quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

VIVER NÃO SIGNIFICA APENAS EXISTIR

Silvano Agosti

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Viver não significa apenas existir
Por: Silvano Agosti
Transcrição traduzida: Mario S. Mieli

As três gaiolas do ser humano 

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O ser humano vem ao mundo e a primeira coisa que faz ao chegar é lançar um olhar maravilhado sobre essa realidade, e daí passa a amá-la imediatamente. Depois, o que acontece, vai sabê-lo, infelizmente, desde a infância. O que acontecerá é que ele será negado, como essa grande obra prima da natureza, esse imbatível mistério que é o ser humano… será inexoravelmente, ferozmente, desmantelado e reduzido a um papel, tornando-se um contador, um aluno, um marido, um funcionário, um Papa, um Presidente, etc., na procissão dos papéis que mantém prisioneiros todos os seres humanos. É preciso dizer logo que, por isso, o ser humano ainda não conseguiu realmente habitar neste planeta.

É fundamental que todos saibamos quais são as gaiolas mortais que cada forma de poder pôs em ato para conseguir demolir esse colosso de mistério que é o ser humano.
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A primeira gaiola consiste em criá-lo em um espaço pequeno, um pequeno cárcere que é o apartamento, a casa. 

A segunda gaiola é constringi-lo, quando ele só precisa correr, brincar, ser ele mesmo, e forçá-lo a ficar sentado para aprender, nada menos, que a escrever; por que? Por que se é obrigado a aprender a escrever aos 5/6 anos? Normalmente, o ser humano aprenderia de modo verdadeiramente perfeito a escrever se o fizesse chegando sozinho a sentir essa necessidade, com o desejo, por volta dos 11/12 anos, mas o que conta é bloqueá-lo, não permitir que ele brinque, corra, porque se ele brincasse, corresse até os 18 anos, depois seria impossível fazê-lo parar, pelo resto da vida… de brincar, de criar, de demonstrar sua própria unicidade, porque cada ser que vem ao mundo é único e irrepetível, como se sabe, não só quanto ao DNA, não só quanto às impressões digitais, mas em uma criatividade que, se pudesse exercitá-la, daria cada vez uma versão nova, fascinante, imortal da realidade… 

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A terceira gaiola, talvez a mais letal, é o trabalho. A obsessão do trabalho já começa por volta dos 13 anos, quando o rapazinho diz “Mas eu não gosto da escola, não quero ir…”, então lhe dizemos: “Olha que se você não conseguir o diploma, depois você não achará trabalho… olha que se depois não frequentar a universidade, será difícil achar trabalho”, mas o que significa “achar trabalho”? O ser humano não precisa trabalhar, precisa é de boa comida, de um lugar seco para dormir. É possível dar uma casa de presente a 7 bilhões de pessoas com 1/5 daquilo que se gasta a cada ano com os exércitos, as despesas militares, para não falar das coisas magníficas que poderiam ser feitas com todos os investimentos feitos com droga, com prostitutas, com hospitais –aqueles inúteis-, com penitenciárias. Essa gaiola do trabalho, aos poucos, convence, infelizmente, a todos, que se não trabalharem 8/9 horas por dia, não poderão ficar neste planeta, e quem trabalha 8/9 horas por dia sabe muito bem que pode existir, mas certamente não viver! A coisa interessante é que os aparatos de poder que forçam os seres humanos a essa convicção absolutamente demencial – que seja inevitável trabalhar 8/9 horas por dia – até hoje em dia, com as máquinas substituindo em todo canto a fadiga e que permitiriam que o ser humano pudesse expressar-se, finalmente, no trabalho, sobretudo porque, desde sempre, quem trabalha 3 horas por dia e tem 21 horas para viver, é muito mais produtivo de quem é forçado a trabalhar 8/9 horas por dia todos os dias; portanto em 3 horas é possível produzir de modo fantástico aquilo que lhe compete. 

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Dizemos produziria porque, atualmente, somos 5 ou 6 em toda a Europa a trabalhar só 3 horas por dia, mas o indivíduo trabalharia de boa vontade 3 horas por dia, descobrindo que nas outras 21 poderiam ser inventadas tantas coisas que renderiam ainda mais produtivas aquelas 3 horas de trabalho, além de se tornar possível conhecer, enfim, os próprios filhos, e depois, finalmente, não se estaria preso à terceira gaiola letal, que é a 3 Bis, ou seja, a convivência: o fato de que um ser humano que encontra uma pessoa que ama seja forçado a conviver na mesma pequena casa ou grande casa –dá no mesmo – não tendo nunca a possibilidade de se alegrar, de ficar um pouco consigo mesmo/a, e descobrir, sobretudo para as mulheres, que ficar com o próprio parceiro não nasce de uma necessidade de afetividade, mas de uma necessidade da construção civil; não têm outra escolha, de modo que ficam ali e isso explica porque se diz que 70% dos homicídios e das violências ocorrem nesta gaiola 3 Bis, que é a da convivência dentro da própria casa. 

Não confundam a existência com a vida. 

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Vimos há pouco que bastaria reduzir de 1/5 as despesas militares para dar uma casa a 7 bilhões de pessoas, assim como duas refeições quentes por dia; todavia há uma gaiola ainda mais feroz que é aquela de vender barato, sem percebermos, nossa própria criatividade, ou seja, a nossa própria visão do mundo. Alguém dizia: “Mas pra que serve uma visão do mundo?” Como “para que serve”? A humanidade teria 7 bilhões de visões diversas da realidade e, portanto, teria uma imagem poderosíssima, extraordinária, alguém poderia até ousar dizer “divina” da realidade humana. Dito isso eu poderia até não dizer mais nada, mas me interessa fazer compreender que quem trabalha duas ou três horas é realmente tão produtivo que merece um salário maior daquele que recebe trabalhando 9 horas, porque, na grande grande maioria dos casos, o trabalhador recebe 1/30 daquilo que produz, mesmo quando produz mal, um trabalhador que ganha 1.000 euros por mês, na realidade produz, como mínimo, 30.000, então se trataria simplesmente de entender que o destino de 7 bilhões de pessoas está nas mãos de um grupo muito pequeno de pessoas, um grupo, talvez, não sei, mas ouso dizer, que está certamente abaixo de 100, os quais investem os 80% de todos os bens da Terra só para defender os próprios privilégios. E quais são seus privilégios? Brincar com o mundo, decidir as guerras, defender o comércio de armas, de drogas, de prostitutas, sobretudo de informações falsas, preguiçosas, nocivas. Pensem que um rapaz de 21 anos nascido em Nova York terá assistido a 130 mil homicídios na televisão. A pedagogia da morte, porque vocês terão notado que desde o texto nos pacotes de cigarro “este produto mata” até essa obsessiva narração de homicídios na televisão, o interesse central do pequeno núcleo de monstros que gerenciam o mundo é regular a mortalidade, não produzir a vitalidade, mas regular a mortalidade; então, por exemplo, construíram essa válvula pela qual morrem 35 mil crianças de fome, naturalmente poderíamos dizer também, virando a cabeça para não ouvir o fedor dessa nojeira, que só na Itália são destruídas 400 mil toneladas de alimentos por ano, por causa de prazos de validade que vão vencer! 

De qualquer maneira, de 1960 até hoje, morreram cerca de 1 bilhão de crianças de fome. Carregamos esse peso em todas as nossas consciências, também sobre a consciência de quem não sabe disso, e se exprime no desconforto profundo, visceral, que quase todo o mundo hoje sente. Foi globalizado sobretudo o desconforto e esse desconforto depende da obrigação de viver em um planeta que é um dos mais extraordinários planetas que existem no universo inteiro. O único que tem aparência azul a partir do cosmos, porque deveria hospedar a vida, e eu desejo a esse planeta e também aos amigos do Beppe Grillo de se recusarem, a partir desse momento e para sempre, seja pela razão que for, de confundir a existência com a vida, viver quer dizer saborear a eternidade dia após dia, nascendo a cada manhã e morrendo no sono de noite, e ressurgindo dia após dia! 

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Esse são meus votos, e meus votos têm um veículo fundamental, sem o qual desaparecem. Estão na palavra talvez mais afetada da história da linguagem humana, na palavra “amor”. Construam um território de amor a qualquer custo, mas não uma gaiolinha pequenina com uma arvorezinha parcamente frondosa, mas um território que hospede uma floresta de sentimentos, e então será muito difícil contrabandear o termo vida, enterrando-o na tumba da existência.

( … )
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FONTE:  http://imediata.org - acessso 31/12/2014

A POÉTICA DA CORRUPÇÃO

Arnaldo Jabor
 

Com a corrupção a carne apodrece, a fruta definha e o alimento se espedaça em nossas mãos. 

A corrupção enfeia nossos corpos e apaga a luz que brilharia em nossas almas, com a corrupção ninguém faz uma casa de boas pedras, com a corrupção ninguém pinta um paraíso no muro de uma igreja, nenhuma pintura será feita para durar nem para brilhar diante de nossos olhos, com a corrupção seu pão cada vez mais será de farrapos dormidos, seu pão será seco como papel sem trigo da montanha e sem nutritiva farinha, com a corrupção ninguém encontra um bom sítio para fazer sua casa, os tecelões são afastados de seus teares, a corrupção embota a agulha nas mãos das donzelas e desbota a graça dos tecidos, Dante não nasceu da corrupção, nem Piero della Francesca, nem Giotto, a corrupção enferruja o cinzel do escultor e as estatuas não se erguem, o azul vira um câncer na corrupção e não se bordam de ouro as vestes púrpuras, a corrupção apunhala a criança no ventre e a esmeralda não será lapidada e mata o prazer dos jovens amantes deitando entre seus corpos paralisados na cama, cadáveres sentarão na mesa dos banquetes sob as ordens da corrupção, a corrupção é obesa, a corrupção cria esposas desprezadas se consumindo e amantes cobertas de pérolas e juras de amor, a corrupção cria súbita dignidade em tribunais, cria ladrões de olhos em brasa, dedos espetados, uivos de falsas virtudes, negando os contratos de gaveta, os recibos falsos, os laranjas desdentados nas portas de empresas inexistentes. A corrupção provoca brados de honradez, socos nas mesas, babas indignadas nas negações em tribunais, hipócritas lágrimas de esguicho, punhos batidos no peito e clamores a Deus. A corrupção se sente superior à ridícula moralidade de classe media. A corrupção tem uma única vontade: vingar-se de inimigos, cobrar lealdade dos seguidores, exigir pagamentos de propina em dia.

