(Continuação da obra "Convite à Filosofia", de Marilena Chaui)
Capítulo 3 [da parte 3]:
As concepções da verdade
"A verdade é o acordo entre o pensamento
e a realidade.
O erro, o falso e a mentira surgem
quando dizemos de algum ser aquilo que ele não é,
quando lhe atribuímos qualidades ou propriedades
que ele não possui
ou quando lhe negamos qualidades ou propriedades
que ele possui.
A idéia é um ato intelectual;
o ideado, uma realidade externa
conhecida pelo intelecto.
A idéia verdadeira é o conhecimento das causas,
qualidades, propriedades e relações
da coisa conhecida"
(Marilena Chaui)
Grego, latim e hebraico
Nossa
idéia da verdade foi construída ao longo dos séculos, a partir de três
concepções diferentes, vindas da língua grega, da latina e da hebraica.
Em grego, verdade se diz aletheia,
significando: não-oculto, não-escondido, não- dissimulado. O verdadeiro
é o que se manifesta aos olhos do corpo e do espírito; a verdade é a
manifestação daquilo que é ou existe tal como é. O verdadeiro se opõe ao
falso, pseudos, que é o encoberto, o escondido, o dissimulado, o que
parece ser e não é como parece. O verdadeiro é o evidente ou o
plenamente visível para a razão. Assim, a verdade é uma qualidade das próprias coisas e o verdadeiro está nas próprias coisas.
Conhecer é ver e dizer a verdade que está na própria realidade e,
portanto, a verdade depende de que a realidade se manifeste, enquanto a
falsidade depende de que ela se esconda ou se dissimule em aparências.
Em latim, verdade se diz veritas e se refere à precisão, ao rigor e à exatidão de um relato,
no qual se diz com detalhes, pormenores e fidelidade o que aconteceu.
Verdadeiro se refere, portanto, à linguagem enquanto narrativa de fatos
acontecidos, refere-se a enunciados que dizem fielmente as coisas tais
como foram ou aconteceram. Um relato é veraz ou dotado de veracidade quando a linguagem enuncia os fatos reais. A verdade depende, de um lado, da veracidade, da memória e da acuidade mental de quem fala e, de outro, de que o enunciado corresponda aos fatos acontecidos.
A verdade não se refere às próprias coisas e aos próprios fatos (como
acontece com a aletheia), mas ao relato e ao enunciado, à linguagem. Seu
oposto, portanto, é a mentira ou a falsificação.
Em hebraico verdade se diz emunah e significa confiança.
Agora são as pessoas e é Deus quem são verdadeiros. Um Deus verdadeiro
ou um amigo verdadeiro são aqueles que cumprem o que prometem, são fiéis
à palavra dada ou a um pacto feito; enfim, não traem a confiança. A
verdade se relaciona com a presença, com a espera de que aquilo que foi
prometido ou pactuado irá cumprir-se ou acontecer. Emunah é uma palavra
de mesma origem que amém, que significa: assim seja. A verdade é
uma crença fundada na esperança e na confiança, referidas ao futuro, ao
que será ou virá. Sua forma mais elevada é a revelação divina e sua expressão mais perfeita é a profecia.
Aletheia se refere ao que as coisas são; veritas se refere aos fatos que foram; emunah se refere às ações e as coisas que serão. A nossa concepção da verdade é uma síntese dessas três fontes
e por isso se refere às coisas presentes (como na aletheia), aos fatos
passados (como na veritas) e às coisas futuras (como na emunah). Também
se refere à própria realidade (como na aletheia), à linguagem (como na
veritas) e à confiança-esperança (como na emunah).
Palavras
como “averiguar” e “verificar” indicam buscar a verdade; “veredicto” é
pronunciar um julgamento verdadeiro, dizer um juízo veraz; “verossímil” e
“verossimilhante” significam: ser parecido com a verdade, ter traços
semelhantes aos de algo verdadeiro.
Diferentes teorias sobre a verdade
Existem
diferentes concepções filosóficas sobre a natureza do conhecimento
verdadeiro, dependendo de qual das três idéias originais da verdade
predomine no pensamento de um ou de alguns filósofos.
