forma de poder pôs em ato para conseguir demolir esse colosso de
mistério que é o ser humano.
A primeira gaiola consiste em criá-lo em um espaço pequeno, um pequeno cárcere que é o apartamento, a casa.
A segunda gaiola é constringi-lo, quando ele só precisa correr,
brincar, ser ele mesmo, e forçá-lo a ficar sentado para aprender, nada
menos, que a escrever; por que? Por que se é obrigado a aprender a
escrever aos 5/6 anos? Normalmente, o ser humano aprenderia de modo
verdadeiramente perfeito a escrever se o fizesse chegando sozinho a
sentir essa necessidade, com o desejo, por volta dos 11/12 anos, mas o
que conta é bloqueá-lo, não permitir que ele brinque, corra, porque se
ele brincasse, corresse até os 18 anos, depois seria impossível fazê-lo
parar, pelo resto da vida… de brincar, de criar, de demonstrar sua
própria unicidade, porque cada ser que vem ao mundo é único e
irrepetível, como se sabe, não só quanto ao DNA, não só quanto às
impressões digitais, mas em uma criatividade que, se pudesse
exercitá-la, daria cada vez uma versão nova, fascinante, imortal da
realidade…
A terceira gaiola, talvez a mais letal, é o trabalho. A obsessão do
trabalho já começa por volta dos 13 anos, quando o rapazinho diz “Mas eu
não gosto da escola, não quero ir…”, então lhe dizemos: “Olha que se
você não conseguir o diploma, depois você não achará trabalho… olha que
se depois não frequentar a universidade, será difícil achar trabalho”,
mas o que significa “achar trabalho”? O ser humano não precisa
trabalhar, precisa é de boa comida, de um lugar seco para dormir. É
possível dar uma casa de presente a 7 bilhões de pessoas com 1/5 daquilo
que se gasta a cada ano com os exércitos, as despesas militares, para
não falar das coisas magníficas que poderiam ser feitas com todos os
investimentos feitos com droga, com prostitutas, com hospitais –aqueles
inúteis-, com penitenciárias. Essa gaiola do trabalho, aos poucos,
convence, infelizmente, a todos, que se não trabalharem 8/9 horas por
dia, não poderão ficar neste planeta, e quem trabalha 8/9 horas por dia
sabe muito bem que pode existir, mas certamente não viver! A coisa
interessante é que os aparatos de poder que forçam os seres humanos a
essa convicção absolutamente demencial – que seja inevitável trabalhar
8/9 horas por dia – até hoje em dia, com as máquinas substituindo em
todo canto a fadiga e que permitiriam que o ser humano pudesse
expressar-se, finalmente, no trabalho, sobretudo porque, desde sempre,
quem trabalha 3 horas por dia e tem 21 horas para viver, é muito mais
produtivo de quem é forçado a trabalhar 8/9 horas por dia todos os dias;
portanto em 3 horas é possível produzir de modo fantástico aquilo que
lhe compete.
Dizemos produziria porque, atualmente, somos 5 ou 6 em toda a Europa a
trabalhar só 3 horas por dia, mas o indivíduo trabalharia de boa
vontade 3 horas por dia, descobrindo que nas outras 21 poderiam ser
inventadas tantas coisas que renderiam ainda mais produtivas aquelas 3
horas de trabalho, além de se tornar possível conhecer, enfim, os
próprios filhos, e depois, finalmente, não se estaria preso à terceira
gaiola letal, que é a 3 Bis, ou seja, a convivência: o fato de que um
ser humano que encontra uma pessoa que ama seja forçado a conviver na
mesma pequena casa ou grande casa –dá no mesmo – não tendo nunca a
possibilidade de se alegrar, de ficar um pouco consigo mesmo/a, e
descobrir, sobretudo para as mulheres, que ficar com o próprio parceiro
não nasce de uma necessidade de afetividade, mas de uma necessidade da
construção civil; não têm outra escolha, de modo que ficam ali e isso
explica porque se diz que 70% dos homicídios e das violências ocorrem
nesta gaiola 3 Bis, que é a da convivência dentro da própria casa.
Não confundam a existência com a vida.
Vimos há pouco que bastaria reduzir de 1/5 as despesas militares para
dar uma casa a 7 bilhões de pessoas, assim como duas refeições quentes
por dia; todavia há uma gaiola ainda mais feroz que é aquela de vender
barato, sem percebermos, nossa própria criatividade, ou seja, a nossa
própria visão do mundo. Alguém dizia: “Mas pra que serve uma visão do
mundo?” Como “para que serve”? A humanidade teria 7 bilhões de visões
diversas da realidade e, portanto, teria uma imagem poderosíssima,
extraordinária, alguém poderia até ousar dizer “divina” da realidade
humana. Dito isso eu poderia até não dizer mais nada, mas me interessa
fazer compreender que quem trabalha duas ou três horas é realmente tão
produtivo que merece um salário maior daquele que recebe trabalhando 9
horas, porque, na grande grande maioria dos casos, o trabalhador recebe
1/30 daquilo que produz, mesmo quando produz mal, um trabalhador que
ganha 1.000 euros por mês, na realidade produz, como mínimo, 30.000,
então se trataria simplesmente de entender que o destino de 7 bilhões de
pessoas está nas mãos de um grupo muito pequeno de pessoas, um grupo,
talvez, não sei, mas ouso dizer, que está certamente abaixo de 100, os
quais investem os 80% de todos os bens da Terra só para defender os
próprios privilégios. E quais são seus privilégios? Brincar com o mundo,
decidir as guerras, defender o comércio de armas, de drogas, de
prostitutas, sobretudo de informações falsas, preguiçosas, nocivas.
Pensem que um rapaz de 21 anos nascido em Nova York terá assistido a 130
mil homicídios na televisão. A pedagogia da morte, porque vocês terão
notado que desde o texto nos pacotes de cigarro “este produto mata” até
essa obsessiva narração de homicídios na televisão, o interesse central
do pequeno núcleo de monstros que gerenciam o mundo é regular a
mortalidade, não produzir a vitalidade, mas regular a mortalidade;
então, por exemplo, construíram essa válvula pela qual morrem 35 mil
crianças de fome, naturalmente poderíamos dizer também, virando a cabeça
para não ouvir o fedor dessa nojeira, que só na Itália são destruídas
400 mil toneladas de alimentos por ano, por causa de prazos de validade
que vão vencer!
De qualquer maneira, de 1960 até hoje, morreram cerca de 1 bilhão de
crianças de fome. Carregamos esse peso em todas as nossas consciências,
também sobre a consciência de quem não sabe disso, e se exprime no
desconforto profundo, visceral, que quase todo o mundo hoje sente. Foi
globalizado sobretudo o desconforto e esse desconforto depende da
obrigação de viver em um planeta que é um dos mais extraordinários
planetas que existem no universo inteiro. O único que tem aparência azul
a partir do cosmos, porque deveria hospedar a vida, e eu desejo a esse
planeta e também aos amigos do Beppe Grillo de se recusarem, a partir
desse momento e para sempre, seja pela razão que for, de confundir a
existência com a vida, viver quer dizer saborear a eternidade dia após
dia, nascendo a cada manhã e morrendo no sono de noite, e ressurgindo
dia após dia!
Esse são meus votos, e meus votos têm um veículo fundamental, sem o
qual desaparecem. Estão na palavra talvez mais afetada da história da
linguagem humana, na palavra “amor”. Construam um território de amor a
qualquer custo, mas não uma gaiolinha pequenina com uma arvorezinha
parcamente frondosa, mas um território que hospede uma floresta de
sentimentos, e então será muito difícil contrabandear o termo vida,
enterrando-o na tumba da existência.
Com a corrupção a carne apodrece, a fruta definha e o alimento se espedaça em nossas mãos.
A corrupção enfeia nossos corpos e apaga a luz que brilharia em nossas
almas, com a corrupção ninguém faz uma casa de boas pedras, com a
corrupção ninguém pinta um paraíso no muro de uma igreja, nenhuma
pintura será feita para durar nem para brilhar diante de nossos olhos,
com a corrupção seu pão cada vez mais será de farrapos dormidos, seu pão
será seco como papel sem trigo da montanha e sem nutritiva farinha, com
a corrupção ninguém encontra um bom sítio para fazer sua casa, os
tecelões são afastados de seus teares, a corrupção embota a agulha nas
mãos das donzelas e desbota a graça dos tecidos, Dante não nasceu da
corrupção, nem Piero della Francesca, nem Giotto, a corrupção enferruja o
cinzel do escultor e as estatuas não se erguem, o azul vira um câncer
na corrupção e não se bordam de ouro as vestes púrpuras, a corrupção
apunhala a criança no ventre e a esmeralda não será lapidada e mata o
prazer dos jovens amantes deitando entre seus corpos paralisados na
cama, cadáveres sentarão na mesa dos banquetes sob as ordens da
corrupção, a corrupção é obesa, a corrupção cria esposas desprezadas se
consumindo e amantes cobertas de pérolas e juras de amor, a corrupção
cria súbita dignidade em tribunais, cria ladrões de olhos em brasa,
dedos espetados, uivos de falsas virtudes, negando os contratos de
gaveta, os recibos falsos, os laranjas desdentados nas portas de
empresas inexistentes. A corrupção provoca brados de honradez, socos nas
mesas, babas indignadas nas negações em tribunais, hipócritas lágrimas
de esguicho, punhos batidos no peito e clamores a Deus. A corrupção se
sente superior à ridícula moralidade de classe media. A corrupção tem
uma única vontade: vingar-se de inimigos, cobrar lealdade dos
seguidores, exigir pagamentos de propina em dia.
A corrupção cria firmas sem dono, sem obras, vagando num deserto
jurídico e contábil que leva ao caos proposital, a corrupção aumenta a
amizade entre as famílias de safados, cria os cálidos abraços, os
sussurros de segredo nos cantos das varandas, o piscar de olhos
matreiros, as cotoveladas cúmplices, os charutos comemorativos, vastos
jantares repletos de moquecas e gargalhadas, piadas, dichotes,
sacanagens jucundas.
A corrupção valoriza a norma castiça da língua, palavras que dormem em
estado de dicionário. A corrupção traz de volta interjeições e adjetivos
raros: "ilibado", "despautério", "infâmias", "aleivosias"... A
corrupção é o paraíso dos advogados, com ternos brilhantes, sisudos
semblantes, liminares na cinta, serenidade cafajeste, 'chicanas'
decoradas, diplomas comprados.