A corrupção cria firmas sem dono, sem obras, vagando num deserto jurídico e contábil que leva ao caos proposital, a corrupção aumenta a amizade entre as famílias de safados, cria os cálidos abraços, os sussurros de segredo nos cantos das varandas, o piscar de olhos matreiros, as cotoveladas cúmplices, os charutos comemorativos, vastos jantares repletos de moquecas e gargalhadas, piadas, dichotes, sacanagens jucundas. 

A corrupção valoriza a norma castiça da língua, palavras que dormem em estado de dicionário. A corrupção traz de volta interjeições e adjetivos raros: "ilibado", "despautério", "infâmias", "aleivosias"... A corrupção é o paraíso dos advogados, com ternos brilhantes, sisudos semblantes, liminares na cinta, serenidade cafajeste, 'chicanas' decoradas, diplomas comprados.

Com a corrupção, malas pretas voam em todas as direções, os dólares flutuam nos céus estrelados, as luas são sempre minguantes, os rostos nunca mostram o que pensam, as gargalhadas soam como latidos, as bocas salivam, os punhais saem das bainhas, os carros atropelam, as finas cordas apertam os pescoços, os assassinos se fartam, os olhos do povo olham impotentes. A corrupção confunde, é um labirinto, uma grande aranha em sua teia, a corrupção cria firmas em sanfona, uma dentro da outra, subsidiárias sem obras, vagando num labirinto jurídico e contábil que leva a um caos indecifrável, pois o emaranhado de roubalheiras dificulta apurações. No imaginário brasileiro, a corrupção tem uma aura heroica. São heranças da colônia, quando era belo roubar a Coroa. A corrupção é a mola mestra do atraso. A corrupção mostra que os lírios que apodrecem fedem mais que as ervas daninhas (Shakespeare). A corrupção desenha as caras deformadas de políticos, as barrigas, a gomalina dos cabelos, a boçalidade dos discursos, tudo compondo um estafermo fabricado com detritos de vergonhas passadas, cérebros encolhidos, olhos baços, irresponsabilidades fiscais, municípios apodrecidos, decapitações, ônibus em fogo. A corrupção escolhe seus peões entre os mais espertos dentre os mais rombudos e boçais. A corrupção transforma a estupidez em uma estranha forma de inteligência, uma rara esperteza para golpes sujos e sacos-puxados. A corrupção é fabricada entre angus e feijoadas do interior, em favores de prefeituras, em pequenos furtos municipais, em conluios perdidos nos grandes sertões. A corrupção é a torta escultura feita de palha e barro, de gorjetas, de sobras de campanha, de canjica de aniversários e água benta de batismos. A corrupção explica o País, pois tem raízes e tradição: avô ladrão, bisavô negreiro e tataravô degredado. A corrupção durante quatro séculos criou capitanias, igrejas, congressos, golpes e tomadas de poder. A corrupção tem um vago sentimento de poesia brasileira. A corrupção para muitos se julga revolucionária, roubando para um futuro imaginário e mentiroso, para enganar otários cheios de esperança. A corrupção é um rabo de lagarto que sempre se recompõe, renasce quando cortado.

A corrupção cria, esculpe, organiza as imposturas, as perfídias, os sepulcros caiados, os beijos de Judas, os abraços de tamanduá, as lágrimas de crocodilo.

(*) Com gratidão a Ezra Pound por seu

Canto XLV - A Usura.

 Tradução de Augusto de Campos

Com usura nenhum homem tem casa de boa pedra
blocos lisos e certos
que o desenho possa cobrir;
com usura
nenhum homem tem um paraíso
pintado na parede de sua igreja
harpes et luthes
ou onde a virgem receba a mensagem
e um halo se irradie do entalhe;
com usura
ninguém vê Gonzaga, seus herdeiros e concubinas
nenhum quadro é feito para durar e viver conosco,
mas para vender, vender depressa;
com usura, pecado contra a natureza,
teu pão é mais e mais feito de panos podres
teu pão é um papel seco,
sem trigo do monte, sem farinha pura.
Com usura o traço se torna espesso
com usura não há clara demarcação
e ninguém acha lugar para sua casa.
Quem lavra a pedra é afastado da pedra
O tecelão é afastado do tear.
COM USURA
a lã não chega ao mercado
a ovelha não dá lucro com a usura
A usura é uma praga, a usura
embota a agulha nos dedos da donzela
tolhe a perícia da fiandeira. Pietro Lombardo
não veio da usura
Duccio não veio da usura
nem Pier della Francesca, nem Zuan Bellini veio
nem usura pintou La Callunia.
Angelico não veio da usura; Ambrogio Praedis não veio,
Nenhuma igreja de pedra lavrada, com a inscrição:
Adamo me fecit.
Nenhuma St. Trophime
Nenhuma Saint Hilaire.
A usura enferruja o cinzel
Enferruja a arte e o artesão
Rói o fio no tear.
Mulher alguma aprende a urdir o ouro em sua trama;
A usura é um câncer no azul; o carmesim não é bordado,
A esmeralda não encontra um Memling.
A usura mata a criança no ventre
Detém o galanteio do moço
Ela
trouxe paralisia ao leito, jaz
entre noivo e noiva
CONTRA NATURAM
Putas para Elêusis
cadáveres no banquete
a comando da usura.
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Fonte: Estadão online, 31/12/2014
Imagem da Internet

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

O momento antropofágico do Brasil

 Antropofágico
 Há um esbanjamento de despudor e ausência de autocrítica, além da opacidade do governo
Uma grave crise funcional do Estado eleva seus custos de maneira intolerável 
O governo só não cai por falta de colo hospitaleiro. Ainda bem, pois escasseiam robustas lideranças democráticas capazes de desmantelar, por simples presença, arranjos contra a legalidade. O Legislativo distrai-se em conquistas predatórias ao apagar das luzes do atual mandato. Os movimentos sociais organizados, outrora valentes escudeiros de valores universais, empalideceram e a multidão de siglas que desfilam em conclamações lembra os “blocos do eu sozinho”. Em São Paulo, estado volta e meia em conflito com o resto do País, a direita brega patrocina intervenções surrealistas sem acordo prévio sobre o propósito da perturbação do trânsito. Augustos integrantes da judicatura disputam o horário televisivo com escaramuças entre bandos de traficantes. Há um esbanjamento de despudor, ausência de autocrítica, intermináveis confabulações pré-ministeriais, além da conhecida opacidade do governo. Tudo a deixar a leve impressão de que os verdadeiros espetáculos em um só ato, ou vários, estão em exibição alhures. A rotina pós-eleitoral, que deveria ser pacífica, está em ebulição à revelia das autoridades recém-eleitas.

A insaciável antropofagia brasileira converteu o “impedimento”, mecanismo de destituição de autoridades públicas, em alavanca para a nomeação de ministros. Está aí o surpreendente novo ministro da Fazenda que não me deixa mentir, embora condenado a ser, ele próprio, deglutido: pelos conservadores, por ser Joaquim Levy de menos, pela esquerda, por sê-lo de mais. Em qualquer caso, é improvável que reconquiste a identidade pretérita. Ele e os demais figurantes em processo de escolha governamental estão sujeitos a ampla rejeição ao simples anúncio de que estão cogitados para escalação. A fonte escaladora não transfere segurança, mas doses da mesma controvérsia de que padece no momento. Ninguém pode prenunciar qual a face do governo em, digamos, seis meses.

A antropofagia continua na transformação do saudável pluralismo organizacional democrático em máfias de concorrência coordenada, com regras e procedimentos estabelecidos. É adulto de anos o entrelaçamento entre competidores privados e nichos da burocracia pública e ainda ignorada a extensão do sistema extrativista assentado em extorsão e suborno. Hoje é a Polícia Federal que determina a pauta relevante da política, precisamente pela elevada taxa de imprevisibilidade quanto aos danos políticos e econômicos gerados pelas investigações. A partidarização pretendida pela oposição, na torcida pela declaração oficial de que o Partido dos Trabalhadores está contaminado em estágio terminal pelo vírus da corrupção, não prevalecerá. Já investigações paralelas começam a revelar alguns dos escândalos a macular o longo predomínio tucano no estado de São Paulo, e sabe-se que a era Aécio Neves, em Minas Gerais, não foi um primor de lisura. Governo, oposição, Legislativo, Judiciário, grupos de pressão eficazes (OAB, CNBB, jornalismo crítico sensato) terão de lidar, por bom tempo, com um problema nada miúdo. 

o se trata de advogar uma anistia generalizada pela comprovação da universalidade do delito. A oportunidade é singular demais para exaurir-se na contabilidade de malfeitos partidários. Há uma grave crise funcional do Estado brasileiro que eleva de maneira intolerável os custos do governo e do crescimento econômico. Consequentemente, aqui se joga com a continuidade ou interrupção da distribuição iníqua dos sacrifícios inerentes à trajetória de países emergentes. Os custos excessivos, o sobrefaturamento, as propinas e mimos distribuídos não são, nem apenas nem principalmente, uma agressão a acionistas e fideístas dos bons propósitos de empresas gigantes, grandes ou médias.

Os recursos ilegalmente extraídos do Tesouro Nacional, por empresários ou servidores públicos, apontam para uma das habilidades antropofágicas de transformar o progresso material em miséria social. Sim, os brasileiros poderiam usufruir um nível de bem-estar superior se o Estado não fosse balcanizado entre grupos de burocratas e máfias empresariais de concorrência controlada. 

Se existissem países sem solução, o Brasil pertenceria, talvez, ao grupo. Derrotados eleitorais tentam tornar sem efeito a derrota. Poucos os ouvem, mas outros, com relativo poder causal, ameaçam colocar sob suspeição o mandato dos vencedores. Esses escolhem ignorar a possibilidade de que, segundo a lei vigente e as conclusões da Polícia Federal, venha a ser impossível governar. Isso, óbvio, se as conclusões forem aceitas tal e qual pelo Ministério Público. Bem verdade ser praticamente impossível que o País pare de funcionar e que a fantástica quantidade de obras em andamento, das quais depende o futuro da população brasileira, seja interditada. Mas há que resolver qual o destino dos implicados nos ilícitos. Livres é que não poderão ficar.