Assim, quando predomina a aletheia,
considera-se que a verdade está nas próprias coisas ou na própria
realidade e o conhecimento verdadeiro é a percepção intelectual e
racional dessa verdade. A marca do conhecimento verdadeiro é a evidência,
isto é, a visão intelectual e racional da realidade tal como é em si
mesma e alcançada pelas operações de nossa razão ou de nosso intelecto.
Uma idéia é verdadeira quando corresponde à coisa que é seu conteúdo e
que existe fora de nosso espírito ou de nosso pensamento. A teoria da
evidência e da correspondência afirma que o critério da verdade é a adequação do nosso intelecto à coisa, ou da coisa ao nosso intelecto.
Quando predomina a veritas,
considera-se que a verdade depende do rigor e da precisão na criação e
no uso de regras de linguagem, que devem exprimir, ao mesmo tempo, nosso
pensamento ou nossas idéias e os acontecimentos ou fatos exteriores a
nós e que nossas idéias relatam ou narram em nossa mente. Agora, não se
diz que uma coisa é verdadeira porque corresponde a uma realidade
externa, mas se diz que ela corresponde à realidade externa porque é
verdadeira. O critério da verdade é dado pela coerência interna ou
pela coerência lógica das idéias e das cadeias de idéias que formam um
raciocínio, coerência que depende da obediência às regras e leis dos
enunciados corretos. A marca do verdadeiro é a validade lógica de seus argumentos.
Finalmente, quando predomina a emunah, considera-se que a verdade depende de um acordo ou de um pacto de confiança entre
os pesquisadores, que definem um conjunto de convenções universais
sobre o conhecimento verdadeiro e que devem sempre ser respeitadas por
todos. A verdade se funda, portanto, no consenso e na confiança
recíproca entre os membros de uma comunidade de pesquisadores e
estudiosos. O consenso se estabelece baseado em três princípios que
serão respeitados por todos:
1.
que somos seres racionais e nosso pensamento obedece aos quatro
princípios da razão (identidade, não-contradição, terceiro-excluído e
razão suficiente ou causalidade);
2. que somos seres dotados de linguagem e que ela funciona segundo regras lógicas convencionadas e aceitas por uma comunidade;
3.
que os resultados de uma investigação devem ser submetidos à discussão e
avaliação pelos membros da comunidade de investigadores que lhe
atribuirão ou não o valor de verdade.
Existe
ainda uma quarta teoria da verdade que se distingue das anteriores
porque define o conhecimento verdadeiro por um critério que não é
teórico e sim prático. Trata-se da teoria pragmática,
para a qual um conhecimento é verdadeiro por seus resultados e suas
aplicações práticas, sendo verificado pela experimentação e pela
experiência. A marca do verdadeiro é a verificabilidade dos resultados.
Essa concepção da verdade está muito próxima da teoria da
correspondência entre coisa e idéia (aletheia), entre realidade e
pensamento, que julga que o resultado prático, na maioria das vezes, é conseguido porque o conhecimento alcançou as próprias coisas e pode agir sobre elas.
Em
contrapartida, a teoria da convenção ou do consenso (emunah) está mais
próxima da teoria da coerência interna (veritas), pois as convenções ou
consensos verdadeiros costumam ser baseados em princípios e argumentos
lingüísticos e lógicos, princípios e argumentos da linguagem, do
discurso e da comunicação.
Na
primeira teoria (aletheia/correspondência), as coisas e as idéias são
consideradas verdadeiras ou falsas; na segunda (veritas/coerência) e na
terceira (emunah/consenso), os enunciados, os argumentos e as idéias é
que são julgados verdadeiros ou falsos; na quarta (pragmática), são os
resultados que recebem a denominação de verdadeiros ou falsos. Na primeira e na quarta teoria, a verdade é o acordo entre o pensamento e a realidade.
Na segunda e na terceira teoria, a verdade é o acordo do pensamento e
da linguagem consigo mesmos, a partir de regras e princípios que o
pensamento e a linguagem deram a si mesmos, em conformidade com sua
natureza própria, que é a mesma para todos os seres humanos (ou definida
como a mesma para todos por um consenso).
A verdade como evidência e correspondência
Se
observarmos a concepção grega da verdade (aletheia), notaremos que nela
as coisas ou o Ser é o verdadeiro ou a verdade. Isto é, o que existe e manifesta sua existência para nossa percepção e para nosso pensamento é verdade ou verdadeiro.