Com a corrupção, malas pretas voam em todas as direções, os dólares
flutuam nos céus estrelados, as luas são sempre minguantes, os rostos
nunca mostram o que pensam, as gargalhadas soam como latidos, as bocas
salivam, os punhais saem das bainhas, os carros atropelam, as finas
cordas apertam os pescoços, os assassinos se fartam, os olhos do povo
olham impotentes. A corrupção confunde, é um labirinto, uma grande
aranha em sua teia, a corrupção cria firmas em sanfona, uma dentro da
outra, subsidiárias sem obras, vagando num labirinto jurídico e contábil
que leva a um caos indecifrável, pois o emaranhado de roubalheiras
dificulta apurações. No imaginário brasileiro, a corrupção tem uma aura
heroica. São heranças da colônia, quando era belo roubar a Coroa. A
corrupção é a mola mestra do atraso. A corrupção mostra que os lírios
que apodrecem fedem mais que as ervas daninhas (Shakespeare). A
corrupção desenha as caras deformadas de políticos, as barrigas, a
gomalina dos cabelos, a boçalidade dos discursos, tudo compondo um
estafermo fabricado com detritos de vergonhas passadas, cérebros
encolhidos, olhos baços, irresponsabilidades fiscais, municípios
apodrecidos, decapitações, ônibus em fogo. A corrupção escolhe seus
peões entre os mais espertos dentre os mais rombudos e boçais. A
corrupção transforma a estupidez em uma estranha forma de inteligência,
uma rara esperteza para golpes sujos e sacos-puxados. A corrupção é
fabricada entre angus e feijoadas do interior, em favores de
prefeituras, em pequenos furtos municipais, em conluios perdidos nos
grandes sertões. A corrupção é a torta escultura feita de palha e barro,
de gorjetas, de sobras de campanha, de canjica de aniversários e água
benta de batismos. A corrupção explica o País, pois tem raízes e
tradição: avô ladrão, bisavô negreiro e tataravô degredado. A corrupção
durante quatro séculos criou capitanias, igrejas, congressos, golpes e
tomadas de poder. A corrupção tem um vago sentimento de poesia
brasileira. A corrupção para muitos se julga revolucionária, roubando
para um futuro imaginário e mentiroso, para enganar otários cheios de
esperança. A corrupção é um rabo de lagarto que sempre se recompõe,
renasce quando cortado.
A corrupção cria, esculpe, organiza as imposturas, as perfídias, os
sepulcros caiados, os beijos de Judas, os abraços de tamanduá, as
lágrimas de crocodilo.
(*) Com gratidão a Ezra Pound por seu
Canto XLV - A Usura.
Tradução de Augusto de Campos
Com usura nenhum homem tem casa de boa pedra blocos lisos e certos que o desenho possa cobrir; com usura nenhum homem tem um paraíso pintado na parede de sua igreja harpes et luthes ou onde a virgem receba a mensagem e um halo se irradie do entalhe; com usura ninguém vê Gonzaga, seus herdeiros e concubinas nenhum quadro é feito para durar e viver conosco, mas para vender, vender depressa; com usura, pecado contra a natureza, teu pão é mais e mais feito de panos podres teu pão é um papel seco, sem trigo do monte, sem farinha pura. Com usura o traço se torna espesso com usura não há clara demarcação e ninguém acha lugar para sua casa. Quem lavra a pedra é afastado da pedra O tecelão é afastado do tear. COM USURA a lã não chega ao mercado a ovelha não dá lucro com a usura A usura é uma praga, a usura embota a agulha nos dedos da donzela tolhe a perícia da fiandeira. Pietro Lombardo não veio da usura Duccio não veio da usura nem Pier della Francesca, nem Zuan Bellini veio nem usura pintou La Callunia. Angelico não veio da usura; Ambrogio Praedis não veio, Nenhuma igreja de pedra lavrada, com a inscrição: Adamo me fecit. Nenhuma St. Trophime Nenhuma Saint Hilaire. A usura enferruja o cinzel Enferruja a arte e o artesão Rói o fio no tear. Mulher alguma aprende a urdir o ouro em sua trama; A usura é um câncer no azul; o carmesim não é bordado, A esmeralda não encontra um Memling. A usura mata a criança no ventre Detém o galanteio do moço Ela trouxe paralisia ao leito, jaz entre noivo e noiva CONTRA NATURAM Putas para Elêusis cadáveres no banquete a comando da usura.
Há um esbanjamento de despudor e ausência de autocrítica, além da opacidade do governo
Uma grave crise funcional do Estado eleva seus custos de maneira intolerável
O governo só não cai por falta de
colo hospitaleiro. Ainda bem, pois escasseiam robustas lideranças
democráticas capazes de desmantelar, por simples presença, arranjos
contra a legalidade. O Legislativo distrai-se em conquistas predatórias
ao apagar das luzes do atual mandato. Os movimentos sociais organizados,
outrora valentes escudeiros de valores universais, empalideceram e a
multidão de siglas que desfilam em conclamações lembra os “blocos do eu
sozinho”. Em São Paulo, estado volta e meia em conflito com o resto do
País, a direita brega patrocina intervenções surrealistas sem acordo
prévio sobre o propósito da perturbação do trânsito. Augustos
integrantes da judicatura disputam o horário televisivo com escaramuças
entre bandos de traficantes. Há um esbanjamento de despudor, ausência de
autocrítica, intermináveis confabulações pré-ministeriais, além da
conhecida opacidade do governo. Tudo a deixar a leve impressão de que os
verdadeiros espetáculos em um só ato, ou vários, estão em exibição
alhures. A rotina pós-eleitoral, que deveria ser pacífica, está em
ebulição à revelia das autoridades recém-eleitas.
A insaciável antropofagia brasileira
converteu o “impedimento”, mecanismo de destituição de autoridades
públicas, em alavanca para a nomeação de ministros. Está aí o
surpreendente novo ministro da Fazenda que não me deixa mentir, embora
condenado a ser, ele próprio, deglutido: pelos conservadores, por ser
Joaquim Levy de menos, pela esquerda, por sê-lo de mais. Em qualquer
caso, é improvável que reconquiste a identidade pretérita. Ele e os
demais figurantes em processo de escolha governamental estão sujeitos a
ampla rejeição ao simples anúncio de que estão cogitados para escalação.
A fonte escaladora não transfere segurança, mas doses da mesma
controvérsia de que padece no momento. Ninguém pode prenunciar qual a
face do governo em, digamos, seis meses.
A antropofagia continua na transformação
do saudável pluralismo organizacional democrático em máfias de
concorrência coordenada, com regras e procedimentos estabelecidos. É
adulto de anos o entrelaçamento entre competidores privados e nichos da
burocracia pública e ainda ignorada a extensão do sistema extrativista
assentado em extorsão e suborno. Hoje é a Polícia Federal que determina a
pauta relevante da política, precisamente pela elevada taxa de
imprevisibilidade quanto aos danos políticos e econômicos gerados pelas
investigações. A partidarização pretendida pela oposição, na torcida
pela declaração oficial de que o Partido dos Trabalhadores está
contaminado em estágio terminal pelo vírus da corrupção, não
prevalecerá. Já investigações paralelas começam a revelar alguns dos
escândalos a macular o longo predomínio tucano no estado de São Paulo, e
sabe-se que a era Aécio Neves, em Minas Gerais, não foi um primor de
lisura. Governo, oposição, Legislativo, Judiciário, grupos de pressão
eficazes (OAB, CNBB, jornalismo crítico sensato) terão de lidar, por bom
tempo, com um problema nada miúdo.
Não se trata de
advogar uma anistia generalizada pela comprovação da universalidade do
delito. A oportunidade é singular demais para exaurir-se na
contabilidade de malfeitos partidários. Há uma grave crise funcional do
Estado brasileiro que eleva de maneira intolerável os custos do governo e
do crescimento econômico. Consequentemente, aqui se joga com a
continuidade ou interrupção da distribuição iníqua dos sacrifícios
inerentes à trajetória de países emergentes. Os custos excessivos, o
sobrefaturamento, as propinas e mimos distribuídos não são, nem apenas
nem principalmente, uma agressão a acionistas e fideístas dos bons
propósitos de empresas gigantes, grandes ou médias.
Os recursos ilegalmente extraídos do
Tesouro Nacional, por empresários ou servidores públicos, apontam para
uma das habilidades antropofágicas de transformar o progresso material
em miséria social. Sim, os brasileiros poderiam usufruir um nível de
bem-estar superior se o Estado não fosse balcanizado entre grupos de
burocratas e máfias empresariais de concorrência controlada.
Se existissem países sem solução, o Brasil
pertenceria, talvez, ao grupo. Derrotados eleitorais tentam tornar sem
efeito a derrota. Poucos os ouvem, mas outros, com relativo poder
causal, ameaçam colocar sob suspeição o mandato dos vencedores. Esses
escolhem ignorar a possibilidade de que, segundo a lei vigente e as
conclusões da Polícia Federal, venha a ser impossível governar. Isso,
óbvio, se as conclusões forem aceitas tal e qual pelo Ministério
Público. Bem verdade ser praticamente impossível que o País pare de
funcionar e que a fantástica quantidade de obras em andamento, das quais
depende o futuro da população brasileira, seja interditada. Mas há que
resolver qual o destino dos implicados nos ilícitos. Livres é que não
poderão ficar.
Igualmente improvável que as eleições de
2014 sejam anuladas. Seria indigesto mesmo para alguns bons
antropófagos. Mas é certo também que o País não será governado segundo o
plano original e o Estado não obrará como dantes. Pois governar não se
resume a nomear ministros. Tampouco a exigir que prazos sejam cumpridos.
Mais do que a misteriosa reforma política, urge uma revisão estrutural
no modo de operação do Estado brasileiro, em seus órgãos de controle não
só a posteriori, mas de acompanhamento. E se o governo paira,
sem liderança política para além da administrativa, seria cautelar ser
informado de que ninguém está livre da antropofagia.
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Texto por Wanderley Guilherme dos Santos
Fonte: Carta Capital online, 30/12/2014 Imagem: Saturno devorando um filho, Francisco de Goya
A NASA criou, em 2014, um mosaico temático feito com 36.422 fotos de
pessoas de mais de cem países, tiradas por elas próprias e enviadas
através das redes sociais com a hashtag #GlobalSelfie. A participação
massiva é mais um reflexo do fenômeno da autofotografia, ou “selfie”,
que se tornou “a palavra do ano” em 2013 na opinião do prestigioso
dicionário Oxford da língua inglesa. E a “selfie” é um fenômeno que,
pelo visto, parece destinado a continuar indo bem além de 2013.