Igualmente improvável que as eleições de 2014 sejam anuladas. Seria indigesto mesmo para alguns bons antropófagos. Mas é certo também que o País não será governado segundo o plano original e o Estado não obrará como dantes. Pois governar não se resume a nomear ministros. Tampouco a exigir que prazos sejam cumpridos. Mais do que a misteriosa reforma política, urge uma revisão estrutural no modo de operação do Estado brasileiro, em seus órgãos de controle não só a posteriori, mas de acompanhamento. E se o governo paira, sem liderança política para além da administrativa, seria cautelar ser informado de que ninguém está livre da antropofagia. 
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Texto por Wanderley Guilherme dos Santos 
Fonte: Carta Capital online, 30/12/2014 
Imagem:  Saturno devorando um filho, Francisco de Goya

A teologia da selfie

 
Um desejo de eternidade
Por Jorge Henrique Mújica

A NASA criou, em 2014, um mosaico temático feito com 36.422 fotos de pessoas de mais de cem países, tiradas por elas próprias e enviadas através das redes sociais com a hashtag #GlobalSelfie. A participação massiva é mais um reflexo do fenômeno da autofotografia, ou “selfie”, que se tornou “a palavra do ano” em 2013 na opinião do prestigioso dicionário Oxford da língua inglesa. E a “selfie” é um fenômeno que, pelo visto, parece destinado a continuar indo bem além de 2013.

O que leva as pessoas a compartilhar tantas fotos delas mesmas tiradas por elas mesmas? Só em 2013, houve 1 milhão de publicações desse tipo de imagem por dia! O fenômeno não é apenas resultado da atual facilidade técnica para tirar fotos em qualquer lugar e a qualquer momento; também existe algo de psicológico nessa manifestação cultural: as pessoas se sentem, embora pareça uma redundância, protagonistas das próprias fotos, não apenas por serem fotografadas, mas por se fotografarem.

Essa dimensão do protagonismo quer testemunhar com imagens que “eu estive lá”, que “eu sou assim”, que “eu estive com Fulano”; e, com um pouco de sorte, conseguir, quem sabe, alguma fama efêmera, caso a imagem se torne viral.

O fenômeno selfie pode envolver também certos matizes patológicos. Em maio de 2014, no “Giro d’Italia”, o ciclista alemão Marcel Kittel caiu e um jovem se aproximou dele rapidamente; mas não era para ajudá-lo, e sim para tirar uma selfie com o atleta. Atitudes semelhantes se repetem com muitas pessoas no mundo todo e fazem parte do pano de fundo do curta-metragem “Aspirational”, da atriz Kirsten Dunst.

No filme, Kirsten critica a cultura da selfie e a desumanização das pessoas em tempos de Instagram. Vemos a atriz, no curta-metragem, esperando alguém diante de sua casa quando passam duas garotas que a reconhecem, se aproximam com seus smartphones na mão e, sem mais nem menos, começam a tirar selfies com ela. Terminada a “sessão fotográfica”, as jovens vão embora praticamente sem abrir a boca. “Não querem me perguntar nada?”, indaga Kirsten, enquanto uma das jovens se limita a perguntar à outra: “Quantos seguidores você acha que eu vou conseguir com esta foto?”.

“Aspirational” é uma caricatura, mas tem fundamento bastante real. Como não recordar o menino espanhol que se emocionou até chegar às lágrimas por ter tirado uma foto com o jogador argentino Lionel Messi? “O que foi que o Messi disse para você?”, perguntou um jornalista ao menino. “Nada”, foi a resposta. Ele queria a foto, não as palavras do craque.

As selfies não são algo novo. O mito grego de Narciso nos apresenta o rapaz que se apaixonou pela própria imagem refletida na água e, enquanto contemplava a sua beleza, caiu no rio e morreu afogado. Aquela “selfie mitológica”, aplicada às circunstâncias atuais, pode servir como convite para prestarmos mais atenção não somente a essa superexposição vaidosa, mas também à falta de autenticidade das imagens manipuladas para aparentar o que não somos.

Historicamente falando, a primeira selfie data de 1914 e a protagonista foi uma adolescente de 13 anos: a grã-duquesa Anastácia, da Rússia. No âmbito religioso, podemos citar o Santo Sudário e o manto da Virgem de Guadalupe, duas “selfies” de peculiaridade sobrenatural. E, indo ainda mais longe, a primeira de todas as selfies remonta ao próprio Deus e tem como fundamento teológico a Bíblia.

O capítulo primeiro do livro do Gênesis, em seus versículos 26 e 27, diz claramente que Deus fez o homem à sua imagem e semelhança. Será que não podemos considerar a nós próprios como “selfies” de Deus? Neste sentido, cada selfie humana de hoje em dia é uma imagem que reflete algo de divino e que remete a Deus. Mas Deus é ainda mais original e tirou a mais perfeita de todas as selfies: Jesus Cristo, que, muito além de mera “imagem” de Deus, é Deus em pessoa feito carne.

As selfies, de certa forma, são expressões da capacidade criadora semeada por Deus no coração humano e materializada em imagens. Não são uma simples popularização da fotografia, mas expressões muitas vezes instintivas que nos revelam um pouco do anseio de eternidade que temos na alma. Cada foto é uma forma de dizer “eu existo”, “eu faço parte da história humana” e, ainda mais profundamente, “eu sou imagem e semelhança de Deus”.
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Fonte:  http://www.zenit.org/pt

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

China Miéville renova ficção científica com romance sobre urbe monitorada

Divulgação
Escritor inglês China Miéville

'A Cidade & A Cidade' , distopia do autor inglês fala de cidades sob o tacão do arbítrio

Três vezes ganhador do prêmio Arthur C. Clarke, o mais prestigiado da Grã-Bretanha para livros de ficção científica, China Miéville ainda é um autor cult no Brasil, conhecido apenas por fanáticos do gênero. Isso deve mudar com a recente publicação, pela Boitempo Editorial, de A Cidade & A Cidade, que venceu o referido prêmio há quatro anos, quando saiu na Inglaterra. O livro é um dos favoritos de Miéville, autor influenciado por Lovecraft e Mervyn Peake, mas principalmente por Ian Sinclair, também o mestre de William Gibson, o pai do cyberpunk.

Expoente da cultura geek (gente obcecada por tecnologia), Miéville nasceu em Norwich há 42 anos, mas foi criado pela mãe em Londres. Mestre em direito internacional e ativista político, ele é um desses autores que surpreende pela habilidade em reunir num mesmo livro fantasias barrocas e um credo político radical, que o fez criar um partido político nanico e disputar (e perder) anos atrás um cargo pela Aliança Socialista inglesa.

O mundo ficcional de Miéville é conhecido como Bas-Lag, onde convivem a magia, o horror, a alta tecnologia e uma visão urbana extremamente pessimista. Sua obra o conduziu no passado à liderança de um grupo de escritores de um gênero conhecido como “new weird”, ou seja, radicais que rejeitam o escapismo e carregam na ficção distópica. A Cidade & A Cidade é isso: a investigação de um crime cometido numa cidade pós-soviética chamada Beszel que, desafiando as leis da física, abriga no mesmo espaço outra cidade, onde seus moradores, controlados por um governo autoritário, ignoram a existência dos outros.

Miéville, gregário por natureza – ele adora jogar RPG –, deve ficar escandalizado com um mundo em que os interesses individuais ditam as regras e levam as pessoas ao isolamento. Nas duas cidades que coexistem num mesmo espaço, os cidadãos são obrigados por uma autoridade a ignorar o que se passa na urbe duplicada. Miéville, no entanto, resiste ao apelo metafórico, evitando uma aproximação analógica com a indiferença do mundo à dor e ao sofrimento alheio.

De qualquer modo, a violência da autoridade suprema que ameaça os cidadãos resistentes à ordem de não olhar para os habitantes da “outra” cidade, encontra correspondência evidente no mundo real. À maneira de outro expoente da ficção científica, Philip K. Dick, que cruzou a ficção futurista com a bestialidade policial do presente em Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? (livro que deu origem ao filme Blade Runner), Miéville denuncia a vocação da urbe para o crime. No livro de Dick, um caçador de androides buscava seus pares numa Babel arruinada pela chuva ácida. Em A Cidade & A Cidade, China Miéville usa a figura de um policial, o inspetor Borlú, narrador de sua história, para investigar o assassinato de uma jovem que teria transitado ilegalmente entre as duas cidades.

Miéville, autor de dez romances, além de contos e uma série em quadrinhos, terá outros livros publicados pela Boitempo (Perdido Street Station, The Scar e Iron Council). Ele falou ao Caderno 2 sobre o livro agora lançado e suas principais influências literárias.

Você disse certa vez que A Cidade & A Cidade é seu livro favorito entre muitos que escreveu. Ele é mais ambicioso que os outros em termos de cruzar a cultura geek (dos obcecados por tecnologia) com filosofia política? Você estava pensando em Kafka ou Borges quando criou as duas cidades que coexistem num mesmo espaço?
Não sei agora qual seria exatamente o meu favorito entre os livros que escrevi – isso muda a cada dia –, mas está entre os que eu considero os melhores. Como um alucinado por tecnologia com interesse particular em filosofia política, tudo o que escrevo deriva da intersecção entre ambos, especialmente A Cidade & A Cidade. Para o meu gosto, consideraria Iron Council mais ambicioso, ainda que ele falhe gloriosamente onde falha, mas A Cidade & A Cidade é igualmente ambicioso no sentido de ter sido o ponto de partida, não só no tom como na ambientação, um livro do qual muito me orgulho. Não estava pensando em Borges, de forma consciente, quando comecei a escrevê-lo, mas, naturalmente, ele é um escritor incontornável, no qual não se pode deixar de pensar. Kafka, diria, era uma referência mais imediata. Diria ainda que estariam mais próximos dois outros autores: Bruno Schulz e Alfred Kubin.

Escritores de ficção científica costumam ser muito reacionários – e me vem logo à mente o nome de Ray Bradbury. Seria o selo “new weird” uma resposta política à ficção do passado, caracterizada pelo mundo hierárquico de Ray Bradbury e pelas fantasias de Tolkien?
Não sei se concordo que os autores de ficção científica são, de modo geral, grandes reacionários, embora existam muitos entre eles. De qualquer maneira, posso pensar em alguns de diferente origem e posição – e talvez seja conveniente, a despeito da obviedade, repetir que a posição política de um escritor não define a qualidade de seus livros. O termo “new weird”, agora morto e sepultado, era certamente um instrumento antirreacionário das tropas weird. Teve lá o seu momento. Minha impressão é que esse momento acabou.

A Cidade & A Cidade pode ser lido como um livro existencialista sobre duas diferentes cidades convivendo num mesmo espaço e tempo, como se todos tivessem um doppelgänger repetindo os mesmos gestos, algo na linha do William Wilson de Poe. Lembro que você assume outras influências, entre elas Lovecraft, Melville e Ian Sinclair. Escritores existencialistas como Camus são também referências para sua literatura?
Até certo ponto isso é inevitável, pois eles estão no substrato de nossa consciência cultural. Mas estaria mentindo se apontasse Sartre ou Simone de Beauvoir como primus inter pares das influências culturais que assumo de forma consciente.