Por
esse motivo, os filósofos gregos perguntam: Como o erro, o falso e a
mentira são possíveis? Em outras palavras, como podemos pensar naquilo
que não é, não existe, não tem realidade, pois o erro, o falso e a
mentira só podem referir-se ao não-Ser?
O Ser é o manifesto, o visível para os olhos do corpo e do espírito, o evidente.
Errar, falsear ou mentir, portanto, é não ver os seres tais como são, é
não falar deles tais como são. Como é isso possível? A resposta dos
gregos é dupla:
1. o erro, o falso e a mentira se referem à aparência superficial e ilusória das coisas ou dos seres e surgem quando não conseguimos alcançar a essência das realidades(como
no poema de Mário de Andrade, em que a garoa-neblina cria um véu que
encobre, oculta e dissimula as coisas e as torna confusas, indistintas);
são um defeito ou uma falha de nossa percepção sensorial ou
intelectual;
2. o
erro, o falso e a mentira surgem quando dizemos de algum ser aquilo que
ele não é, quando lhe atribuímos qualidades ou propriedades que ele não
possui ou quando lhe negamos qualidades ou propriedades que ele possui.
Nesse caso, o erro, o falso e a mentira se alojam na linguagem e
acontecem no momento em que fazemos afirmações ou negações que não
correspondem à essência de alguma coisa.
O erro, o falso e a mentira são um acontecimento do juízo ou do enunciado.[Juízo
é uma proposição afirmativa (“S é P”) ou negativa (“S não é P”) pela
qual atribuo ou nego a um sujeito S um predicado P. O predicado é um
atributo afirmado ou negado do sujeito e faz parte (ou não) de sua
essência.] Se eu formular o seguinte juízo: “Sócrates é imortal”, o erro
se encontra na atribuição do predicado “imortal” a um sujeito
“Sócrates”, que não possui a qualidade ou a propriedade da imortalidade.
O erro é um engano do juízo quando desconhecemos a essência de um ser. O falso e a mentira, porém, são juízos deliberadamente errados, isto é, conhecemos a essência de alguma coisa, mas deliberadamente emitimos um juízo errado sobre ela.
O que é a verdade? É a conformidade entre nosso pensamento e nosso juízo e as coisas pensadas ou formuladas. Qual a condição para o conhecimento verdadeiro? A evidência, isto é, a visão intelectual da essência de um ser. Para formular um juízo verdadeiro precisamos, portanto, primeiro conhecer a essência, e a conhecemos ou por intuição, ou por dedução, ou por indução.
A
verdade exige que nos libertemos das aparências das coisas; exige,
portanto, que nos libertemos das opiniões estabelecidas e das ilusões de
nossos órgãos dos sentidos. Em outras palavras, a verdade sendo o
conhecimento da essência real e profunda dos seres é sempre universal e necessária,
enquanto as opiniões variam de lugar para lugar, de época para época,
de sociedade para sociedade, de pessoa para pessoa. Essa variabilidade e
inconstância das opiniões provam que a essência dos seres não está
conhecida e, por isso, se nos mantivermos no plano das opiniões, nunca
alcançaremos a verdade.
O
mesmo deve ser dito sobre nossas impressões sensoriais, que variam
conforme o estado do nosso corpo, as disposições de nosso espírito e as
condições em que as coisas nos aparecem. Pelo mesmo motivo, devemos ou
abandonar as idéias formadas a partir de nossa percepção, ou encontrar os aspectos universais e necessários da experiência sensorial que alcancem parte da essência real das coisas.
No
primeiro caso, somente o intelecto (espírito) vê o Ser verdadeiro. No
segundo caso, o intelecto purifica o testemunho sensorial. Por exemplo,
posso perceber que uma flor é branca, mas se eu estiver doente, a verei
amarela; percebo o Sol muito menor do que a Terra, embora ele seja maior
do que ela. Apesar desses enganos perceptivos, observo que toda percepção percebe qualidades nas
coisas (cor, tamanho, por exemplo) e, portanto, as qualidades pertencem
à essência das próprias coisas e fazem parte da verdade delas.