O
que leva as pessoas a compartilhar tantas fotos delas mesmas tiradas
por elas mesmas? Só em 2013, houve 1 milhão de publicações desse tipo de
imagem por dia! O fenômeno não é apenas resultado da atual facilidade
técnica para tirar fotos em qualquer lugar e a qualquer momento; também
existe algo de psicológico nessa manifestação cultural: as pessoas se
sentem, embora pareça uma redundância, protagonistas das próprias fotos,
não apenas por serem fotografadas, mas por se fotografarem.
Essa dimensão do protagonismo quer testemunhar com imagens que “eu
estive lá”, que “eu sou assim”, que “eu estive com Fulano”; e, com um
pouco de sorte, conseguir, quem sabe, alguma fama efêmera, caso a imagem
se torne viral.
O fenômeno selfie pode envolver também certos matizes patológicos. Em
maio de 2014, no “Giro d’Italia”, o ciclista alemão Marcel Kittel caiu e
um jovem se aproximou dele rapidamente; mas não era para ajudá-lo, e
sim para tirar uma selfie com o atleta. Atitudes semelhantes se repetem
com muitas pessoas no mundo todo e fazem parte do pano de fundo do
curta-metragem “Aspirational”, da atriz Kirsten Dunst.
No filme, Kirsten critica a cultura da selfie e a desumanização das
pessoas em tempos de Instagram. Vemos a atriz, no curta-metragem,
esperando alguém diante de sua casa quando passam duas garotas que a
reconhecem, se aproximam com seus smartphones na mão e, sem mais nem
menos, começam a tirar selfies com ela. Terminada a “sessão
fotográfica”, as jovens vão embora praticamente sem abrir a boca. “Não
querem me perguntar nada?”, indaga Kirsten, enquanto uma das jovens se
limita a perguntar à outra: “Quantos seguidores você acha que eu vou
conseguir com esta foto?”.
“Aspirational” é uma caricatura, mas tem fundamento bastante real.
Como não recordar o menino espanhol que se emocionou até chegar às
lágrimas por ter tirado uma foto com o jogador argentino Lionel Messi?
“O que foi que o Messi disse para você?”, perguntou um jornalista ao
menino. “Nada”, foi a resposta. Ele queria a foto, não as palavras do
craque.
As selfies não são algo novo. O mito grego de Narciso nos apresenta o
rapaz que se apaixonou pela própria imagem refletida na água e,
enquanto contemplava a sua beleza, caiu no rio e morreu afogado. Aquela
“selfie mitológica”, aplicada às circunstâncias atuais, pode servir como
convite para prestarmos mais atenção não somente a essa superexposição
vaidosa, mas também à falta de autenticidade das imagens manipuladas
para aparentar o que não somos.
Historicamente falando, a primeira selfie data de 1914 e a
protagonista foi uma adolescente de 13 anos: a grã-duquesa Anastácia, da
Rússia. No âmbito religioso, podemos citar o Santo Sudário e o manto da
Virgem de Guadalupe, duas “selfies” de peculiaridade sobrenatural. E,
indo ainda mais longe, a primeira de todas as selfies remonta ao próprio
Deus e tem como fundamento teológico a Bíblia.
O capítulo primeiro do livro do Gênesis, em seus versículos 26 e 27,
diz claramente que Deus fez o homem à sua imagem e semelhança. Será que
não podemos considerar a nós próprios como “selfies” de Deus? Neste
sentido, cada selfie humana de hoje em dia é uma imagem que reflete algo
de divino e que remete a Deus. Mas Deus é ainda mais original e tirou a
mais perfeita de todas as selfies: Jesus Cristo, que, muito além de
mera “imagem” de Deus, é Deus em pessoa feito carne.
As selfies, de certa forma, são expressões da capacidade criadora
semeada por Deus no coração humano e materializada em imagens. Não são
uma simples popularização da fotografia, mas expressões muitas vezes
instintivas que nos revelam um pouco do anseio de eternidade que temos
na alma. Cada foto é uma forma de dizer “eu existo”, “eu faço parte da
história humana” e, ainda mais profundamente, “eu sou imagem e
semelhança de Deus”.
'A Cidade & A Cidade' , distopia do autor inglês fala de cidades sob o tacão do arbítrio
Três vezes ganhador do prêmio Arthur
C. Clarke, o mais prestigiado da Grã-Bretanha para livros de ficção
científica, China Miéville ainda é um autor cult no Brasil, conhecido
apenas por fanáticos do gênero. Isso deve mudar com a recente
publicação, pela Boitempo Editorial, de A Cidade & A Cidade,
que venceu o referido prêmio há quatro anos, quando saiu na Inglaterra.
O livro é um dos favoritos de Miéville, autor influenciado por
Lovecraft e Mervyn Peake, mas principalmente por Ian Sinclair, também o
mestre de William Gibson, o pai do cyberpunk.
Expoente
da cultura geek (gente obcecada por tecnologia), Miéville nasceu em
Norwich há 42 anos, mas foi criado pela mãe em Londres. Mestre em
direito internacional e ativista político, ele é um desses autores que
surpreende pela habilidade em reunir num mesmo livro fantasias barrocas e
um credo político radical, que o fez criar um partido político nanico e
disputar (e perder) anos atrás um cargo pela Aliança Socialista
inglesa.
O mundo ficcional de Miéville é conhecido como Bas-Lag, onde
convivem a magia, o horror, a alta tecnologia e uma visão urbana
extremamente pessimista. Sua obra o conduziu no passado à liderança de
um grupo de escritores de um gênero conhecido como “new weird”, ou seja,
radicais que rejeitam o escapismo e carregam na ficção distópica. A Cidade & A Cidade
é isso: a investigação de um crime cometido numa cidade pós-soviética
chamada Beszel que, desafiando as leis da física, abriga no mesmo espaço
outra cidade, onde seus moradores, controlados por um governo
autoritário, ignoram a existência dos outros.
Miéville, gregário por natureza – ele adora jogar RPG –, deve
ficar escandalizado com um mundo em que os interesses individuais ditam
as regras e levam as pessoas ao isolamento. Nas duas cidades que
coexistem num mesmo espaço, os cidadãos são obrigados por uma autoridade
a ignorar o que se passa na urbe duplicada. Miéville, no entanto,
resiste ao apelo metafórico, evitando uma aproximação analógica com a
indiferença do mundo à dor e ao sofrimento alheio.
De qualquer modo, a violência da autoridade suprema que ameaça
os cidadãos resistentes à ordem de não olhar para os habitantes da
“outra” cidade, encontra correspondência evidente no mundo real. À
maneira de outro expoente da ficção científica, Philip K. Dick, que
cruzou a ficção futurista com a bestialidade policial do presente em Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? (livro que deu origem ao filme Blade Runner),
Miéville denuncia a vocação da urbe para o crime. No livro de Dick, um
caçador de androides buscava seus pares numa Babel arruinada pela chuva
ácida. Em A Cidade & A Cidade, China Miéville usa a figura
de um policial, o inspetor Borlú, narrador de sua história, para
investigar o assassinato de uma jovem que teria transitado ilegalmente
entre as duas cidades.
Miéville, autor de dez romances, além de contos e uma série em quadrinhos, terá outros livros publicados pela Boitempo (Perdido Street Station, The Scar e Iron Council). Ele falou ao Caderno 2 sobre o livro agora lançado e suas principais influências literárias.
Você disse certa vez que A Cidade & A Cidade é seu
livro favorito entre muitos que escreveu. Ele é mais ambicioso que os
outros em termos de cruzar a cultura geek (dos obcecados por tecnologia)
com filosofia política? Você estava pensando em Kafka ou Borges quando
criou as duas cidades que coexistem num mesmo espaço?
Não sei agora qual seria exatamente o meu favorito entre os
livros que escrevi – isso muda a cada dia –, mas está entre os que eu
considero os melhores. Como um alucinado por tecnologia com interesse
particular em filosofia política, tudo o que escrevo deriva da
intersecção entre ambos, especialmente A Cidade & A Cidade. Para o
meu gosto, consideraria Iron Council mais ambicioso, ainda que ele falhe
gloriosamente onde falha, mas A Cidade & A Cidade é igualmente
ambicioso no sentido de ter sido o ponto de partida, não só no tom como
na ambientação, um livro do qual muito me orgulho. Não estava pensando
em Borges, de forma consciente, quando comecei a escrevê-lo, mas,
naturalmente, ele é um escritor incontornável, no qual não se pode
deixar de pensar. Kafka, diria, era uma referência mais imediata. Diria
ainda que estariam mais próximos dois outros autores: Bruno Schulz e
Alfred Kubin.
Escritores de ficção científica costumam ser muito
reacionários – e me vem logo à mente o nome de Ray Bradbury. Seria o
selo “new weird” uma resposta política à ficção do passado,
caracterizada pelo mundo hierárquico de Ray Bradbury e pelas fantasias
de Tolkien?
Não sei se concordo que os autores de ficção científica são,
de modo geral, grandes reacionários, embora existam muitos entre eles.
De qualquer maneira, posso pensar em alguns de diferente origem e
posição – e talvez seja conveniente, a despeito da obviedade, repetir
que a posição política de um escritor não define a qualidade de seus
livros. O termo “new weird”, agora morto e sepultado, era certamente um
instrumento antirreacionário das tropas weird. Teve lá o seu momento.
Minha impressão é que esse momento acabou.
A Cidade & A Cidade pode ser lido como um livro
existencialista sobre duas diferentes cidades convivendo num mesmo
espaço e tempo, como se todos tivessem um doppelgänger repetindo os
mesmos gestos, algo na linha do William Wilson de Poe. Lembro que você
assume outras influências, entre elas Lovecraft, Melville e Ian
Sinclair. Escritores existencialistas como Camus são também referências
para sua literatura?
Até certo ponto isso é inevitável, pois eles estão no
substrato de nossa consciência cultural. Mas estaria mentindo se
apontasse Sartre ou Simone de Beauvoir como primus inter pares das
influências culturais que assumo de forma consciente.
Como seu credo político interfere em sua literatura,
uma vez que você evita as soluções morais do gênero ficção científica
para escrever livros não esquemáticos?
O verbo que você escolheu, “interferir”, é muito interessante,
embora reconheça que não o use de forma provocativa. Contudo, ele
conduz a uma noção oculta do que constitui a relação entre política e
ficção para qualquer autor, particularmente para quem é assumidamente
político. Para ir mais longe, crença política e compromisso podem,
claro, “informar”, “melhorar” ou “desenvolver” a literatura de alguém.
Já uma imbricação desastrosa da política na literatura pode levar à má
ficção. De minha parte, não vejo isso como um dilema. Sou um autor de
ficção e um escritor de esquerda – e um sempre dependerá do outro. Não
existe outro modo de escrever nem eu desejaria que existisse. A ficção
não existe para expor discussões políticas – para isso existe a não
ficção.