Como seu credo político interfere em sua literatura, uma vez que você evita as soluções morais do gênero ficção científica para escrever livros não esquemáticos?
O verbo que você escolheu, “interferir”, é muito interessante, embora reconheça que não o use de forma provocativa. Contudo, ele conduz a uma noção oculta do que constitui a relação entre política e ficção para qualquer autor, particularmente para quem é assumidamente político. Para ir mais longe, crença política e compromisso podem, claro, “informar”, “melhorar” ou “desenvolver” a literatura de alguém. Já uma imbricação desastrosa da política na literatura pode levar à má ficção. De minha parte, não vejo isso como um dilema. Sou um autor de ficção e um escritor de esquerda – e um sempre dependerá do outro. Não existe outro modo de escrever nem eu desejaria que existisse. A ficção não existe para expor discussões políticas – para isso existe a não ficção.

Desde seu primeiro romance, King Rat, que foi publicado em 1998 e lançado no Brasil por uma pequena editora, o que mudou basicamente no modo de você encarar a literatura? Você pretende se dedicar mais a ensaios que à ficção no futuro?
Essa é uma boa pergunta. Sim, gostaria de escrever mais ensaios e não ficção, embora deva usar “tanto quanto” em vez de “no lugar” da ficção. À medida que escrevo, torno-me mais consciente da prosa e dos perigos da autoparódia. Tenho um imenso senso de urgência, pois estou entrando no “período intermediário” de minha carreira. Muitos já escreveram sobre o “estilo tardio”, como Edward Said, por exemplo, mas não sobre o intermediário, que, para mim, ou justifica a obra como um todo ou sinaliza um completo fiasco.

Você escreveu contos, quadrinhos, roteiros para role-playing games e textos acadêmicos. Qual é a diferença entre escrever ficção e não ficção, para você? É melhor criar histórias do que descrever o mundo real?
Não há melhor nem pior para mim. Acho que sofro de um complexo de culpa, como alguém que tem um passado acadêmico, um ativista que considera a não ficção mais importante. Conscientemente, quero me livrar disso, mas é inevitável. Não creio que estaria apto a escrever numa única forma. Menos porque escrever em múltiplas formas é triunfar, para mim é uma oportunidade de falhar melhor.
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China Mieville, autor do livro de ficção científica "A Cidade e a Cidade", publicado pela Boitempo
Obras recentes do autor são híbridos literários

Em ‘Railsea’, ele cruza os monstros da juventude com épico de Melville, ambientando o livro num cenário apocalíptico

Se há dez anos você perguntasse a China Miéville se ele era geek, a resposta vinha rápida: “Sim, sou completamente geek”. Ele considerava lícito que um homem com pouco mais de 30 anos não abjurasse sua adolescência passada entre dragões, monstros e jogos eletrônicos. Miéville, hoje com 42 anos, mudou de direção, deixando um pouco de lado a pulp fiction para unir alta tecnologia à alta literatura.

Assim, seus livros de ficção mais recentes, como Railsea (2012), embora não recusem a fusão híbrida de gêneros, parecem mais ambiciosos. Railsea é uma típica ficção científica, mas com imagens arquetípicas, como os livros anteriores, cruzando os monstros da juventude do autor com o épico – Melville é uma referência imediata quando se pensa nas criaturas predadoras do livro, inspiradas na baleia de Moby Dick.

A ambição de Miéville está relacionada à crença na literatura fantástica como forma revolucionária, capaz de substituir o hermetismo da academia, que o levou a abominar Cambridge quando trocou o Egito pela Inglaterra na juventude, decidido a estudar antropologia. 

Nesse sentido, é fácil entender a razão de Miéville citar Iron Council na entrevista acima como sua criação mais ambiciosa, também porque, além dos temas frequentes na obra de um marxista de formação – o mundo sujo dos políticos, a revolução –, ele se dedica a explorar uma história de amor homossexual. Não em busca de polêmica, mas para ser fiel ao projeto do cruzamento híbrido entre fantasia, thriller político, romance revolucionário e faroeste, gênero em que o homoerotismo não é raro.

Esse apego a gêneros vistos como vulgares, subliterários, tem tudo a ver com a ideologia desse socialista empenhado em desafiar o “bom gosto” burguês. Para ele, há uma “afinidade estranha” entre políticos radicais e a literatura fantástica – e, não por acaso, ele sempre cita nomes como o do trotskista Steven Brust e do anarquista Michael Moorcock como exemplos de subversão extrema.

Moorcock escreveu um estudo sobre a fantasia épica (Wizardry and Wild Romance) que acaba com a trilogia O Senhor dos Anéis, definindo Tolkien como um conservador antimodernista – o idílico território do Shire, onde moram os hobbits na Europa mitológica do escritor britânico, seria o doce lar seguro da burguesia, segundo o ensaísta. Tudo o que está fora de Shire representa o perigo, multiplicando o temor da família nuclear, que vê como ameaça aquilo que não é seu espelho.

Essa paranoica desconfiança reina em A Cidade & A Cidade. Considere o exemplo da jovem do livro, assassinada na cidade de Beszel, no cafundó da Europa, que divide com a cidade gêmea Ul Quoma o mesmo espaço geográfico, embora com costumes diferentes. A fronteira entre as duas é respeitada e ignorá-la é um crime – a garota morta, no caso, estava envolvida com agitadores políticos e cruzou a linha divisória, desafiando um poder secreto chamado Brecha. Em sua ingenuidade, ela é como a Dorothy de O Mágico de Oz: quer voltar para casa, mas nem sabe se esse lar existiu, de fato, algum dia. / A.G.F.

A CIDADE & A CIDADE
Autor: China Miéville
Tradutor: Fábio Fernandes
Editora: Boitempo Editorial(292 págs.,R$ 45)

Trecho do livro:
 
"Os poderes de Brecha são quase ilimitados. Assustadores. O que limita a Brecha é apenas o fato de que esses poderes são altamente específicos, circunstancialmente. A insistência para que essas circunstâncias sejam rigorosamente policiadas é uma precaução necessária para as cidades.
 
Por isso, esse equilíbrio arcano entre Beszel, Ul Qoma e a Brecha. Em circunstâncias diferentes das várias agudas e indiscutíveis brechas – crime, acidente ou desastre (derramamento de produtos químicos, explosões de gás, um agressor com problemas mentais atacando através da fronteira municipal) –, a comissão vetava todas as potenciais invocações – que eram, afinal de contas, todas as circunstâncias nas quais Beszel e Ul Qoma se desnudariam de qualquer poder.
 
Mesmo depois de eventos agudos, com os quais ninguém são poderia argumentar, os representantes das duas cidades na comissão examinariam cuidadosamente ex post facto as justificativas apresentadas para a intervenção de Brecha. Eles poderiam, tecnicamente, questionar qualquer uma delas:seria absurdo fazer isso..."
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Reportagem por Antonio Gonçalves Filho - O Estado de S. Paulo, 27/12/2014
Fonte: Estadão online.

Tarefa*



Geir Campos*

Morder o fruto amargo e não cuspir
mas avisar aos outros quanto é amargo,
cumprir o trato injusto e não falhar
mas avisar aos outros quanto é injusto,
sofrer o esquema falso e não ceder
mas avisar aos outros quanto é falso;
dizer também que são coisas mutáveis...
E quando em muitos a noção pulsar
— do amargo e injusto e falso por mudar —
então confiar à gente exausta o plano
de um mundo novo e muito mais humano.
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* Geir Nuffer Campos nasceu em São José do Calçado (ES) no dia 28/02/1924. Foi piloto da marinha mercante e ex-combatente civil na Segunda Guerra Mundial. Formou-se em Direção Teatral (FEFIERJ-MEC, Rio), mestre e doutor em Comunicação Social pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), da qual foi professor. Sempre engajado nas lutas de seu tempo, foi um dos fundadores do Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro e da Associação Brasileira de Tradutores, hoje Sindicato Nacional dos Tradutores, de que foi presidente. Em 1962 candidatou-se a vereador na cidade de Niterói, mas foi derrotado.
Jornalista, colaborou no "Diário Carioca", "Correio da Manhã", "Última Hora", "O Estado", "Diário de Notícias", "Para Todos", Letras Fluminenses", "Jornal de Letras" e no jornal "A Ordem", de sua terra natal.
Radialista, apresentou na Rádio MEC, por mais de 20 anos, o programa "Poesia Viva".
Foi diretor da Biblioteca Pública Estadual de Niterói (1961-1962), transformando-a em um centro cultural. É de sua autoria, juntamente com Neusa França — que fez a música —, a letra do hino oficial de Brasília (DF).
Geir Campos faleceu no dia 08 de maio de 1999, aos 75 anos, em Niterói (RJ).
* Poema extraído do livro "Geir Campos - Antologia Poética", Léo Christiano Editorial Ltda. - Rio de Janeiro, 2003, pág. 89, organizada por Israel Pedrosa.
OBS. O governador eleito José Ivo Sartori (PMDB), do Rio Grande do Sul, reuniu o secretariado na manhã desta segunda-feira (29/12/2014) para apresentar as metas do governo para 2015. Entregou o poema: Tarefa, aos secretários na sua primeira reunião.
Imagem da Internet

D. Manuel Clemente: Não me convence nada do céu que eu não veja na terra

Todos temos uma noite escura? D. Manuel Clemente viveu-a quando era um jovem rapaz. Há 50 anos. Descreu. Experimentou a estranheza de olhar em volta e o mundo ter mudado de lugar. Angústia. Reergueu a sua fé, pedra a pedra, a partir de Jesus. Farol.

A confissão é inesperada. O mundo podia ter estancado ali. Um certo mundo. O d’“o verbo de Deus encarnado”.

O rio seguiu. Primeiro estudou História, depois fez-se padre. Foi prémio Pessoa em 2009. É Patriarca de Lisboa desde 2013. Uma espécie de atador de pontas numa escala que o excede, diz, com uma humildade que não parece forçada.

É amável, simples.

Quatro e meia da tarde, mosteiro de São Vicente de Fora. Chama para que veja a luz dourada do Tejo. O rio parece ao alcance da mão. Ouvem-se os sinos das igrejas vizinhas. Identifica uma a uma. O tempo estava razoavelmente contado, mas deu a impressão de ter todo o tempo do mundo. Explico que gostava de fazer uma entrevista em três passos: que andássemos pelos caminhos da sua formação, os da espiritualidade e que fôssemos à dimensão política que as suas palavras têm desde que ocupa o cargo de Patriarca. Gostou especialmente de ter visitado o tempo mítico da infância. Um homem gosta sempre de voltar a casa?