Quando,
porém, examinamos a idéia latina da verdade como veracidade de um
relato, observamos que, agora, o problema da verdade e do erro, do falso
e da mentira deslocou-se diretamente para o campo da linguagem. O
verdadeiro e o falso estão menos no ato de ver (com os olhos do corpo ou
com os olhos do espírito) e mais no ato de dizer.
Por
isso, a pergunta dos filósofos, agora, é exatamente contrária à
anterior, ou seja, pergunta-se: Como a verdade é possível? De fato, se a
verdade está no discurso ou na linguagem, não depende apenas do
pensamento e das próprias coisas, mas também de nossa vontade para
dizê-la, silenciá-la ou deformá-la. O verdadeiro continua sendo tomado
como conformidade entre a idéia e as coisas – no caso, entre o discurso
ou relato e os fatos acontecidos que estão sendo relatados -, mas
depende também de nosso querer.
Esse aspecto voluntário da
verdade torna-se de grande importância com o surgimento da Filosofia
cristã porque, com ela, é introduzida a idéia de vontade livre ou de livre-arbítrio,
de modo que a verdade está na dependência não só da conformidade entre
relato e fato, mas também da boa-vontade ou da vontade que deseja o
verdadeiro.
Ora,
o cristianismo afirma que a vontade livre foi responsável pelo pecado
original e que a vontade foi pervertida e tornou-se má-vontade. Assim
sendo, a mentira, o erro e o falso tenderiam a prevalecer contra a
verdade. Nosso intelecto ou nosso pensamento é mais fraco do que nossa
vontade e esta pode forçá-lo ao erro e ao falso.
Essas questões foram posteriormente examinadas pelos filósofos modernos, os filósofos do Grande Racionalismo Clássico [século
XVII], que introduzirão a exigência de começar a Filosofia pelo exame
de nossa consciência – vontade, intelecto, imaginação, memória -, para
saber o que podemos conhecer realmente e quais os auxílios que devem ser oferecidos ao nosso intelecto para que controle e domine nossa vontade e a submeta ao verdadeiro.
É
preciso começar liberando nossa consciência dos preconceitos, dos
dogmatismos da opinião e da experiência cotidiana. Essa consciência
purificada, que é o sujeito do conhecimento, poderá, então, alcançar as
evidências (por intuição, dedução ou indução) e formular juízos
verdadeiros aos quais a vontade deverá submeter-se.
Tanto os antigos quanto os modernos afirmam que:
1. a verdade é conhecida por evidência (a evidência pode ser obtida por intuição, dedução ou indução);
2. a verdade se exprime no juízo, onde a idéia está em conformidade com o ser das coisas ou com os fatos;
3. o
erro, o falso e a mentira se alojam no juízo (quando afirmamos de uma
coisa algo que não pertence à sua essência ou natureza, ou quando lhe
negamos algo que pertence necessariamente à sua essência ou natureza);
4. as causas do erro e do falso são as opiniões preconcebidas, os hábitos, os enganos da percepção e da memória;
5.
a causa do falso e da mentira, para os modernos, também se encontra na
vontade, que é mais poderosa do que o intelecto ou o pensamento, e
precisa ser controlada por ele;
6.
uma verdade, por referir-se à essência das coisas ou dos seres, é
sempre universal e necessária e distingue-se da aparência, pois esta é
sempre particular, individual, instável e mutável;
7. o pensamento se submete a uma única autoridade: a dele própria com capacidade para o verdadeiro.
Quando
os filósofos antigos e modernos afirmam que a verdade é conformidade ou
correspondência entre a idéia e a coisa e entre a coisa e a idéia (ou
entre a idéia e o ideado), não estão dizendo que uma idéia verdadeira é
uma cópia, um papel carbono, um “xerox” da coisa verdadeira. Idéia e
coisa, conceito e ser, juízo e fato não são entidades de mesma natureza e não há entre eles uma relação de cópia. O que os filósofos afirmam é que a idéia conhece a estrutura da coisa, conhece as relações internas necessárias que constituem a essência da coisa e as relações e nexos necessários que ela mantém com outras. Como disse um filósofo, a idéia de cão não late e a de açúcar não é doce. A idéia é um ato intelectual; o ideado, uma realidade externa conhecida pelo intelecto. A idéia verdadeira é o conhecimento das causas, qualidades, propriedades e relações da coisa conhecida,
e da essência dela ou de seu ser íntimo e necessário. Quando o
pensamento conhece, por exemplo, o fenômeno da queda livre dos corpos
(formulado pela física de Galileu), isto não significa que o pensamento
se torne um corpo caindo no vácuo, mas sim que conhece as causas desse
movimento e as formula em conceitos verdadeiros, isto é, formula as leis
do movimento.