Desde seu primeiro romance, King Rat, que foi
publicado em 1998 e lançado no Brasil por uma pequena editora, o que
mudou basicamente no modo de você encarar a literatura? Você pretende se
dedicar mais a ensaios que à ficção no futuro?
Essa é uma boa pergunta. Sim, gostaria de escrever mais
ensaios e não ficção, embora deva usar “tanto quanto” em vez de “no
lugar” da ficção. À medida que escrevo, torno-me mais consciente da
prosa e dos perigos da autoparódia. Tenho um imenso senso de urgência,
pois estou entrando no “período intermediário” de minha carreira. Muitos
já escreveram sobre o “estilo tardio”, como Edward Said, por exemplo,
mas não sobre o intermediário, que, para mim, ou justifica a obra como
um todo ou sinaliza um completo fiasco.
Você escreveu contos, quadrinhos, roteiros para
role-playing games e textos acadêmicos. Qual é a diferença entre
escrever ficção e não ficção, para você? É melhor criar histórias do que
descrever o mundo real?
Não há melhor nem pior para mim. Acho que sofro de um complexo
de culpa, como alguém que tem um passado acadêmico, um ativista que
considera a não ficção mais importante. Conscientemente, quero me livrar
disso, mas é inevitável. Não creio que estaria apto a escrever numa
única forma. Menos porque escrever em múltiplas formas é triunfar, para
mim é uma oportunidade de falhar melhor.
Obras recentes do autor são híbridos literários
Em ‘Railsea’, ele cruza os monstros da juventude com épico de Melville, ambientando o livro num cenário apocalíptico
Se há dez anos você perguntasse a China Miéville se ele era
geek, a resposta vinha rápida: “Sim, sou completamente geek”. Ele
considerava lícito que um homem com pouco mais de 30 anos não abjurasse
sua adolescência passada entre dragões, monstros e jogos eletrônicos.
Miéville, hoje com 42 anos, mudou de direção, deixando um pouco de lado a
pulp fiction para unir alta tecnologia à alta literatura.
Assim, seus livros de ficção mais recentes, como Railsea
(2012), embora não recusem a fusão híbrida de gêneros, parecem mais
ambiciosos. Railsea é uma típica ficção científica, mas com imagens
arquetípicas, como os livros anteriores, cruzando os monstros da
juventude do autor com o épico – Melville é uma referência imediata
quando se pensa nas criaturas predadoras do livro, inspiradas na baleia
de Moby Dick.
A ambição de Miéville está relacionada à crença na literatura
fantástica como forma revolucionária, capaz de substituir o hermetismo
da academia, que o levou a abominar Cambridge quando trocou o Egito pela
Inglaterra na juventude, decidido a estudar antropologia.
Nesse sentido, é fácil entender a razão de Miéville citar Iron
Council na entrevista acima como sua criação mais ambiciosa, também
porque, além dos temas frequentes na obra de um marxista de formação – o
mundo sujo dos políticos, a revolução –, ele se dedica a explorar uma
história de amor homossexual. Não em busca de polêmica, mas para ser
fiel ao projeto do cruzamento híbrido entre fantasia, thriller político,
romance revolucionário e faroeste, gênero em que o homoerotismo não é
raro.
Esse apego a gêneros vistos como vulgares, subliterários, tem
tudo a ver com a ideologia desse socialista empenhado em desafiar o “bom
gosto” burguês. Para ele, há uma “afinidade estranha” entre políticos
radicais e a literatura fantástica – e, não por acaso, ele sempre cita
nomes como o do trotskista Steven Brust e do anarquista Michael Moorcock
como exemplos de subversão extrema.
Moorcock escreveu um estudo sobre a fantasia épica (Wizardry
and Wild Romance) que acaba com a trilogia O Senhor dos Anéis, definindo
Tolkien como um conservador antimodernista – o idílico território do
Shire, onde moram os hobbits na Europa mitológica do escritor britânico,
seria o doce lar seguro da burguesia, segundo o ensaísta. Tudo o que
está fora de Shire representa o perigo, multiplicando o temor da família
nuclear, que vê como ameaça aquilo que não é seu espelho.
Essa paranoica desconfiança reina em A Cidade & A Cidade.
Considere o exemplo da jovem do livro, assassinada na cidade de Beszel,
no cafundó da Europa, que divide com a cidade gêmea Ul Quoma o mesmo
espaço geográfico, embora com costumes diferentes. A fronteira entre as
duas é respeitada e ignorá-la é um crime – a garota morta, no caso,
estava envolvida com agitadores políticos e cruzou a linha divisória,
desafiando um poder secreto chamado Brecha. Em sua ingenuidade, ela é
como a Dorothy de O Mágico de Oz: quer voltar para casa, mas nem sabe se
esse lar existiu, de fato, algum dia. / A.G.F.
A CIDADE & A CIDADE
Autor: China Miéville
Tradutor: Fábio Fernandes
Editora: Boitempo Editorial(292 págs.,R$ 45)
Trecho do livro:
"Os poderes de Brecha são quase ilimitados. Assustadores. O que
limita a Brecha é apenas o fato de que esses poderes são altamente
específicos, circunstancialmente. A insistência para que essas
circunstâncias sejam rigorosamente policiadas é uma precaução necessária
para as cidades.
Por isso, esse equilíbrio arcano entre Beszel, Ul Qoma e a Brecha.
Em circunstâncias diferentes das várias agudas e indiscutíveis brechas –
crime, acidente ou desastre (derramamento de produtos químicos,
explosões de gás, um agressor com problemas mentais atacando através da
fronteira municipal) –, a comissão vetava todas as potenciais invocações
– que eram, afinal de contas, todas as circunstâncias nas quais Beszel e
Ul Qoma se desnudariam de qualquer poder.
Mesmo depois de eventos agudos, com os quais ninguém são poderia
argumentar, os representantes das duas cidades na comissão examinariam
cuidadosamente ex post facto as justificativas apresentadas para a
intervenção de Brecha. Eles poderiam, tecnicamente, questionar qualquer
uma delas:seria absurdo fazer isso..."
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Reportagem por Antonio Gonçalves Filho - O Estado de S. Paulo, 27/12/2014
Morder o fruto amargo e não cuspir
mas avisar aos outros quanto é amargo,
cumprir o trato injusto e não falhar
mas avisar aos outros quanto é injusto,
sofrer o esquema falso e não ceder
mas avisar aos outros quanto é falso;
dizer também que são coisas mutáveis...
E quando em muitos a noção pulsar
— do amargo e injusto e falso por mudar —
então confiar à gente exausta o plano
de um mundo novo e muito mais humano.
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*Geir Nuffer Campos nasceu em São José do Calçado (ES) no dia
28/02/1924. Foi piloto da marinha mercante e ex-combatente civil na Segunda Guerra
Mundial. Formou-se em Direção Teatral (FEFIERJ-MEC, Rio), mestre e doutor em
Comunicação Social pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), da qual foi professor. Sempre engajado nas lutas de seu tempo, foi um dos
fundadores do Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro e da Associação Brasileira de
Tradutores, hoje Sindicato Nacional dos Tradutores, de que foi presidente. Em 1962
candidatou-se a vereador na cidade de Niterói, mas foi derrotado.
Jornalista, colaborou no "Diário Carioca", "Correio da Manhã",
"Última Hora", "O Estado", "Diário de Notícias",
"Para Todos", Letras Fluminenses", "Jornal de Letras" e no jornal
"A Ordem", de sua terra natal.
Radialista, apresentou na Rádio MEC, por mais de 20 anos, o programa "Poesia
Viva".
Foi diretor da Biblioteca Pública Estadual de Niterói (1961-1962), transformando-a em um
centro cultural. É de sua autoria, juntamente com Neusa França — que fez a música
—, a letra do hino oficial de Brasília (DF).
Geir Campos faleceu no dia 08 de maio de 1999, aos 75 anos, em Niterói
(RJ).
* Poema extraído do livro "Geir Campos - Antologia Poética", Léo Christiano
Editorial Ltda. - Rio de Janeiro, 2003, pág. 89, organizada por Israel Pedrosa.
OBS. O governador eleito José Ivo Sartori (PMDB), do Rio Grande do Sul, reuniu o secretariado na
manhã desta segunda-feira (29/12/2014) para apresentar as metas do governo para 2015. Entregou o poema: Tarefa, aos secretários na sua primeira reunião.
Encontramo-lo menino. Depois com o assombro
bruto da adolescência. Em Roma, a visitar santos e igrejas como quem
visita um amigo. No trânsito, a orar, para que a Visitação aconteça na
vida daqueles que seguem no carro ou no autocarro. Encontramo-lo maduro,
reflexivo, a olhar para a família e a sociedade, com plena noção de
como soam politicamente as suas palavras. A ver o Evangelho na vida de
todos os dias. D. Manuel Clemente, Patriarca de Lisboa.
Todos temos uma noite
escura? D. Manuel Clemente viveu-a quando era um jovem rapaz. Há 50
anos. Descreu. Experimentou a estranheza de olhar em volta e o mundo ter
mudado de lugar. Angústia. Reergueu a sua fé, pedra a pedra, a partir
de Jesus. Farol.
A confissão é inesperada. O mundo podia ter estancado ali. Um certo mundo. O d’“o verbo de Deus encarnado”.
O
rio seguiu. Primeiro estudou História, depois fez-se padre. Foi prémio
Pessoa em 2009. É Patriarca de Lisboa desde 2013. Uma espécie de atador
de pontas numa escala que o excede, diz, com uma humildade que não
parece forçada.
É amável, simples.
Quatro e meia da tarde,
mosteiro de São Vicente de Fora. Chama para que veja a luz dourada do
Tejo. O rio parece ao alcance da mão. Ouvem-se os sinos das igrejas
vizinhas. Identifica uma a uma. O tempo estava razoavelmente contado,
mas deu a impressão de ter todo o tempo do mundo. Explico que gostava de
fazer uma entrevista em três passos: que andássemos pelos caminhos da
sua formação, os da espiritualidade e que fôssemos à dimensão política
que as suas palavras têm desde que ocupa o cargo de Patriarca. Gostou
especialmente de ter visitado o tempo mítico da infância. Um homem gosta
sempre de voltar a casa?
Não tardou que a noite caísse e se
ligassem as luzes. Quando me acompanhou ao elevador, estava nos
corredores do mosteiro um frio daqueles que se entranha nos ossos. Pôs o
sobretudo. Era preciso poupar a voz. Antes disso ofereceu um cartão de
Natal. Estendeu a mão. E Boas Festas.