Não tardou que a noite caísse e se ligassem as luzes. Quando me acompanhou ao elevador, estava nos corredores do mosteiro um frio daqueles que se entranha nos ossos. Pôs o sobretudo. Era preciso poupar a voz. Antes disso ofereceu um cartão de Natal. Estendeu a mão. E Boas Festas.

Comecemos pela criança que foi. Que mais não seja nesta altura, pensamo-nos como meninos esperados, queridos pelos nossos pais.
Nasci em Torres Vedras em 1948, numa família católica. Em especial a minha mãe. Fui para a catequese paroquial aos seis anos, mas o essencial — Deus, Jesus, Nossa Senhora, orações — já tinha aprendido em casa. Os meus pais tiveram cinco filhos, sobreviveram quatro; agora faleceu mais um; somos três. A realidade que conhecíamos era a que víamos, directamente. Vivíamos numa casa, na zona antiga de Torres. O meu pai tinha uma indústria de moagem ali perto, que tinha sido do meu avô. Havia uma praça, que era de terra. Foi o meu primeiro território fora de casa. Brincávamos, os miúdos, com espadas que eram farripinhas de madeira que íamos buscar a uma serração. Ouvia ao sábado à tarde a “Meia Hora de Recreio” da Maria Madalena Patacho, na Emissora Nacional. Ainda me lembro da música do indicativo. Esperávamos uma semana por meia hora, para estarmos sentados aos pés de uma telefonia que era um móvel.

Porque é que era uma coisa tão esperada?
Não tínhamos outros programas. Não havia televisão. Recebíamos a revista Cavaleiro Andante, antes tinha havido o Mosquito. Esse mundo de referências é o primeiro que me ficou.

Aos seis anos, abriu-se o espaço em duas direcções: a escola e a igreja. A catequese: era nuns banquinhos encostados aos altares. Seguia-se a missa, que era em latim. Depois brincávamos ao lenço no adro. Depois passavam uns filmes. Uns filmes... eram uns slides. Ainda hoje, as imagens essenciais que tenho são as das gravuras dos catecismos ou desses filmes.

O que é que marcava o calendário, o passo da terra?
Era muito ligado às festas. O Natal. Depois começávamos a preparar o Carnaval. O Carnaval de Torres ainda é popular. Nessa altura era feito com prata da casa. Fazíamos os cocottes para usarmos. Havia os assaltos à casa deste e daquele a seguir ao São Vicente (22 de Janeiro): “Chegou São Vicente, posso enganar toda a gente”. Logo a seguir, já estávamos em plena Quaresma. Fazia-se a procissão do Senhor dos Passos, altamente teatral.

Lembra-se bem do momento em que a missa passou a ser em português?
Lembro. Eu era, como então se dizia, menino de coro. Não se dizia acólito. Tive de aprender a responder [em latim]. Não é que soubesse o que é que aquilo queria dizer. É com o Concílio Vaticano II, que começa em 1962. A missa em português e em Portugal começa uns dois, três anos a seguir. Lembro-me, não tanto de a missa ter passado a português, mas do ambiente do Concílio Vaticano II. Da descoberta. Do aprofundamento do que era a Igreja. Os sacramentos, a celebração [vividos] de uma maneira mais comunitária. O padre marcou-me muito. Joaquim Maria de Sousa. Esteve em Torres 30 anos. Era um homem muito simples, muito afável. Capaz de integrar as nossas ideias. Parecia que o mundo estava a começar.

Foi sobretudo por causa dele que quis ser padre?
Eu tinha na família a memória e a fotografia de um tio do meu pai que era um padre franciscano. Tinha os livros dele em casa. Era um tal Frei José da Assunção Rolim. Foi um pregador em várias partes do mundo. Mas a minha ligação maior era ao padre da freguesia. Recordo que era muito novinho, sete, oito, nove anos. Estava a ajudar à missa. Viemos para a sacristia. Até me lembro do sítio. “Eu quero ser como o padre Joaquim.” Engraçada, esta identificação.

O que é que ele inspirava?, a compreensão?
A compreensão, a bondade. O cuidar dos pobres. Era um conjunto e batia tudo certo. Fiquei muito tocado por aquilo. Ainda hoje.

Aos 13 anos vim estudar para Lisboa, mas ia ao fim de semana. Estive no colégio Manuel Bernardes e depois no S. João de Brito. Escutismo. As coisas próprias da idade, sobretudo num ambiente católico. Depois fui para a universidade. Formei-me em História em 1973. Essa memória viva do padre Joaquim foi determinante para entrar no seminário, depois de ter acabado o curso. Já me tinha apanhado o coração, o pensamento.
Os textos são textos onde cabe tudo. Cabe a vida, cabe a morte, cabe a saúde, cabe a doença, caibo eu, cabem os outros, de uma maneira aberta. Quer dizer, há por ali futuro
Porque é que não foi logo para o seminário?
A minha mãe sempre me disse: “Estudas primeiro”. Era uma mulher muito religiosa, nada piegas. Colaborava em tudo. Na ajuda aos soldados do Ultramar. Nas coisas artísticas. Esse temperamento também me marcou muito.

Fui estudar. Quando acabei os estudos, entrei. No princípio dos anos 70, havia muito poucos seminaristas. Tinha havido uma debandada no final dos anos 60. No seminário onde entrei, nos Olivais, entre 68 e 70 passou-se de 150 (ou mais) seminaristas para dez ou 12. Quando entrei, éramos 11. Pronto. Cada um tem o seu caminho. O meu foi um bocadinho ao invés do que era o caminho de muitos.

Essa ida para História queria dizer também uma dúvida? Uma dúvida em relação ao que era o seu caminho.
Não. A minha casa foi sempre uma casa de História. Explico. A minha mãe gostava imenso de História. O meu tio-avô padre também gostava. Era uma família não muito numerosa, mas de gente que viveu muitos anos. Conheci uma tia bisavó a bater nos cem. A minha avó materna nos 102. Ouvi contar, numa casa para onde íamos no Verão, histórias da Patuleia, de meados do século XIX. “A minha avó, quando entraram aqui, disse para beberem o vinho que quisessem mas para não rebentarem os tonéis.” Por isso, dá-me a ideia que esta propensão para abordar a realidade em termos de durante, antes e depois já cá estava há muito tempo.

Durante a sua formação, figuras bíblicas como Moisés, Abraão, outras, inspiravam-no?
Nenhum se comparava à própria pessoa de Jesus. É uma figura que me cativou, como cativa agora. É uma figura total. Uma vez conversava com um amigo. A conversa era: porque é que somos praticantes e muitos outros deixaram de ser? Ele saiu-se com esta: “É porque com Jesus a conversa nunca mais acaba”.

Os textos (de que ouvi falar em casa, que ouvia na missa; todos confluem nas narrativas evangélicas) são textos onde cabe tudo. Cabe a vida, cabe a morte, cabe a saúde, cabe a doença, caibo eu, cabem os outros, de uma maneira aberta. Quer dizer, há por ali futuro. São textos que iluminam.

E as interrogações?
Interrogávamo-nos muito. Líamos as coisas do Teilhard de Chardin [jesuíta, filósofo, paleontólogo] acerca da evolução. Líamos coisas de outras religiões. Uma vez, o meu pai, estávamos numa estação à espera do comboio. Para me desafiar, disse-me: “És católico porque nasceste numa família católica. Senão podias ser protestante, muçulmano, hindu”. Aquilo ficou-me [atravessado]. Resolveu-se assim: “Isso são filosofias, religiões. Mas Jesus é uma pessoa, não é uma ideia. Esta vida é que me convence. E não apenas a reflexão”.

Jesus aparece como um igual a si?
É um igual a mim, mas desafia-me para muito além de mim. As interrogações que faz... Leio as páginas do Evangelho e não soam da mesma maneira. Por exemplo, uma frase simples sobre o nascimento de Jesus: “Os pastores foram apressadamente e encontraram Maria, José e o Menino deitado numa manjedoura”. Quantas vezes li esta frase... Mas em relação à nossa situação actual, 2014, receber um anúncio, ir apressadamente, encontrar uma família, uma criança e um meio tão pobre como é a manjedoura... não me sai da cabeça. Numa situação de pobreza, de desprovimento, acrescida e para tanta gente, encontrar uma criaturinha tão frágil como uma criança acabada de nascer — mas pode ser uma pessoa idosa, prestes a morrer — e eu acreditar que a realidade absoluta a que chamamos Deus se revela assim, não me sai da cabeça.

Estão aí contidas muitas coisas. Quando se diz “apressadamente”, fala-se de urgência. Urgência em chegar, em salvar, em cuidar, em continuar a olhar...
... para a vida como ela acontece, assim, nestas circunstâncias. Vou-lhe contar uma história passada. Eu devia ter 17, 18 anos. Estava no lar universitário, no colégio Pio XII. Era um sábado à tarde. Parei no coro da igreja. E de repente deu-me, não propriamente uma branca, mas uma preta. Uma escuridão total. “Eu não acredito em nada disto.” Nunca me tinha acontecido. Foi aquele momento. “Eu não acredito em nada disto.” Deu-me uma angústia terrível, porque eu não me conhecia assim. Então e agora? “Vou para Torres. Tenho reunião dos acólitos. Amanhã, a missa onde vou acolitar. Entretanto vou passar pelos escuteiros católicos. Que sentido faz isto tudo?” Fui para Torres na camioneta, num estado... Disfarcei como pude. Recordo essa noite. “Espera lá. Nisto tudo, há alguma coisa que não ponhas em causa?” E com uma evidência que nunca mais desapareceu, pensei na pessoa de Jesus. “E ele fala na Igreja, não fala?” Então, por causa de Jesus, a Igreja. “A Igreja somos todos, as actividades.” Então, por isso, os escuteiros e os acólitos. “E Jesus disse: ‘Fazei isto em memória de mim...’, como o padre Joaquim faz no altar.” Então, por causa disso, a missa. Até hoje.

Foi importante descrer?
Foi muito importante. Desfez-se tudo. O que é que ficou? A pessoa de Jesus. Passaram 50 anos. Isto mantém-se com a mesma força. Permanece mais consistente, até. Vai passando provas, desafios. Dá-me ideia que já não vejo mais nada senão a pessoa de Jesus e as outras pessoas todas n’Ele.

Esse momento escuro, em que o mundo se põe em causa...
Foi uma angústia!

Poderia ser descrita como uma visitação maligna?
Não sou ninguém para me comparar aos místicos. Mas em todos eles há este momento. Há um famoso místico que marca a espiritualidade ocidental, João da Cruz. Tudo se passa à volta da noite negra. E nessa escuridão brilha uma outra luz, que não é aquela que tínhamos antes.