Uma outra teoria da verdade
Quando
estudamos a razão, vimos os problemas criados pelo inatismo e pelo
empirismo. Vimos também a “revolução copernicana” de Kant, distinguindo
as estruturas ou formas e categorias da razão e os conteúdos trazidos a
ela pela experiência, isto é, a distinção entre os elementos a priori e a posteriori no conhecimento.
Com a revolução copernicana kantiana, uma distinção muito importante passou a ser feita na Filosofia: a distinção entre juízos analíticos e juízos sintéticos.
Um
juízo é analítico quando o predicado ou os predicados do enunciado nada
mais são do que a explicitação do conteúdo do sujeito do enunciado. Por
exemplo: quando digo que o triângulo é uma figura de três lados, o
predicado “três lados” nada mais é do que a análise ou a explicitação do
sujeito “triângulo”.
Quando,
porém, entre o sujeito e o predicado se estabelece uma relação na qual o
predicado me dá informações novas sobre o sujeito, o juízo é sintético,
isto é, formula uma síntese entre um predicado e um sujeito. Assim, por
exemplo, quando digo que o calor é a causa da dilatação dos corpos, o
predicado “causa da dilatação” não está analiticamente contido no
sujeito “calor”. Se eu dissesse que o calor é uma medida de temperatura
dos corpos, o juízo seria analítico, mas quando estabeleço uma relação
causal entre o sujeito e o predicado, como no caso da relação entre
“calor” e “dilatação dos corpos”, tenho uma síntese, algo novo me é dito
sobre o sujeito através do predicado.
Para
Kant, os juízos analíticos são as "verdades de razão" de Leibniz, mas
os juízos sintéticos teriam que ser considerados "verdades de fato". No
entanto, vimos que os fatos estão sob a suspeita de Hume, isto é, fatos
seriam hábitos associativos e repetitivos de nossa mente, baseados na
experiência sensível e, portanto, um juízo sintético jamais poderia
pretender ser verdadeiro de modo universal e necessário.
Que faz Kant? Introduz a idéia de juízos sintéticos a priori, isto é, de juízos
sintéticos cuja síntese depende da estrutura universal e necessária de
nossa razão e não da variabilidade individual de nossas experiências. Os juízos sintéticos a priori exprimem o modo como necessariamente nosso pensamento relaciona e conhece a realidade.
A causalidade, por exemplo, é uma síntese a priori que nosso
entendimento formula para as ligações universais e necessárias entre
causas e efeitos, independentemente de hábitos psíquicos associativos.
Todavia, vimos também que Kant afirma que a realidade que conhecemos filosoficamente e cientificamente não é a realidade em si das
coisas, mas a realidade tal como é estruturada por nossa razão, tal
como é organizada, explicada e interpretada pelas estruturas a priori do
sujeito do conhecimento. A realidade são nossas idéias verdadeiras e o kantismo é um idealismo.
Vimos também, ao estudar a Filosofia contemporânea, que o filósofo Husserl criou uma filosofia chamada fenomenologia.
Essa palavra vem diretamente da filosofia kantiana. Com efeito, Kant
usa duas palavras gregas para referir-se à realidade: a palavra noumenon, que significa a realidade em si, racional em si, inteligível em si; e a palavra phainomenon (fenômeno), que significa a realidade tal como se mostra ou se manifesta para nossa razão ou para nossa consciência. Kant
afirma que só podemos conhecer o fenômeno (o que se apresenta para a
consciência, de acordo com a estrutura a priori da própria consciência) e
que não podemos conhecer o noumenon (a coisa em si).
Fenomenologia
significa: conhecimento daquilo que se manifesta para nossa
consciência, daquilo que está presente para a consciência ou para a
razão, daquilo que é organizado e explicado a partir da própria
estrutura da consciência. A verdade se refere aos fenômenos e os
fenômenos são o que a consciência conhece.
Ora, pergunta Husserl, o que é o fenômeno? O que é que se manifesta para a consciência? A própria consciência.