Comecemos pela criança que foi. Que mais não seja nesta altura, pensamo-nos como meninos esperados, queridos pelos nossos pais. Nasci
em Torres Vedras em 1948, numa família católica. Em especial a minha
mãe. Fui para a catequese paroquial aos seis anos, mas o essencial —
Deus, Jesus, Nossa Senhora, orações — já tinha aprendido em casa. Os
meus pais tiveram cinco filhos, sobreviveram quatro; agora faleceu mais
um; somos três. A realidade que conhecíamos era a que víamos,
directamente. Vivíamos numa casa, na zona antiga de Torres. O meu pai
tinha uma indústria de moagem ali perto, que tinha sido do meu avô.
Havia uma praça, que era de terra. Foi o meu primeiro território fora de
casa. Brincávamos, os miúdos, com espadas que eram farripinhas de
madeira que íamos buscar a uma serração. Ouvia ao sábado à tarde a “Meia
Hora de Recreio” da Maria Madalena Patacho, na Emissora Nacional. Ainda
me lembro da música do indicativo. Esperávamos uma semana por meia
hora, para estarmos sentados aos pés de uma telefonia que era um móvel.
Porque é que era uma coisa tão esperada? Não
tínhamos outros programas. Não havia televisão. Recebíamos a revista
Cavaleiro Andante, antes tinha havido o Mosquito. Esse mundo de
referências é o primeiro que me ficou.
Aos seis anos, abriu-se o
espaço em duas direcções: a escola e a igreja. A catequese: era nuns
banquinhos encostados aos altares. Seguia-se a missa, que era em latim.
Depois brincávamos ao lenço no adro. Depois passavam uns filmes. Uns
filmes... eram uns slides. Ainda hoje, as imagens essenciais que tenho
são as das gravuras dos catecismos ou desses filmes.
O que é que marcava o calendário, o passo da terra? Era
muito ligado às festas. O Natal. Depois começávamos a preparar o
Carnaval. O Carnaval de Torres ainda é popular. Nessa altura era feito
com prata da casa. Fazíamos os cocottes para usarmos. Havia os assaltos à
casa deste e daquele a seguir ao São Vicente (22 de Janeiro): “Chegou
São Vicente, posso enganar toda a gente”. Logo a seguir, já estávamos em
plena Quaresma. Fazia-se a procissão do Senhor dos Passos, altamente
teatral.
Lembra-se bem do momento em que a missa passou a ser em português? Lembro.
Eu era, como então se dizia, menino de coro. Não se dizia acólito. Tive
de aprender a responder [em latim]. Não é que soubesse o que é que
aquilo queria dizer. É com o Concílio Vaticano II, que começa em 1962. A
missa em português e em Portugal começa uns dois, três anos a seguir.
Lembro-me, não tanto de a missa ter passado a português, mas do ambiente
do Concílio Vaticano II. Da descoberta. Do aprofundamento do que era a
Igreja. Os sacramentos, a celebração [vividos] de uma maneira mais
comunitária. O padre marcou-me muito. Joaquim Maria de Sousa. Esteve em
Torres 30 anos. Era um homem muito simples, muito afável. Capaz de
integrar as nossas ideias. Parecia que o mundo estava a começar.
Foi sobretudo por causa dele que quis ser padre? Eu
tinha na família a memória e a fotografia de um tio do meu pai que era
um padre franciscano. Tinha os livros dele em casa. Era um tal Frei José
da Assunção Rolim. Foi um pregador em várias partes do mundo. Mas a
minha ligação maior era ao padre da freguesia. Recordo que era muito
novinho, sete, oito, nove anos. Estava a ajudar à missa. Viemos para a
sacristia. Até me lembro do sítio. “Eu quero ser como o padre Joaquim.”
Engraçada, esta identificação.
O que é que ele inspirava?, a compreensão? A compreensão, a bondade. O cuidar dos pobres. Era um conjunto e batia tudo certo. Fiquei muito tocado por aquilo. Ainda hoje.
Aos
13 anos vim estudar para Lisboa, mas ia ao fim de semana. Estive no
colégio Manuel Bernardes e depois no S. João de Brito. Escutismo. As
coisas próprias da idade, sobretudo num ambiente católico. Depois fui
para a universidade. Formei-me em História em 1973. Essa memória viva do
padre Joaquim foi determinante para entrar no seminário, depois de ter
acabado o curso. Já me tinha apanhado o coração, o pensamento.
Porque é que não foi logo para o seminário? A
minha mãe sempre me disse: “Estudas primeiro”. Era uma mulher muito
religiosa, nada piegas. Colaborava em tudo. Na ajuda aos soldados do
Ultramar. Nas coisas artísticas. Esse temperamento também me marcou
muito.
Fui estudar. Quando acabei os estudos, entrei. No princípio
dos anos 70, havia muito poucos seminaristas. Tinha havido uma debandada
no final dos anos 60. No seminário onde entrei, nos Olivais, entre 68 e
70 passou-se de 150 (ou mais) seminaristas para dez ou 12. Quando
entrei, éramos 11. Pronto. Cada um tem o seu caminho. O meu foi um
bocadinho ao invés do que era o caminho de muitos.
Essa ida para História queria dizer também uma dúvida? Uma dúvida em relação ao que era o seu caminho. Não.
A minha casa foi sempre uma casa de História. Explico. A minha mãe
gostava imenso de História. O meu tio-avô padre também gostava. Era uma
família não muito numerosa, mas de gente que viveu muitos anos. Conheci
uma tia bisavó a bater nos cem. A minha avó materna nos 102. Ouvi
contar, numa casa para onde íamos no Verão, histórias da Patuleia, de
meados do século XIX. “A minha avó, quando entraram aqui, disse para
beberem o vinho que quisessem mas para não rebentarem os tonéis.” Por
isso, dá-me a ideia que esta propensão para abordar a realidade em
termos de durante, antes e depois já cá estava há muito tempo.
Durante a sua formação, figuras bíblicas como Moisés, Abraão, outras, inspiravam-no? Nenhum
se comparava à própria pessoa de Jesus. É uma figura que me cativou,
como cativa agora. É uma figura total. Uma vez conversava com um amigo. A
conversa era: porque é que somos praticantes e muitos outros deixaram
de ser? Ele saiu-se com esta: “É porque com Jesus a conversa nunca mais
acaba”.
Os textos (de que ouvi falar em casa, que ouvia na missa;
todos confluem nas narrativas evangélicas) são textos onde cabe tudo.
Cabe a vida, cabe a morte, cabe a saúde, cabe a doença, caibo eu, cabem
os outros, de uma maneira aberta. Quer dizer, há por ali futuro. São
textos que iluminam.
E as interrogações? Interrogávamo-nos
muito. Líamos as coisas do Teilhard de Chardin [jesuíta, filósofo,
paleontólogo] acerca da evolução. Líamos coisas de outras religiões. Uma
vez, o meu pai, estávamos numa estação à espera do comboio. Para me
desafiar, disse-me: “És católico porque nasceste numa família católica.
Senão podias ser protestante, muçulmano, hindu”. Aquilo ficou-me
[atravessado]. Resolveu-se assim: “Isso são filosofias, religiões. Mas
Jesus é uma pessoa, não é uma ideia. Esta vida é que me convence. E não
apenas a reflexão”.
Jesus aparece como um igual a si? É
um igual a mim, mas desafia-me para muito além de mim. As interrogações
que faz... Leio as páginas do Evangelho e não soam da mesma maneira.
Por exemplo, uma frase simples sobre o nascimento de Jesus: “Os pastores
foram apressadamente e encontraram Maria, José e o Menino deitado numa
manjedoura”. Quantas vezes li esta frase... Mas em relação à nossa
situação actual, 2014, receber um anúncio, ir apressadamente, encontrar
uma família, uma criança e um meio tão pobre como é a manjedoura... não
me sai da cabeça. Numa situação de pobreza, de desprovimento, acrescida e
para tanta gente, encontrar uma criaturinha tão frágil como uma criança
acabada de nascer — mas pode ser uma pessoa idosa, prestes a morrer — e
eu acreditar que a realidade absoluta a que chamamos Deus se revela
assim, não me sai da cabeça.
Estão aí contidas muitas
coisas. Quando se diz “apressadamente”, fala-se de urgência. Urgência em
chegar, em salvar, em cuidar, em continuar a olhar... ...
para a vida como ela acontece, assim, nestas circunstâncias. Vou-lhe
contar uma história passada. Eu devia ter 17, 18 anos. Estava no lar
universitário, no colégio Pio XII. Era um sábado à tarde. Parei no coro
da igreja. E de repente deu-me, não propriamente uma branca, mas uma
preta. Uma escuridão total. “Eu não acredito em nada disto.” Nunca me
tinha acontecido. Foi aquele momento. “Eu não acredito em nada disto.”
Deu-me uma angústia terrível, porque eu não me conhecia assim. Então e
agora? “Vou para Torres. Tenho reunião dos acólitos. Amanhã, a missa
onde vou acolitar. Entretanto vou passar pelos escuteiros católicos. Que
sentido faz isto tudo?” Fui para Torres na camioneta, num estado...
Disfarcei como pude. Recordo essa noite. “Espera lá. Nisto tudo, há
alguma coisa que não ponhas em causa?” E com uma evidência que nunca
mais desapareceu, pensei na pessoa de Jesus. “E ele fala na Igreja, não
fala?” Então, por causa de Jesus, a Igreja. “A Igreja somos todos, as
actividades.” Então, por isso, os escuteiros e os acólitos. “E Jesus
disse: ‘Fazei isto em memória de mim...’, como o padre Joaquim faz no
altar.” Então, por causa disso, a missa. Até hoje.
Foi importante descrer? Foi
muito importante. Desfez-se tudo. O que é que ficou? A pessoa de Jesus.
Passaram 50 anos. Isto mantém-se com a mesma força. Permanece mais
consistente, até. Vai passando provas, desafios. Dá-me ideia que já não
vejo mais nada senão a pessoa de Jesus e as outras pessoas todas n’Ele.
Esse momento escuro, em que o mundo se põe em causa... Foi uma angústia!
Poderia ser descrita como uma visitação maligna? Não
sou ninguém para me comparar aos místicos. Mas em todos eles há este
momento. Há um famoso místico que marca a espiritualidade ocidental,
João da Cruz. Tudo se passa à volta da noite negra. E nessa escuridão
brilha uma outra luz, que não é aquela que tínhamos antes.