Estava a ouvi-lo e lembrei-me de uma imagem que não é escura, mas que tem a mesma angústia. A do sacrifício do filho de Abraão. (Por exemplo, no quadro de Caravaggio.) Até à última, não podemos crer que vai acontecer o sacrifício, que Abraão é capaz de o fazer.
Mas isso somos nós [a pensar assim]. Não podemos esquecer que a imolação dos filhos aos deuses não era uma coisa tão desabitual. Para Abraão, aquilo era plausível. O que vai descobrir é que Deus põe à prova a sua fé. E que não é preciso ir a esse ponto [sacrifício]. Nós, cristãos, acreditamos que quem acaba por assistir, de certa maneira impotente, à morte do filho é Deus. Acontece na cruz. O sentido do cristianismo é, na pessoa de Jesus, Deus viver a aventura humana até ao ponto do abandono. E mesmo aí manter-se fiel a si próprio. Recita-se aquele salmo em que ao mesmo tempo está Deus e o abandono. “Meus Deus, meu Deus, porque me abandonaste?” E cria-se um novo futuro. Há futuro, mesmo onde parece não haver nada.

Pensemos ainda nas grandes figuras bíblicas e nas parábolas que com elas vêm. Em que coisas pensou mais? Em que figuras se fixou mais?
Na adolescência deram-me muito vidas de santos. Eu estava perto de um convento franciscano. O convento do Varatojo onde vou desde criança. A figura de Francisco de Assis, obviamente, e que fui descobrindo pouco a pouco. Do Francisco de Assis simpático e primaveril, no qual é fácil entrar, ao Francisco de Assis que vive tão intensamente a misericórdia de Deus. [Vive] o amor subjacente a isto tudo, que nos recupera mesmo onde já ninguém nos recupera. Francisco de Assis chorava por não ser capaz de retribuir essa misericórdia de que se sentia inundado.

Outra figura que me tocou muito, que conheci num livro pequenino: o santo da alegria, Filipe Néri. Vive em Roma no século XVI. Vive intensamente a alegria. A alegria! Com graça. Se vou a Roma, só se não posso é que não paro na Chiesa Nuova. Vou lá falar com ele.

É a noção que tem?, a de que vai visitar alguém, falar com alguém?
Sim. É uma visita que não dispenso em Roma.

Vai rezar?
Ponho-me ali ao lado. Sento-me a aprender. Vou também ao Gesù [igreja dos jesuítas]. Com o Inácio de Loiola [fundador dos Jesuítas] também se aprende muita coisa. Depois vou a Santa Maria Maior. Já agora passo por São Clemente, que fica entre o Latrão e o Coliseu... [riso]

O seu Clemente vem daí? Há clérigos que tomam nomes que não os seus de baptismo. Por exemplo, Frei Bento Domingues chama-se Basílio.
O meu bisavô chamava-se Clemente José qualquer coisa. Teve 12 filhos; uns foram Clemente, outros, Santos, outros, Rolim. O meu nome próprio é Manuel e o meu apelido é Clemente.

Deixe-me perceber: nas suas visitas a essas igrejas, reza orações, pensa, entabula uma conversa?
Acabo por ficar calado. A minha oração é muito simples. Está muito marcada pela liturgia da igreja. Portanto, os textos da missa de cada dia. Alargada com aquilo a que chamamos a liturgia das horas, que antigamente se chamava Breviário. Na oração pessoal, que faço todos os dias, há muitos anos que rezo o rosário completo. Dantes havia três séries de orações: os mistérios gozosos, lembrando a infância de Jesus, os mistérios dolorosos, sobre a paixão de Jesus, e os mistérios gloriosos sobre a ressurreição. O Papa João Paulo II juntou os mistérios luminosos, que dizem respeito à vida pública de Jesus. Isto dá duzentas Avé Marias, mais os Pai Nossos. Não deve haver muitos dias que não reze [todos]. Aproveito o tempo. As deslocações.

Porquê?
Para que a minha imaginação não dispare e eu permaneça sempre ligado, com a recitação dessas orações, aos episódios da vida de Jesus. As cenas em que medito são as do dia-a-dia. Por exemplo, no tráfico de Lisboa, a conduzir o carro. Penso no mistério da visitação. Maria leva Jesus até Isabel. Rezo para que a vida das pessoas, dos carros, dos autocarros, seja também uma visitação. Que levem Jesus umas às outras. Essas cenas evangélicas contracenam com a vida das pessoas. Saem das páginas bíblicas para o dia a dia. E ajudam-me a interpretar a vida, na sua tragédia e na sua glória. As crianças que nascem, as pessoas que sofrem, os outros que a gente encontra, os momentos de festa. [riso] Eu sou muito simples, como vê. Gosto muito de ver estas coisas que, acredito, Deus representou na terra.

O sagrado foi uma coisa que encontrou sempre na vida de todos os dias, no humano. Quando pensamos na palavra sagrado, uma primeira tradução disso é transcendência. Posso interpretar assim o que disse?
Pode. Acho que é isso o cristianismo. Devo dizer que se não me tivesse sido apresentada de uma maneira tão convincente, e logo em casa... Os primeiros gestos de que me lembro: a minha mãe a pegar-me na mãozita e ensinar-me a fazer o sinal da cruz. Se não tivesse conhecido esta figuração total da vida, da morte e da ressurreição, Naquela pessoa, não sei se hoje seria religioso. Não me convence nada do céu que eu não veja na terra. O que a palavra Deus poderia sugerir no abstracto é no concreto que a apanho. O verbo de Deus encarnado, para mim, é que é a religião.
Não sou propenso a grandes narrativas. Não sou propenso a ideais que são tão ideais que acabam por ser como aqueles discos do Newton. Tinham várias cores, mas quando se punham a rodar, ficava tudo pardo. Gosto mais de cor por cor
Como é que lida com a falha, a injustiça, a ruína, com isso que estamos sempre a encontrar na vida de todos os dias?
Estamos no campo das virtudes teologais (aquelas que Deus infunde em nós), estamos no campo da esperança. Jesus não ficou fora disso. Está a ver o que é nascer, crescer, viver até aos 30 anos um Deus que até parece que está a perder tempo! A fazer aquela vida de Nazaré da Galileia, de carpinteiro.

O que acha que Ele esteve a fazer esses anos todos?
Aquilo que a gente faz a maior parte do nosso tempo. A formar-se. A viver a vida de todos os dias. A trabalhar e a ir para casa.

Porque é que precisava de viver a vida de todos os dias?
Porque não se fez homem a fingir. Há um versículo precioso do evangelho de Lucas: diz que Jesus aos 12 anos crescia em estatura, sabedoria e graça cristã. Crescia! Isto é plenamente convincente para mim. Abre esperança.

Como encontrar esse fio de luz nestes anos em que Portugal vive na dificuldade?
Encontro pessoas que são para mim lições magníficas. É pena não podermos abrir um telejornal diário com gente de todos os dias. Gente que perdeu o emprego, que sobrevive em condições precárias, que perdeu pessoas. Às vezes estou pesado. Pesado com coisas que tenho de levar por diante. Vou a comunidades e vejo gente que vive tragédias. Nem sei onde vão buscar maneira de ajudar outros. Fico tão agradecido, não é?

Passei esta manhã com a Cáritas. As campanhas que fazem são as mais correspondidas na sociedade portuguesa. As pessoas têm uma esperança preenchida. Não é uma esperança teórica.

Essa é a toada que mais se ouve? Ou é a dos desmobilizados?
A que mais se ouve será a dos desmobilizados. Entramos num outro campo, que não sei como é que se vai resolver. Não quero dizer que não sei se algum dia se resolverá. Ligo o noticiário das sete. Às vezes não dá vontade de enfrentar a vida. Interrogo-me. Porquê esta atracção pelo abismo quando há alguns troncos a que nos podemos agarrar na derrocada?

Como historiador, sabe que a História é feita de fluxos e refluxos. O último ciclo, na Europa, tem 70 anos. Se pensarmos no reconstrução no pós-Segunda Guerra...
Ou se pensarmos no ambiente antes da Primeira [Guerra], na Belle Époque, no princípio do século XX. Parecia que estávamos a atingir quase tudo o que era bom. A factura da Segunda Guerra foi mais consciencializada, com as imagens a que tivemos acesso do Holocausto. O socialismo de tipo comunista, esperança de tanta gente: começou-se a saber o que tinha sido aquilo na União Soviética, os gulags. Entrámos nos tempos da desilusão pós-moderna. Começámos a refluir para nós próprios. Que cada um viva o que sentir, o que quiser, no momento em que está, e se deixe de sonhos. Estamos muito negativistas.

Falta-nos uma grande narrativa?
Não sou propenso a grandes narrativas. Não sou propenso a ideais que são tão ideais que acabam por ser como aqueles discos do Newton, dos antigos laboratórios de Física. Tinham várias cores, mas quando se punham a rodar, ficava tudo pardo. Gosto mais de cor por cor. Pessoa por pessoa. Facto por facto. Exactamente porque sou cristão, o grande desígnio é uma criança num berço.

Estamos esvaziados de ideologias.
Estamos receosos. Desconfiados. Vou dizer-lhe uma coisa que digo por blague. Mas não é só. Quando me perguntam qual é o chefe de Estado que mais admiro (juntando reis e presidentes) destes quase nove séculos que levamos, digo que é o D. João VI.

Porquê?
Era uma pessoa muito pouco ou nada dotada para as funções que teve. Era pacato, com gostos muito simples. No fim dos anos 1880, quando toda a Europa desaba com a Revolução Francesa, com a loucura da mãe (D. Maria I), acaba por ficar no centro da governação. Aguenta, no fio da navalha, estar bem com franceses e ingleses. Parte precipitadamente para o Brasil. Napoleão, que depôs sucessivamente reis e príncipes da Europa, dirá mais tarde, em relação a D. João VI, que foi o único que o enganou. Aprecio figuras assim. Um homem de bom senso, dedicado. O Oliveira Martins diz que, se tivesse vivido, teria sido o melhor dos reis constitucionais.

Gosta de uma figura de quem não se espera tudo, que não tem uma aura messiânica que tantas vezes é pedida.
Sim, e que é boa pessoa e tenta conciliar o inconciliável. Não sou de grandes heróis. O heroísmo é o de todos os dias.