Conhecer os fenômenos e conhecer a estrutura e o funcionamento
necessário da consciência são uma só e mesma coisa, pois é a própria
consciência que constitui os fenômenos. Como ela os constitui? Dando sentido às
coisas. Conhecer é conhecer o sentido ou a significação das coisas tal
como esse sentido foi produzido ou essa significação foi produzida pela
consciência. O sentido, ou significação, quando universal e necessário, é [para Husserl] a essência das coisas. A verdade é o conhecimento das essências universais e necessárias ou o conhecimento das significações constituídas pela consciência reflexiva ou pela razão reflexiva.
Na perspectiva idealista,
seja ela kantiana ou husserliana, não podemos mais dizer que a verdade é
a conformidade do pensamento com as coisas ou a correspondência entre a
idéia e o objeto. A verdade será o
encadeamento interno e rigoroso das idéias ou dos conceitos (Kant) ou
das significações (Husserl), sua coerência lógica e sua necessidade. A
verdade é um acontecimento interno ao nosso intelecto ou à nossa
consciência.
Para Kant e para Husserl, o erro e a falsidade encontram-se no realismo,
isto é, na suposição de que os conceitos ou as significações se refiram
a uma realidade em si, independente do sujeito do conhecimento. Esse
[suposto] erro e essa [suposta] falsidade, Kant chamou de dogmatismo e Husserl, de atitude natural ou tese natural do mundo.
Uma terceira concepção da verdade
Quando
falamos sobre Filosofia contemporânea, fizemos referência a um tipo de
filosofia conhecida como filosofia analítica. A filosofia analítica
dedicou-se prioritariamente aos estudos da linguagem e da lógica e por
isso situou a verdade como um fato ou um acontecimento lingüístico e lógico, isto é, como um fato da linguagem.
A
teoria da verdade, nessa filosofia, passou por duas grandes etapas. Na
primeira, os filósofos consideravam que a linguagem produz enunciados
sobre as coisas – há os enunciados do senso-comum ou da vida cotidiana e
os enunciados lógicos formulados pelas ciências. A pretensão da
linguagem, nos dois casos, seria a de produzir enunciados em
conformidade com a própria realidade, de modo que a verdade seria tal
conformidade ou correspondência entre os enunciados e os fatos e coisas.
Essa conformidade ou correspondência seria inadequada e imprecisa na
linguagem natural ou comum (nossa linguagem cotidiana) e seria adequada,
rigorosa e precisa na linguagem lógica das ciências. Por isso, a
ciência foi definida como “linguagem bem feita” e concebida como
descrição e “pintura” do mundo.
No
entanto, inúmeros problemas tornaram essa concepção insustentável. Por
exemplo, se eu disser “estrela da manhã” e “estrela da tarde”, terei
dois enunciados diferentes e duas pinturas diferentes do mundo.
Acontece, porém, que esses dois enunciados se referem ao mesmo objeto, o
planeta Vênus. Como posso ter dois enunciados diferentes para
significar o mesmo objeto ou a mesma coisa?
Um outro exemplo, conhecido com o nome de “paradoxo do catálogo”,
também pode ilustrar as dificuldades da teoria da verdade como
correspondência entre enunciado e coisa, em que a correspondência é uma
“pintura” da realidade feita pelas idéias. Se eu disser que existe o
catálogo de todos os catálogos, onde devo colocar o “catálogo dos
catálogos”? Isto é, o catálogo dos catálogos é um catálogo catalogado
por ele mesmo junto com os outros catálogos, ou é um catálogo que não
faz parte de nenhum catálogo? Se estiver catalogado, não pode ser
catálogo de todos os catálogos, pois será necessário um outro catálogo
que o contenha; mas se não estiver catalogado, não é o catálogo de todos
os catálogos, pois em tal catálogo está faltando ele próprio.
O que se percebeu nesse paradoxo é que a estrutura e o funcionamento da linguagem não correspondem exatamente à estrutura e ao funcionamento das coisas.