Estava
a ouvi-lo e lembrei-me de uma imagem que não é escura, mas que tem a
mesma angústia. A do sacrifício do filho de Abraão. (Por exemplo, no
quadro de Caravaggio.) Até à última, não podemos crer que vai acontecer o
sacrifício, que Abraão é capaz de o fazer. Mas isso somos
nós [a pensar assim]. Não podemos esquecer que a imolação dos filhos aos
deuses não era uma coisa tão desabitual. Para Abraão, aquilo era
plausível. O que vai descobrir é que Deus põe à prova a sua fé. E que
não é preciso ir a esse ponto [sacrifício]. Nós, cristãos, acreditamos
que quem acaba por assistir, de certa maneira impotente, à morte do
filho é Deus. Acontece na cruz. O sentido do cristianismo é, na pessoa
de Jesus, Deus viver a aventura humana até ao ponto do abandono. E mesmo
aí manter-se fiel a si próprio. Recita-se aquele salmo em que ao mesmo
tempo está Deus e o abandono. “Meus Deus, meu Deus, porque me
abandonaste?” E cria-se um novo futuro. Há futuro, mesmo onde parece não
haver nada.
Pensemos ainda nas grandes figuras bíblicas e
nas parábolas que com elas vêm. Em que coisas pensou mais? Em que
figuras se fixou mais? Na adolescência deram-me muito vidas
de santos. Eu estava perto de um convento franciscano. O convento do
Varatojo onde vou desde criança. A figura de Francisco de Assis,
obviamente, e que fui descobrindo pouco a pouco. Do Francisco de Assis
simpático e primaveril, no qual é fácil entrar, ao Francisco de Assis
que vive tão intensamente a misericórdia de Deus. [Vive] o amor
subjacente a isto tudo, que nos recupera mesmo onde já ninguém nos
recupera. Francisco de Assis chorava por não ser capaz de retribuir essa
misericórdia de que se sentia inundado.
Outra figura que me tocou
muito, que conheci num livro pequenino: o santo da alegria, Filipe Néri.
Vive em Roma no século XVI. Vive intensamente a alegria. A alegria! Com
graça. Se vou a Roma, só se não posso é que não paro na Chiesa Nuova.
Vou lá falar com ele.
É a noção que tem?, a de que vai visitar alguém, falar com alguém? Sim. É uma visita que não dispenso em Roma.
Vai rezar? Ponho-me
ali ao lado. Sento-me a aprender. Vou também ao Gesù [igreja dos
jesuítas]. Com o Inácio de Loiola [fundador dos Jesuítas] também se
aprende muita coisa. Depois vou a Santa Maria Maior. Já agora passo por
São Clemente, que fica entre o Latrão e o Coliseu... [riso]
O
seu Clemente vem daí? Há clérigos que tomam nomes que não os seus de
baptismo. Por exemplo, Frei Bento Domingues chama-se Basílio. O
meu bisavô chamava-se Clemente José qualquer coisa. Teve 12 filhos; uns
foram Clemente, outros, Santos, outros, Rolim. O meu nome próprio é
Manuel e o meu apelido é Clemente.
Deixe-me perceber: nas suas visitas a essas igrejas, reza orações, pensa, entabula uma conversa? Acabo
por ficar calado. A minha oração é muito simples. Está muito marcada
pela liturgia da igreja. Portanto, os textos da missa de cada dia.
Alargada com aquilo a que chamamos a liturgia das horas, que antigamente
se chamava Breviário. Na oração pessoal, que faço todos os dias, há
muitos anos que rezo o rosário completo. Dantes havia três séries de
orações: os mistérios gozosos, lembrando a infância de Jesus, os
mistérios dolorosos, sobre a paixão de Jesus, e os mistérios gloriosos
sobre a ressurreição. O Papa João Paulo II juntou os mistérios
luminosos, que dizem respeito à vida pública de Jesus. Isto dá duzentas
Avé Marias, mais os Pai Nossos. Não deve haver muitos dias que não reze
[todos]. Aproveito o tempo. As deslocações.
Porquê? Para
que a minha imaginação não dispare e eu permaneça sempre ligado, com a
recitação dessas orações, aos episódios da vida de Jesus. As cenas em
que medito são as do dia-a-dia. Por exemplo, no tráfico de Lisboa, a
conduzir o carro. Penso no mistério da visitação. Maria leva Jesus até
Isabel. Rezo para que a vida das pessoas, dos carros, dos autocarros,
seja também uma visitação. Que levem Jesus umas às outras. Essas cenas
evangélicas contracenam com a vida das pessoas. Saem das páginas
bíblicas para o dia a dia. E ajudam-me a interpretar a vida, na sua
tragédia e na sua glória. As crianças que nascem, as pessoas que sofrem,
os outros que a gente encontra, os momentos de festa. [riso] Eu sou
muito simples, como vê. Gosto muito de ver estas coisas que, acredito,
Deus representou na terra.
O sagrado foi uma coisa que
encontrou sempre na vida de todos os dias, no humano. Quando pensamos na
palavra sagrado, uma primeira tradução disso é transcendência. Posso
interpretar assim o que disse? Pode. Acho que é isso o
cristianismo. Devo dizer que se não me tivesse sido apresentada de uma
maneira tão convincente, e logo em casa... Os primeiros gestos de que me
lembro: a minha mãe a pegar-me na mãozita e ensinar-me a fazer o sinal
da cruz. Se não tivesse conhecido esta figuração total da vida, da morte
e da ressurreição, Naquela pessoa, não sei se hoje seria religioso. Não
me convence nada do céu que eu não veja na terra. O que a palavra Deus
poderia sugerir no abstracto é no concreto que a apanho. O verbo de Deus
encarnado, para mim, é que é a religião.
Como é que lida com a falha, a injustiça, a ruína, com isso que estamos sempre a encontrar na vida de todos os dias? Estamos
no campo das virtudes teologais (aquelas que Deus infunde em nós),
estamos no campo da esperança. Jesus não ficou fora disso. Está a ver o
que é nascer, crescer, viver até aos 30 anos um Deus que até parece que
está a perder tempo! A fazer aquela vida de Nazaré da Galileia, de
carpinteiro.
O que acha que Ele esteve a fazer esses anos todos? Aquilo que a gente faz a maior parte do nosso tempo. A formar-se. A viver a vida de todos os dias. A trabalhar e a ir para casa.
Porque é que precisava de viver a vida de todos os dias? Porque
não se fez homem a fingir. Há um versículo precioso do evangelho de
Lucas: diz que Jesus aos 12 anos crescia em estatura, sabedoria e graça
cristã. Crescia! Isto é plenamente convincente para mim. Abre esperança.
Como encontrar esse fio de luz nestes anos em que Portugal vive na dificuldade? Encontro
pessoas que são para mim lições magníficas. É pena não podermos abrir
um telejornal diário com gente de todos os dias. Gente que perdeu o
emprego, que sobrevive em condições precárias, que perdeu pessoas. Às
vezes estou pesado. Pesado com coisas que tenho de levar por diante. Vou
a comunidades e vejo gente que vive tragédias. Nem sei onde vão buscar
maneira de ajudar outros. Fico tão agradecido, não é?
Passei esta
manhã com a Cáritas. As campanhas que fazem são as mais correspondidas
na sociedade portuguesa. As pessoas têm uma esperança preenchida. Não é
uma esperança teórica.
Essa é a toada que mais se ouve? Ou é a dos desmobilizados? A
que mais se ouve será a dos desmobilizados. Entramos num outro campo,
que não sei como é que se vai resolver. Não quero dizer que não sei se
algum dia se resolverá. Ligo o noticiário das sete. Às vezes não dá
vontade de enfrentar a vida. Interrogo-me. Porquê esta atracção pelo
abismo quando há alguns troncos a que nos podemos agarrar na derrocada?
Como
historiador, sabe que a História é feita de fluxos e refluxos. O último
ciclo, na Europa, tem 70 anos. Se pensarmos no reconstrução no
pós-Segunda Guerra... Ou se pensarmos no ambiente antes da
Primeira [Guerra], na Belle Époque, no princípio do século XX. Parecia
que estávamos a atingir quase tudo o que era bom. A factura da Segunda
Guerra foi mais consciencializada, com as imagens a que tivemos acesso
do Holocausto. O socialismo de tipo comunista, esperança de tanta gente:
começou-se a saber o que tinha sido aquilo na União Soviética, os
gulags. Entrámos nos tempos da desilusão pós-moderna. Começámos a
refluir para nós próprios. Que cada um viva o que sentir, o que quiser,
no momento em que está, e se deixe de sonhos. Estamos muito
negativistas.
Falta-nos uma grande narrativa? Não
sou propenso a grandes narrativas. Não sou propenso a ideais que são
tão ideais que acabam por ser como aqueles discos do Newton, dos antigos
laboratórios de Física. Tinham várias cores, mas quando se punham a
rodar, ficava tudo pardo. Gosto mais de cor por cor. Pessoa por pessoa.
Facto por facto. Exactamente porque sou cristão, o grande desígnio é uma
criança num berço.
Estamos esvaziados de ideologias. Estamos
receosos. Desconfiados. Vou dizer-lhe uma coisa que digo por blague.
Mas não é só. Quando me perguntam qual é o chefe de Estado que mais
admiro (juntando reis e presidentes) destes quase nove séculos que
levamos, digo que é o D. João VI.
Porquê? Era
uma pessoa muito pouco ou nada dotada para as funções que teve. Era
pacato, com gostos muito simples. No fim dos anos 1880, quando toda a
Europa desaba com a Revolução Francesa, com a loucura da mãe (D. Maria
I), acaba por ficar no centro da governação. Aguenta, no fio da navalha,
estar bem com franceses e ingleses. Parte precipitadamente para o
Brasil. Napoleão, que depôs sucessivamente reis e príncipes da Europa,
dirá mais tarde, em relação a D. João VI, que foi o único que o enganou.
Aprecio figuras assim. Um homem de bom senso, dedicado. O Oliveira
Martins diz que, se tivesse vivido, teria sido o melhor dos reis
constitucionais.
Gosta de uma figura de quem não se espera tudo, que não tem uma aura messiânica que tantas vezes é pedida. Sim, e que é boa pessoa e tenta conciliar o inconciliável. Não sou de grandes heróis. O heroísmo é o de todos os dias.
Usou
a palavra desconfiança. Quando as pessoas sentem o dia a dia minado
pela pobreza, descrêem. Para já, do futuro. Depois, do outro. Muitas
vezes de Deus, se o têm com elas. Sobretudo se a sua crença
não é cristã. No cristianismo não temos nenhum seguro de vida. Temos a
vida segura de outra maneira. Porque o princípio permanente de Deus
continua. Mas não segura no sentido de uma ferradura ou de uma pata de
coelho. Quem tem este tipo de muletas na sua relação com Deus, é natural
que as perca.