Usou a palavra desconfiança. Quando as pessoas sentem o dia a dia minado pela pobreza, descrêem. Para já, do futuro. Depois, do outro. Muitas vezes de Deus, se o têm com elas.
Sobretudo se a sua crença não é cristã. No cristianismo não temos nenhum seguro de vida. Temos a vida segura de outra maneira. Porque o princípio permanente de Deus continua. Mas não segura no sentido de uma ferradura ou de uma pata de coelho. Quem tem este tipo de muletas na sua relação com Deus, é natural que as perca.

Ferradura, pata de coelho... usa umas expressões de que não estamos à espera.
Há por aí umas religiões que não passam muito disso. Garantias. Assistência. Valem o que valem. E às vezes não valem nada. [Por causa] da desconfiança em relação às estruturas de apoio, estamos numa fase pós-política e pré-política.

Explique.
Quando falamos em política na Europa, e nos últimos 500 anos, estamos a falar de uma organização que foi crescendo, e que, já no século XX, nos foi garantindo o Estado e o Estado Social. Descansámos muito nessa organização, confiámos nela. Hoje, isso está muito abalado. Não temos, em relação ao Estado nem às figuras do Estado e da política, o sentimento com que fui criado nos anos 50. Seja de que partido for, qualquer político que aparecer, não pode contar com uma confiança à partida. Tem que a ganhar. Arduamente e todos os dias. Nesse sentido, estamos num tempo pós-político.

Também estamos num tempo pré-político no sentido em que precisamos de criar uma organização (que não é só a nível nacional — é muito preponderantemente a nível internacional) em que a política e as escolhas sejam outra vez garantidas. O Papa foi a Estrasburgo e disse coisas importantíssimas, lembrando que a Europa foi criada por pessoas que acreditavam no valor e na dignidade da pessoa humana, que é preciso reforçar a actividade política que serve realmente a pessoa humana. Não pode ser hipotecada a jogos de finança que ninguém sabe definir, nem sabe que rostos mandam.

Sendo um tempo pré-político ou pós político, estamos desasados da política, em qualquer caso.
Sim. Mas é absolutamente necessária, porque vivemos na polis. O que é que na sociedade sobrevive entre o pós-político e o pré-político? Famílias. Estamos a regressar de outra maneira, com muitos contornos e com muita problemática à mistura, a realidades familiares. Por vezes como única segurança possível. Até económica. Os avós que o digam. Outras vezes como zona de conforto, de suporte afectivo. Parecia que estava em crise. Que era menos valorizada. A família alargada. Os encontros de fim de semana. O regresso a casa. As famílias são mais antigas do que os Estados.

Está a dizer que com a crise houve um recentramento no espaço de confiança que a família representa?
É evidente. Reparo nisso constantemente. Na Igreja Católica estamos a passar pelos sínodos que o Papa Francisco convocou. O deste ano e o do próximo ano. Uma reflexão à escala mundial sobre a realidade familiar.

Como é que os vê?
Vejo com muita... expectativa é pouco. Ver à escala mundial, como vi, em Roma, bispos, também leigos, empenhados nos serviços familiares, a ressaltar isto mesmo — que a sociedade não pode perder este primeiro elo de sociabilidade que são as famílias em que nascemos e crescemos e onde, pelo menos pela adopção, os que não têm família possam crescer... Os Estados, as organizações políticas, não podem passar ao lado delas. Está-se a reparar: quando o resto falha, é o que aguenta.

O Papa Francisco interroga o que é a família hoje. Essa interrogação e definição mexe com dogmas da Igreja.
Há uma proposta cristã para a família, que é a aquela que Jesus Cristo formulou. Sai o homem de sua casa, a mulher de sua casa, unem-se os dois, formam uma pessoa. Na linguagem do evangelho, [fundem-se] numa só carne. “Não separe o homem o que Deus uniu.” É uma proposta cristã, que não é universalmente aceite. Acreditamos que bem entendida, bem activada e bem acompanhada é a que melhor coincide com as aspirações humanas a uma união profunda, de uma vida continuada que se vai desdobrando, dos filhos para os netos.

As antigas sociedades estavam baseadas nas famílias, cristãs ou não-cristãs. Tinham sempre a conjugação homem-mulher em relação aos filhos e ao património. (A palavra património soa perto da palavra matrimónio.) [Por vezes] legalmente reforçadas. Hoje não é assim. Mesmo na legislação de alguns países como o nosso, há permissões legais que não coincidem com a nossa proposta cristã do matrimónio. O que é que isto quer dizer? Que quem é cristão tem que levar a sério a proposta cristã sobre a família, apoiá-la. Tudo quanto seja proporcionar, manter, acompanhar a realidade familiar é uma prioridade política.

A metamorfose da sociedade e da família é tal (por exemplo, no número de recasados ou de casais homossexuais; estes não são um grupo maioritário mas correspondem, cada vez mais, a um grupo de iguais, considerados como tal, quer de um ponto de vista fiscal quer no acesso ao matrimónio); a metamorfose é tal que não pode ser ignorada? Tem que ser compreendida e integrada dentro das balizas da Igreja?
Casos desses podem não coincidir, e às vezes não coincidem com a proposta cristã. Para nós, que acreditamos na bondade da proposta evangélica da família, isso exige-nos mais em termos de presença e reforço da realidade familiar cristã, respeitando outras realidades que estão aí, na sociedade, e que nos merecem todo o respeito, como qualquer pessoa nos merece.

Sinais de abertura?
Temos sempre e só, como legitimidade e programa, a pessoa de Jesus. A actuação dele? Propunha. Não impunha. Com os que o queriam seguir, era exigente. “Se quiserem vir, é um caminho estreito.” Vamos seguindo, mas no fundo, e no fim, há apenas um juízo. Que não é nosso. É de Deus.

A vez anterior em que o entrevistei era bispo do Porto. O que mudou na sua vida desde que é Patriarca?
Não é desde que sou Patriarca. É desde há quinze anos, quando o Papa João Paulo me nomeou bispo-auxiliar de Lisboa. As funções episcopais: disse que é ser uma espécie de atador de pontas. Estamos no serviço das comunidades, dos movimentos, dos serviços religiosos, dos leigos, dos casais tentando atar pontas. Fazer a união das comunidades, das iniciativas. Puxa por aqui. Puxa por acolá. E já agora tentar não esquecer este. Venha cá. Conjugar esta actividade com aquela. Cada vez tenho mais pontas para atar.

Aquilo que diz é cada vez mais ouvido e tem uma ressonância política.
Pois. Admito que sim. Isso ainda me responsabiliza mais.

Interveio durante a crise dizendo que o povo português estava no seu limite, estava no fio. Diz isso como quem diz uma mensagem política?
Tem necessariamente consequências políticas. Tem a ver com a sociedade. Dizia e em muitas circunstâncias volto a dizê-lo. O limite é também um enormíssimo desafio. Não é a primeira vez que estamos em situações limite. No fim do século XIV há um certo limite em relação ao que havia até aí. Estava a começar um outro tempo. Precisávamos de recursos que não tínhamos. Esse limite ultrapassou-se, até geograficamente. O final do século XVI, quando desaparece praticamente toda a elite portuguesa no fatídico dia 4 de Agosto de 1578, em Alcácer-Quibir, é um limite. Estes limites são cíclicos. Foram também limites que permitiram que déssemos um salto em frente. É do que precisamos agora. Acredito que quando sairmos destes tempos tão difíceis e complexos... A palavra tem sido muito usada.

Em que sentido específico a usa?
O Papa tem-se insurgido contra a preponderância do financeiro sobre o económico e o político, e perguntado: “Mas quem é que manda? Quem é o rosto disto?” Em tempos políticos sabíamos. Era o governante tal. Portanto, há uma enorme complexidade. Mas espero que não vençamos esta complexidade para ficarmos como estávamos antes. Antes também não estávamos bem. As causas desta crise já lá estavam. A perversão de um sistema financeiro anónimo já lá estava.

Radica onde? Onde é que podemos situar o começo da crise, estes contornos?
Por isso digo que é complexo. Estou atento aos economistas, à academia. Não estou completamente esclarecido. Se calhar ninguém está.
As pessoas têm que ser ouvidas, senão têm de gritar mais alto. Apesar de tudo, noto uma certa morbidez pelo que se podia concertar e não concerta
É muito auscultado por políticos?
Acontece. Vêm cá de um leque ao outro. De associações laborais a empresariais, vários partidos. Há imensa gente de boa vontade em todos os meios. Cada um na sua perspectiva. Algumas, podemos ligar. Outras, temos de ir a votos para ver qual é aquela que [o povo] vai escolher. Não entro no discurso de sistematicamente desvalorizar as participações políticas. “É tudo igual”. Não, não é. Vamos ver uma por uma. Porque é que valorizamos tanto o contraste e tão pouco a harmonia? Não quer dizer que a realidade não tenha contrastes, não quer dizer que entremos num angelismo. Mas porque é que é preciso gritar tanto? Também somos estimulados a isso.

Há circunstâncias em que gritamos porque precisamos de nos fazer ouvir.
Com certeza. Sobre as manifestações: fazem parte da vida democrática. As pessoas têm que ser ouvidas, senão têm de gritar mais alto. Apesar de tudo, noto uma certa morbidez pelo que se podia concertar e não concerta. Há um certo show.

A morbidez e a desistência, nos últimos anos, de crise, são muito uma expressão de pobreza e de revolta em relação à pobreza. Tem esta ideia?
Nalguns casos, é. Noutros, não seria necessário nem o mais útil. Por exemplo, o Papa Francisco teve uma contribuição notável e reconhecida na aproximação entre os Estados Unidos e Cuba. Houve mediações. Chamadas aos consensos possíveis. Resolução de problemas concretos que ajudaram a resolver outros mais complicados (como as trocas de prisioneiros). Houve vontade. Uma boa vontade que pressupôs que o outro não era completamente mau nem estava completamente errado. Dá-me ideia que muitas outras coisas anda a fazer... Esta sua insistência na Turquia. Foi ao Extremo Oriente e andou muito perto da China. É óbvio que é na China que quer entrar.

Uma palavra para religião?
Vou à etimologia mais provável (não é a única): ligação ou religação. O mais provável é que a religião seja esta predisposição e necessidade de nos ligarmos a algo. Eu acredito que é Alguém.

Se pensa em Maria, que imagem é que lhe ocorre?
A de uma transparência absoluta. Nos relatos evangélicos, Maria é-nos apresentada como se fosse uma terra recriada onde pudesse aparecer um homem novo. Da parte da terra o que havia era a disponibilidade total para uma realidade que dela ia nascer e que a ultrapassava.

Hoje de manhã, na sua oração, em que coisas pensou?
Tenho uma imagem junto da minha cama com a Anunciação. Olho para lá e peço que uma realidade nova aconteça no mundo. Maria disse: “Como é que isso é possível?” E foi. Que seja hoje assim, também. Não sei como é que vai ser. Pedem-me coisas que ultrapassam em absoluto a minha capacidade de pensar, sentir, decidir, saber... Que seja.