Essa descoberta conduziu a filosofia analítica à idéia da verdade como
algo puramente lingüístico e lógico, isto é, a verdade é a coerência
interna de uma linguagem que oferece axiomas, postulados e regras para
os enunciados e que é verdadeira ou falsa conforme respeite ou
desrespeite as normas de seu próprio funcionamento. Cada campo do
conhecimento cria sua própria linguagem, seus axiomas, seus postulados,
suas regras de demonstração e de verificação de seus resultados e é a
coerência interna entre os procedimentos e os resultados com os
princípios que fundamentam um certo campo de conhecimento que define o
verdadeiro e o falso. Verdade e falsidade não estão nas coisas nem nas
idéias, mas são valores dos enunciados, segundo o critério da coerência
lógica.
A concepção pragmática da verdade
Os
filósofos empiristas tendem a considerar que os critérios anteriores
são puramente teóricos e que, para decidir sobre a verdade de um fato ou
de uma idéia, eles não são suficientes e podem gerar ceticismo, isto é,
como há variados critérios e como há mudanças históricas no conceito da
verdade, acaba-se julgando que a verdade não existe ou é inalcançável
pelos seres humanos.
Para
muitos filósofos empiristas, a verdade, além de ser sempre verdade de
fato e de ser obtida por indução e por experimentação, deve ter como
critério sua eficácia ou utilidade. Um conhecimento é verdadeiro não só
quando explica alguma coisa ou algum fato, mas sobretudo quando permite
retirar conseqüências práticas e aplicáveis. Por considerarem como
critério da verdade a eficácia e a utilidade, essa concepção é chamada
de pragmática e a corrente filosófica que a defende, de pragmatismo.
As concepções da verdade e a História
As
várias concepções da verdade que foram expostas estão articuladas com
mudanças históricas, tanto no sentido de mudanças na estrutura e
organização das sociedades, como quanto no sentido de mudanças no
interior da própria Filosofia.
Assim,
por exemplo, nas sociedades antigas, baseadas no trabalho escravo, a
idéia da verdade como utilidade e eficácia prática não poderia aparecer,
pois a verdade é considerada a forma superior do espírito humano,
portanto, desligada do trabalho e das técnicas, e tomada como um valor
autônomo do conhecimento enquanto pura contemplação da realidade, isto
é, como theoria.
Nas
sociedades nascidas com o capitalismo, em que o trabalho escravo e
servil é substituído pelo trabalho livre e em que é elaborada a idéia de
indivíduo como um átomo social, isto é, como um ser que pode ser
conhecido e pensado por si mesmo e sem os outros, a verdade tenderá a
ser concebida como dependendo exclusivamente das operações do sujeito do
conhecimento ou da consciência de si reflexiva autônoma.
Também
nas sociedades capitalistas, regidas pelo princípio do crescimento ou
acumulação do capital por meio do crescimento das forças produtivas
(trabalho e técnicas) e por meio do aumento da capacidade industrial
para dominar e controlar as forças da Natureza e a sociedade, a verdade
tenderá a aparecer como utilidade e eficácia, ou seja, como algo que
tenha uso prático e verificável. Assim como o trabalho deve produzir
lucro, também o conhecimento deve produzir resultados úteis.
Numa
sociedade altamente tecnológica, como a do século XX ocidental europeu e
norte-americano, em que as pesquisas científicas tendem a criar nos
laboratórios o próprio objeto do conhecimento, isto é, em que o objeto
do conhecimento é uma construção do pensamento científico ou um constructus produzido
pelas teorias e pelas experimentações, a verdade tende a ser
considerada a forma lógica e coerente assumida pela própria teoria, bem
como a ser considerada como o consenso teórico estabelecido entre os
membros das comunidades de pesquisadores.
A
verdade, portanto, como a razão, está na História e é histórica. Também
as transformações internas à própria Filosofia modificam a concepção da
verdade. A teoria da verdade como correspondência entre coisa e idéia,
ou fato e idéia, liga-se à concepção realista da razão e do
conhecimento, isto é, à prioridade do objeto do conhecimento, ou
realidade, sobre o sujeito do conhecimento. Ao contrário, a concepção da
verdade como coerência interna e lógica das idéias ou dos conceitos
liga-se à concepção idealista da razão e do conhecimento, isto é, à prioridade do sujeito do conhecimento ou do pensamento sobre o objeto a ser conhecido.