Ferradura, pata de coelho... usa umas expressões de que não estamos à espera. Há
por aí umas religiões que não passam muito disso. Garantias.
Assistência. Valem o que valem. E às vezes não valem nada. [Por causa]
da desconfiança em relação às estruturas de apoio, estamos numa fase
pós-política e pré-política.
Explique. Quando
falamos em política na Europa, e nos últimos 500 anos, estamos a falar
de uma organização que foi crescendo, e que, já no século XX, nos foi
garantindo o Estado e o Estado Social. Descansámos muito nessa
organização, confiámos nela. Hoje, isso está muito abalado. Não temos,
em relação ao Estado nem às figuras do Estado e da política, o
sentimento com que fui criado nos anos 50. Seja de que partido for,
qualquer político que aparecer, não pode contar com uma confiança à
partida. Tem que a ganhar. Arduamente e todos os dias. Nesse sentido,
estamos num tempo pós-político.
Também estamos num tempo pré-político
no sentido em que precisamos de criar uma organização (que não é só a
nível nacional — é muito preponderantemente a nível internacional) em
que a política e as escolhas sejam outra vez garantidas. O Papa foi a
Estrasburgo e disse coisas importantíssimas, lembrando que a Europa foi
criada por pessoas que acreditavam no valor e na dignidade da pessoa
humana, que é preciso reforçar a actividade política que serve realmente
a pessoa humana. Não pode ser hipotecada a jogos de finança que ninguém
sabe definir, nem sabe que rostos mandam.
Sendo um tempo pré-político ou pós político, estamos desasados da política, em qualquer caso. Sim.
Mas é absolutamente necessária, porque vivemos na polis. O que é que na
sociedade sobrevive entre o pós-político e o pré-político? Famílias.
Estamos a regressar de outra maneira, com muitos contornos e com muita
problemática à mistura, a realidades familiares. Por vezes como única
segurança possível. Até económica. Os avós que o digam. Outras vezes
como zona de conforto, de suporte afectivo. Parecia que estava em crise.
Que era menos valorizada. A família alargada. Os encontros de fim de
semana. O regresso a casa. As famílias são mais antigas do que os
Estados.
Está a dizer que com a crise houve um recentramento no espaço de confiança que a família representa? É
evidente. Reparo nisso constantemente. Na Igreja Católica estamos a
passar pelos sínodos que o Papa Francisco convocou. O deste ano e o do
próximo ano. Uma reflexão à escala mundial sobre a realidade familiar.
Como é que os vê? Vejo
com muita... expectativa é pouco. Ver à escala mundial, como vi, em
Roma, bispos, também leigos, empenhados nos serviços familiares, a
ressaltar isto mesmo — que a sociedade não pode perder este primeiro elo
de sociabilidade que são as famílias em que nascemos e crescemos e
onde, pelo menos pela adopção, os que não têm família possam crescer...
Os Estados, as organizações políticas, não podem passar ao lado delas.
Está-se a reparar: quando o resto falha, é o que aguenta.
O Papa Francisco interroga o que é a família hoje. Essa interrogação e definição mexe com dogmas da Igreja. Há
uma proposta cristã para a família, que é a aquela que Jesus Cristo
formulou. Sai o homem de sua casa, a mulher de sua casa, unem-se os
dois, formam uma pessoa. Na linguagem do evangelho, [fundem-se] numa só
carne. “Não separe o homem o que Deus uniu.” É uma proposta cristã, que
não é universalmente aceite. Acreditamos que bem entendida, bem activada
e bem acompanhada é a que melhor coincide com as aspirações humanas a
uma união profunda, de uma vida continuada que se vai desdobrando, dos
filhos para os netos.
As antigas sociedades estavam baseadas nas
famílias, cristãs ou não-cristãs. Tinham sempre a conjugação
homem-mulher em relação aos filhos e ao património. (A palavra
património soa perto da palavra matrimónio.) [Por vezes] legalmente
reforçadas. Hoje não é assim. Mesmo na legislação de alguns países como o
nosso, há permissões legais que não coincidem com a nossa proposta
cristã do matrimónio. O que é que isto quer dizer? Que quem é cristão
tem que levar a sério a proposta cristã sobre a família, apoiá-la. Tudo
quanto seja proporcionar, manter, acompanhar a realidade familiar é uma
prioridade política.
A metamorfose da sociedade e da
família é tal (por exemplo, no número de recasados ou de casais
homossexuais; estes não são um grupo maioritário mas correspondem, cada
vez mais, a um grupo de iguais, considerados como tal, quer de um ponto
de vista fiscal quer no acesso ao matrimónio); a metamorfose é tal que
não pode ser ignorada? Tem que ser compreendida e integrada dentro das
balizas da Igreja? Casos desses podem não coincidir, e às
vezes não coincidem com a proposta cristã. Para nós, que acreditamos na
bondade da proposta evangélica da família, isso exige-nos mais em termos
de presença e reforço da realidade familiar cristã, respeitando outras
realidades que estão aí, na sociedade, e que nos merecem todo o
respeito, como qualquer pessoa nos merece.
Sinais de abertura? Temos
sempre e só, como legitimidade e programa, a pessoa de Jesus. A
actuação dele? Propunha. Não impunha. Com os que o queriam seguir, era
exigente. “Se quiserem vir, é um caminho estreito.” Vamos seguindo, mas
no fundo, e no fim, há apenas um juízo. Que não é nosso. É de Deus.
A vez anterior em que o entrevistei era bispo do Porto. O que mudou na sua vida desde que é Patriarca? Não
é desde que sou Patriarca. É desde há quinze anos, quando o Papa João
Paulo me nomeou bispo-auxiliar de Lisboa. As funções episcopais: disse
que é ser uma espécie de atador de pontas. Estamos no serviço das
comunidades, dos movimentos, dos serviços religiosos, dos leigos, dos
casais tentando atar pontas. Fazer a união das comunidades, das
iniciativas. Puxa por aqui. Puxa por acolá. E já agora tentar não
esquecer este. Venha cá. Conjugar esta actividade com aquela. Cada vez
tenho mais pontas para atar.
Aquilo que diz é cada vez mais ouvido e tem uma ressonância política. Pois. Admito que sim. Isso ainda me responsabiliza mais.
Interveio
durante a crise dizendo que o povo português estava no seu limite,
estava no fio. Diz isso como quem diz uma mensagem política? Tem
necessariamente consequências políticas. Tem a ver com a sociedade.
Dizia e em muitas circunstâncias volto a dizê-lo. O limite é também um
enormíssimo desafio. Não é a primeira vez que estamos em situações
limite. No fim do século XIV há um certo limite em relação ao que havia
até aí. Estava a começar um outro tempo. Precisávamos de recursos que
não tínhamos. Esse limite ultrapassou-se, até geograficamente. O final
do século XVI, quando desaparece praticamente toda a elite portuguesa no
fatídico dia 4 de Agosto de 1578, em Alcácer-Quibir, é um limite. Estes
limites são cíclicos. Foram também limites que permitiram que déssemos
um salto em frente. É do que precisamos agora. Acredito que quando
sairmos destes tempos tão difíceis e complexos... A palavra tem sido
muito usada.
Em que sentido específico a usa? O
Papa tem-se insurgido contra a preponderância do financeiro sobre o
económico e o político, e perguntado: “Mas quem é que manda? Quem é o
rosto disto?” Em tempos políticos sabíamos. Era o governante tal.
Portanto, há uma enorme complexidade. Mas espero que não vençamos esta
complexidade para ficarmos como estávamos antes. Antes também não
estávamos bem. As causas desta crise já lá estavam. A perversão de um
sistema financeiro anónimo já lá estava.
Radica onde? Onde é que podemos situar o começo da crise, estes contornos? Por
isso digo que é complexo. Estou atento aos economistas, à academia. Não
estou completamente esclarecido. Se calhar ninguém está.
É muito auscultado por políticos? Acontece.
Vêm cá de um leque ao outro. De associações laborais a empresariais,
vários partidos. Há imensa gente de boa vontade em todos os meios. Cada
um na sua perspectiva. Algumas, podemos ligar. Outras, temos de ir a
votos para ver qual é aquela que [o povo] vai escolher. Não entro no
discurso de sistematicamente desvalorizar as participações políticas. “É
tudo igual”. Não, não é. Vamos ver uma por uma. Porque é que
valorizamos tanto o contraste e tão pouco a harmonia? Não quer dizer que
a realidade não tenha contrastes, não quer dizer que entremos num
angelismo. Mas porque é que é preciso gritar tanto? Também somos
estimulados a isso.
Há circunstâncias em que gritamos porque precisamos de nos fazer ouvir. Com
certeza. Sobre as manifestações: fazem parte da vida democrática. As
pessoas têm que ser ouvidas, senão têm de gritar mais alto. Apesar de
tudo, noto uma certa morbidez pelo que se podia concertar e não
concerta. Há um certo show.
A morbidez e a desistência,
nos últimos anos, de crise, são muito uma expressão de pobreza e de
revolta em relação à pobreza. Tem esta ideia? Nalguns casos,
é. Noutros, não seria necessário nem o mais útil. Por exemplo, o Papa
Francisco teve uma contribuição notável e reconhecida na aproximação
entre os Estados Unidos e Cuba. Houve mediações. Chamadas aos consensos
possíveis. Resolução de problemas concretos que ajudaram a resolver
outros mais complicados (como as trocas de prisioneiros). Houve vontade.
Uma boa vontade que pressupôs que o outro não era completamente mau nem
estava completamente errado. Dá-me ideia que muitas outras coisas anda a
fazer... Esta sua insistência na Turquia. Foi ao Extremo Oriente e
andou muito perto da China. É óbvio que é na China que quer entrar.
Uma palavra para religião? Vou
à etimologia mais provável (não é a única): ligação ou religação. O
mais provável é que a religião seja esta predisposição e necessidade de
nos ligarmos a algo. Eu acredito que é Alguém.
Se pensa em Maria, que imagem é que lhe ocorre? A
de uma transparência absoluta. Nos relatos evangélicos, Maria é-nos
apresentada como se fosse uma terra recriada onde pudesse aparecer um
homem novo. Da parte da terra o que havia era a disponibilidade total
para uma realidade que dela ia nascer e que a ultrapassava.