Como é que é a sua imagem da Anunciação?
A mais clássica possível. Nossa Senhora aqui, o anjinho acolá. É uma gravura do século XVIII. Já lá estava, no quarto que me deram. Penso muito na Anunciação, no acreditar que é possível, no abrir-se à mensagem, ao anúncio.

Voltemos a si menino. Como é que se chamava a sua mãe?
Tinha um nome lindo! Maria Sofia. Está a ver? Mais bonito não pode ser. Maria, pelo que estamos a falar. E Sofia, pela sabedoria, que ela tinha, muito. Morreu com 95 anos. A mulher mais bem disposta que conheci na vida.
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domingo, 28 de dezembro de 2014

Zbigniew Brzezinski: "Vivemos uma instabilidade sem precedentes"

O ESTRATEGISTA Brzezinski no seu escritório em Washington. Ele está otimista com a aproximação entre EUA e Irã  (Foto: Karen Ballard/Redux)

O influente estrategista americano diz que há um “despertar político global”. Ele provocou fragmentação e incerteza, e não há quase nada que os EUA possam fazer a respeito

Considerado um dos maiores estrategistas da política externa americana no século XX, Zbigniew Brzezinski aconselhou todos os presidentes democratas americanos desde Jimmy Carter (1977-1981). Brzezinski foi um dos personagens centrais do combate à União Soviética na Guerra Fria e previu a emergência da China, a  decadência dos Estados Unidos, o enfraquecimento do Ocidente e a importância crescente da tecnologia nos movimentos políticos. Aos 86 anos, mantém febril atividade acadêmica e publica um livro a cada dois anos. Brzezinski afirma que, apesar de vivermos uma “era de tumulto, fragmentação e incerteza”, não há risco de uma guerra global.
ÉPOCA – O senhor costuma dizer que há uma crise global de poder. O que levou a ela e quais suas consequências?
Zbigniew Brzezinski –
Vivemos um período de instabilidade sem precedentes. Há enormes faixas de território dominadas por agitação, revoluções, raiva e perda do controle do Estado. A volatilidade decorre da coincidência de várias mudanças estruturais importantes no sistema internacional. O Ocidente não é mais dominante, os impérios acabaram. Há o que chamo de “despertar político global”: uma tomada de consciência sobre as injustiças, desmandos, desigualdades e explorações. É comovente ver esse despertar produzir ondas como a Primavera Árabe. Mas ele não é necessariamente um passo rumo à democracia. Em alguns casos, como na Europa Central, onde a democracia tinha raízes mais profundas, há um movimento contrário à democracia. Às vezes, essas revoltas aumentam o extremismo e o fanatismo. Vemos um mundo em que há um enorme tumulto, fragmentação e incerteza, em que não há uma única ameaça central, mas várias ameaças diversificadas.

ÉPOCA – O que faz o período atual diferente de outros períodos dramáticos como os anteriores à Primeira e a Segunda Guerra Mundial?
Brzezinski –
Há muitas similaridades, mas não acredito no caos de grandes guerras. Em 1914 e em 1939, as grandes potências tinham uma visão estreita do mundo. Seus líderes estavam preocupados com questões imediatas, acreditavam que poderiam resolvê-las com o uso da força. Nenhuma das potências atuais tem essa visão, nem mesmo a Rússia, que late, mas não morde. Os EUA perderam poder. A China observa as turbulências geopolíticas à distância. Há os Estados-nação do Oriente Médio, que têm alguma viabilidade geopolítica histórica: Turquia, Irã, Israel e Egito; as potências asiáticas de segundo escalão, como Japão e Índia. Essa profusão de protagonistas garante alguma estabilidade mundial residual. Não teremos nada equivalente a 1914 ou a 1941, mas caminhamos para uma época de grande confusão e caos reinante. Na verdade, vejo paralelos entre o que acontece hoje no Oriente Médio e o que aconteceu na Europa durante a Guerra dos Trinta Anos (série de guerras entre nações europeias entre 1618 e 1648): a ascensão da identificação religiosa como o principal motivo para ação política, com terríveis consequências.  

  "O Bric não existe como bloco. É apenas um amontoado de letras. Deixou de ser considerado 
uma alternativa séria."
ÉPOCA – Quais as consequências dessa nova ordem multipolar, que alguns analistas chamam de “ascensão do resto” e outros de “nova desordem mundial”?
Brzezinski –
Não sei o que esses slogans significam. Discussões recentes a respeito do Bric (Brasil, Rússia, Índia e China) foram baseadas em delírios ou apenas em conjecturas oportunistas, como ficou provado. O Bric não existe como bloco. É apenas um amontoado de letras. Deixou de ser considerado uma alternativa séria. Arriscaria dizer que tais fórmulas, em larga medida, refletem o que tenho dito nos últimos 20 anos: vivemos um período de instabilidade sem precedentes, provocado pelo despertar político global.

ÉPOCA – Qual o papel dos Estados Unidos neste mundo?
Brzezinski –
O cenário hoje é mais complexo que há 20 anos. A ascensão da China revelou um poder que já se equipara economicamente aos Estados Unidos. Em breve, isso ocorrerá no âmbito militar. A conduta dos russos também contribuiu para maiores incertezas. O fracasso da Europa em desenvolver uma política e um perfil militar coeso reduziu a capacidade americana de agir como um poder decisivo no mundo. A fragilidade americana fica evidente na incapacidade de dar estabilidade à política dinâmica, arrogante e imprevisível do Oriente Médio. Os esforços americanos para produzir a paz entre Israel e Palestina não foram produtivos, e a política do Oriente Médio se tornou cada vez mais violenta. Dito isso, os EUA ainda são preeminentes. Mas não são mais capazes de exercer poder hegemônico. Há vantagens nisso, especialmente quando a política americana é equivocada. Mas isso gera um sistema internacional instável e imprevisível.

ÉPOCA – O que provocou essa perda de influência americana?
Brzezinski –
Ela é resultado de várias transformações de significado histórico. Notadamente, a liderança inepta do presidente George W. Bush contribuiu para esse desenvolvimento negativo. A invasão ao Iraque em 2003 foi injustificada, uma vez que se baseou numa premissa falsa. Sua condução desmoralizou os EUA em vários aspectos e contribuiu para o crescente fanatismo no mundo islâmico. O presidente Barack Obama foi mais sensato em sua abordagem. Mas mesmo ele não esteve preparado o suficiente para adotar uma postura decisiva com relação a duas questões que exigem uma solução construtiva: um compromisso com o Irã e um comprometimento entre palestinos e israelenses. Em ambos os casos, uma abordagem dinâmica teria sido mais produtiva.

"Apesar de tudo, Vladimir Putin não é uma ameaça séria,
 não é um Hitler do século XXI"
 
ÉPOCA – O senhor foi um dos principais mentores de Obama. Ficou decepcionado com a política externa do governo dele?
Brzezinski –
Não diria decepcionado, mas surpreso. Como quando ele anunciou, em 2011, que Bashar al-Assad (o ditador da Síria) deveria partir. Não estava claro, para mim, por que deveríamos tirar Assad do poder, ainda mais em face do que poderia vir no lugar dele. Não havia nada na Síria nem sequer próximo à Primavera Árabe. Era uma questão de uma guerra sectária, sunitas contra xiitas. A política claudicante dos Estados Unidos contribuiu para aumentar o caos na Síria, depois da entrada em cena de grupos hostis aos EUA, como o Estado Islâmico. Obama adotou uma política autodestrutiva naquele momento. Agora, estamos num caminho mais correto, envolvendo nas conversas não só os  europeus, mas também russos, chineses e iranianos.

ÉPOCA – O senhor era conselheiro de Segurança Nacional durante a Revolução Islâmica no Irã, em 1979. Acredita numa aproximação dos EUA com o Irã?
Brzezinski –
Bem, algo acontece, porque houve algum diálogo indireto entre EUA e Irã, ainda limitado, mas sem precedentes, considerando as duas últimas décadas. Os iranianos estão esgotados e cansados com as sanções econômicas. É o momento para nos aproximarmos deles. Basicamente, vejo o Irã como um autêntico Estado-nação: tem a coesão que falta à maioria dos países do Oriente Médio e é um Estado mais solidamente definido que o Egito. O problema do Irã é sua ameaça potencial para Israel.

ÉPOCA – Israel acusa o Irã de  mentir sobre o programa nuclear. Os iranianos são confiáveis?
Brzezinski –
Que país não mente quando se trata de relações entre Estados? Os EUA foram acusados de mentir diversas vezes. Em algumas delas, mentimos mesmo. Suspeito que os israelenses também tenham mentido, ocasionalmente. Dito isso, o que podemos fazer? Só poderemos negociar com algum país que tenha a chancela de Israel? Há uma certa histeria quando se trata do programa nuclear do Irã. Os iranianos não são suicidas, não se lançarão a uma corrida desenfreada para fabricar uma bomba nuclear e jogá-la sobre Israel, país que tem de 150 a 200 bombas nucleares e as Forças Armadas mais poderosas do Oriente Médio. Por que o Irã faria isso? Tolice. Eles apenas querem acabar com as sanções que atrapalham o país, tendo o que mostrar à população.

ÉPOCA – Cada vez mais a Rússia tenta controlar antigos satélites soviéticos. O expansionismo de Vladimir Putin é preocupante?
Brzezinski –
A Rússia parece inclinada a aproveitar sua capacidade militar para pressionar seus vizinhos mais fracos. O uso da força na Europa, pela primeira vez desde o fim da Segunda Guerra Mundial, teve um efeito negativo sobre a estabilidade internacional. A ação russa na Ucrânia, o uso da força para conquistar um território, é inaceitável no século XXI. É uma ameaça à ordem mundial e reflete as condições de deterioração dessa ordem. É por isso que os países interessados em preservar a paz mundial devem se unir e pressionar a Rússia a encarar a realidade. A ausência de alguma acomodação forçará a Rússia a assumir a postura de um satélite chinês. Torcerei para que mesmo a China se torne mais ativa e franca sobre a questão da conquista de um território por meio do uso de forças militares. Apesar de tudo, Vladimir Putin não é uma ameaça séria, um “Hitler do século XXI”, ainda que parte de sua linguagem e seus trejeitos mais recentes sejam reminiscências de Hitler e Mussolini. 
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Reportagem por  RODRIGO TURRER
Fonte: Revista Época online, 28/12/2014 10h00 - Atualizado em 28/12/2014 15h03