As
concepções históricas e as transformações internas ao conhecimento
mostram que as várias concepções da verdade não são arbitrárias nem
casuais ou acidentais, mas possuem causas e motivos que as explicam, e
que a cada formação social e a cada mudança interna do conhecimento
surge a exigência de reformular a concepção da verdade para que o saber
possa realizar-se.
As verdades (os conteúdos conhecidos) mudam, a idéia da verdade (a forma de conhecer) muda, mas não muda a busca do verdadeiro,
isto é, permanece a exigência de vencer o senso-comum, o dogmatismo, a
atitude natural e seus preconceitos. É a procura da verdade e o desejo
de estar no verdadeiro que permanecem. A verdade se conserva, portanto, como o valor mais alto a que aspira o pensamento.
As exigências fundamentais da verdade
Se
examinarmos as diferentes concepções da verdade, notaremos que algumas
exigências fundamentais são conservadas em todas elas e constituem o
campo da busca do verdadeiro:
1. compreender as causas da diferença entre o parecer e o ser das coisas ou dos erros;
2. compreender as causas da existência e das formas de existência dos seres;
3. compreender os princípios necessários e universais do conhecimento racional;
4. compreender as causas e os princípios da transformação dos próprios conhecimentos;
5. separar preconceitos e hábitos do senso comum e a atitude crítica do conhecimento;
6. explicitar com todos os detalhes os procedimentos empregados para o conhecimento e os critérios de sua realização;
7. liberdade de pensamento para investigar o sentido ou a significação da realidade que nos circunda e da qual fazemos parte;
8. comunicabilidade,
isto é, os critérios, os princípios, os procedimentos, os percursos
realizados, os resultados obtidos devem poder ser conhecidos e
compreendidos por todos os seres racionais. Como escreve o filósofo Espinosa, o Bem Verdadeiro é aquele capaz de comunicar-se a todos e ser compartilhado por todos;
9. transmissibilidade,
isto é, os critérios, princípios, procedimentos, percursos e resultados
do conhecimento devem poder ser ensinados e discutidos em público. Como diz Kant, temos o direito ao uso público da razão;
10. veracidade, isto é, o conhecimento não pode ser ideologia,
ou, em outras palavras, não pode ser máscara e véu para dissimular e
ocultar a realidade servindo aos interesses da exploração e da dominação
entre os homens. Assim como a verdade exige a liberdade de pensamento
para o conhecimento, também exige que seus frutos propiciem a liberdade
de todos e a emancipação de todos;
11. a verdade deve ser objetiva,
isto é, deve ser compreendida e aceita universal e necessariamente, sem
que isso signifique que ela seja “neutra” ou “imparcial”, pois o
sujeito do conhecimento está vitalmente envolvido na atividade do
conhecimento e o conhecimento adquirido pode resultar em mudanças que
afetem a realidade natural, social e cultural.
Como disseram os filósofos Sartre e Merleau-Ponty,
somos “seres em situação” e a verdade está sempre situada nas condições
objetivas em que foi alcançada e está sempre voltada para compreender e
interpretar a situação na qual nasceu e à qual volta para trazer
transformações. Não escolhemos o país, a
data, a família e a classe social em que nascemos – isso é nossa
situação -, mas podemos escolher o que fazer com isso, conhecendo nossa situação e indagando se merece ou não ser mantida.
A verdade é, ao mesmo tempo, frágil e poderosa.
Frágil porque os poderes estabelecidos podem destruí-la, assim como
mudanças teóricas podem substituí-la por outra. Poderosa, porque a exigência do verdadeiro é o que dá sentido à existência humana.
Um texto do filósofo Pascal nos mostra essa fragilidade-força do desejo do verdadeiro:
"O homem é apenas um caniço, o mais fraco da Natureza: mas é um caniço pensante. Não é preciso que o Universo inteiro se arme para esmagá-lo: um vapor, uma gota de água são suficientes para matá-lo. Mas, mesmo que o Universo o esmagasse, o homem seria ainda mais nobre do que aquilo que o mata, porque ele sabe que morre e
conhece a vantagem do Universo sobre ele; mas disso o Universo nada
sabe. Toda nossa dignidade consiste, pois, no pensamento. É a partir
dele que nos devemos elevar e não do espaço e do tempo, que não
saberíamos ocupar."
-------------------------
Fonte: Luz e Calor, 09/12/2014
Nenhum comentário:
Postar um comentário