Hoje de manhã, na sua oração, em que coisas pensou? Tenho
uma imagem junto da minha cama com a Anunciação. Olho para lá e peço
que uma realidade nova aconteça no mundo. Maria disse: “Como é que isso é
possível?” E foi. Que seja hoje assim, também. Não sei como é que vai
ser. Pedem-me coisas que ultrapassam em absoluto a minha capacidade de
pensar, sentir, decidir, saber... Que seja.
Como é que é a sua imagem da Anunciação? A
mais clássica possível. Nossa Senhora aqui, o anjinho acolá. É uma
gravura do século XVIII. Já lá estava, no quarto que me deram. Penso
muito na Anunciação, no acreditar que é possível, no abrir-se à
mensagem, ao anúncio.
Voltemos a si menino. Como é que se chamava a sua mãe? Tinha
um nome lindo! Maria Sofia. Está a ver? Mais bonito não pode ser.
Maria, pelo que estamos a falar. E Sofia, pela sabedoria, que ela tinha,
muito. Morreu com 95 anos. A mulher mais bem disposta que conheci na
vida.
O influente estrategista americano diz que
há um “despertar político global”. Ele provocou fragmentação e
incerteza, e não há quase nada que os EUA possam fazer a respeito
Considerado um dos maiores estrategistas da política externa americana
no século XX, Zbigniew Brzezinski aconselhou todos os presidentes
democratas americanos desde Jimmy Carter (1977-1981). Brzezinski foi um
dos personagens centrais do combate à União Soviética na Guerra Fria e
previu a emergência da China, a decadência dos Estados Unidos, o
enfraquecimento do Ocidente e a importância crescente da tecnologia nos
movimentos políticos. Aos 86 anos, mantém febril atividade acadêmica e
publica um livro a cada dois anos. Brzezinski afirma que, apesar de
vivermos uma “era de tumulto, fragmentação e incerteza”, não há risco de
uma guerra global.
ÉPOCA – O senhor costuma dizer que há uma crise global de poder. O que levou a ela e quais suas consequências?
Zbigniew Brzezinski – Vivemos um período de instabilidade sem
precedentes. Há enormes faixas de território dominadas por agitação,
revoluções, raiva e perda do controle do Estado. A volatilidade decorre
da coincidência de várias mudanças estruturais importantes no sistema
internacional. O Ocidente não é mais dominante, os impérios acabaram. Há
o que chamo de “despertar político global”: uma tomada de consciência
sobre as injustiças, desmandos, desigualdades e explorações. É comovente
ver esse despertar produzir ondas como a Primavera Árabe. Mas ele não é
necessariamente um passo rumo à democracia. Em alguns casos, como na
Europa Central, onde a democracia tinha raízes mais profundas, há um
movimento contrário à democracia. Às vezes, essas revoltas aumentam o
extremismo e o fanatismo. Vemos um mundo em que há um enorme tumulto,
fragmentação e incerteza, em que não há uma única ameaça central, mas
várias ameaças diversificadas.
ÉPOCA – O que faz o período atual diferente de outros períodos
dramáticos como os anteriores à Primeira e a Segunda Guerra Mundial?
Brzezinski – Há muitas similaridades, mas não acredito no caos
de grandes guerras. Em 1914 e em 1939, as grandes potências tinham uma
visão estreita do mundo. Seus líderes estavam preocupados com questões
imediatas, acreditavam que poderiam resolvê-las com o uso da força.
Nenhuma das potências atuais tem essa visão, nem mesmo a Rússia, que
late, mas não morde. Os EUA perderam poder. A China observa as
turbulências geopolíticas à distância. Há os Estados-nação do Oriente
Médio, que têm alguma viabilidade geopolítica histórica: Turquia, Irã,
Israel e Egito; as potências asiáticas de segundo escalão, como Japão e
Índia. Essa profusão de protagonistas garante alguma estabilidade
mundial residual. Não teremos nada equivalente a 1914 ou a 1941, mas
caminhamos para uma época de grande confusão e caos reinante. Na
verdade, vejo paralelos entre o que acontece hoje no Oriente Médio e o
que aconteceu na Europa durante a Guerra dos Trinta Anos (série de guerras entre nações europeias entre 1618 e 1648): a ascensão da identificação religiosa como o principal motivo para ação política, com terríveis consequências.
"O Bric não existe como bloco. É apenas um amontoado de letras.
Deixou de ser considerado
uma alternativa séria."
ÉPOCA – Quais as consequências dessa nova ordem multipolar, que
alguns analistas chamam de “ascensão do resto” e outros de “nova
desordem mundial”?
Brzezinski – Não sei o que esses slogans significam. Discussões recentes a respeito do Bric (Brasil, Rússia, Índia e China) foram
baseadas em delírios ou apenas em conjecturas oportunistas, como ficou
provado. O Bric não existe como bloco. É apenas um amontoado de letras.
Deixou de ser considerado uma alternativa séria. Arriscaria dizer que
tais fórmulas, em larga medida, refletem o que tenho dito nos últimos 20
anos: vivemos um período de instabilidade sem precedentes, provocado
pelo despertar político global.
ÉPOCA – Qual o papel dos Estados Unidos neste mundo?
Brzezinski – O cenário hoje é mais complexo que há 20 anos. A
ascensão da China revelou um poder que já se equipara economicamente aos
Estados Unidos. Em breve, isso ocorrerá no âmbito militar. A conduta
dos russos também contribuiu para maiores incertezas. O fracasso da
Europa em desenvolver uma política e um perfil militar coeso reduziu a
capacidade americana de agir como um poder decisivo no mundo. A
fragilidade americana fica evidente na incapacidade de dar estabilidade à
política dinâmica, arrogante e imprevisível do Oriente Médio. Os
esforços americanos para produzir a paz entre Israel e Palestina não
foram produtivos, e a política do Oriente Médio se tornou cada vez mais
violenta. Dito isso, os EUA ainda são preeminentes. Mas não são mais
capazes de exercer poder hegemônico. Há vantagens nisso, especialmente
quando a política americana é equivocada. Mas isso gera um sistema
internacional instável e imprevisível.
ÉPOCA – O que provocou essa perda de influência americana?
Brzezinski – Ela é resultado de várias transformações de
significado histórico. Notadamente, a liderança inepta do presidente
George W. Bush contribuiu para esse desenvolvimento negativo. A invasão
ao Iraque em 2003 foi injustificada, uma vez que se baseou numa premissa
falsa. Sua condução desmoralizou os EUA em vários aspectos e contribuiu
para o crescente fanatismo no mundo islâmico. O presidente Barack Obama
foi mais sensato em sua abordagem. Mas mesmo ele não esteve preparado o
suficiente para adotar uma postura decisiva com relação a duas questões
que exigem uma solução construtiva: um compromisso com o Irã e um
comprometimento entre palestinos e israelenses. Em ambos os casos, uma
abordagem dinâmica teria sido mais produtiva.
"Apesar de tudo, Vladimir Putin não é uma ameaça séria,
não é um Hitler do século XXI"
ÉPOCA – O senhor foi um dos principais mentores de Obama. Ficou decepcionado com a política externa do governo dele?
Brzezinski – Não diria decepcionado, mas surpreso. Como quando ele anunciou, em 2011, que Bashar al-Assad (o ditador da Síria)
deveria partir. Não estava claro, para mim, por que deveríamos tirar
Assad do poder, ainda mais em face do que poderia vir no lugar dele. Não
havia nada na Síria nem sequer próximo à Primavera Árabe. Era uma
questão de uma guerra sectária, sunitas contra xiitas. A política
claudicante dos Estados Unidos contribuiu para aumentar o caos na Síria,
depois da entrada em cena de grupos hostis aos EUA, como o Estado
Islâmico. Obama adotou uma política autodestrutiva naquele momento.
Agora, estamos num caminho mais correto, envolvendo nas conversas não só
os europeus, mas também russos, chineses e iranianos.
ÉPOCA – O senhor era conselheiro de Segurança Nacional durante a
Revolução Islâmica no Irã, em 1979. Acredita numa aproximação dos EUA
com o Irã?
Brzezinski – Bem, algo acontece, porque houve algum diálogo
indireto entre EUA e Irã, ainda limitado, mas sem precedentes,
considerando as duas últimas décadas. Os iranianos estão esgotados e
cansados com as sanções econômicas. É o momento para nos aproximarmos
deles. Basicamente, vejo o Irã como um autêntico Estado-nação: tem a
coesão que falta à maioria dos países do Oriente Médio e é um Estado
mais solidamente definido que o Egito. O problema do Irã é sua ameaça
potencial para Israel.
ÉPOCA – Israel acusa o Irã de mentir sobre o programa nuclear. Os iranianos são confiáveis?
Brzezinski – Que país não mente quando se trata de relações
entre Estados? Os EUA foram acusados de mentir diversas vezes. Em
algumas delas, mentimos mesmo. Suspeito que os israelenses também tenham
mentido, ocasionalmente. Dito isso, o que podemos fazer? Só poderemos
negociar com algum país que tenha a chancela de Israel? Há uma certa
histeria quando se trata do programa nuclear do Irã. Os iranianos não
são suicidas, não se lançarão a uma corrida desenfreada para fabricar
uma bomba nuclear e jogá-la sobre Israel, país que tem de 150 a 200
bombas nucleares e as Forças Armadas mais poderosas do Oriente Médio.
Por que o Irã faria isso? Tolice. Eles apenas querem acabar com as
sanções que atrapalham o país, tendo o que mostrar à população.
ÉPOCA – Cada vez mais a Rússia tenta controlar antigos satélites soviéticos. O expansionismo de Vladimir Putin é preocupante?
Brzezinski – A Rússia parece inclinada a aproveitar sua
capacidade militar para pressionar seus vizinhos mais fracos. O uso da
força na Europa, pela primeira vez desde o fim da Segunda Guerra
Mundial, teve um efeito negativo sobre a estabilidade internacional. A
ação russa na Ucrânia, o uso da força para conquistar um território, é
inaceitável no século XXI. É uma ameaça à ordem mundial e reflete as
condições de deterioração dessa ordem. É por isso que os países
interessados em preservar a paz mundial devem se unir e pressionar a
Rússia a encarar a realidade. A ausência de alguma acomodação forçará a
Rússia a assumir a postura de um satélite chinês. Torcerei para que
mesmo a China se torne mais ativa e franca sobre a questão da conquista
de um território por meio do uso de forças militares. Apesar de tudo,
Vladimir Putin não é uma ameaça séria, um “Hitler do século XXI”, ainda
que parte de sua linguagem e seus trejeitos mais recentes sejam
reminiscências de Hitler e Mussolini.
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Reportagem por RODRIGO TURRER
Fonte: Revista Época online, 28/12/2014 10h00
- Atualizado em
28/12/2014 15h03