Luiz Felipe Pondé*
Você seria capaz de esconder judeus em casa durante a Segunda Guerra? Responda com calma
Há alguns anos, quando do lançamento do filme "O Leitor", escrevi nesta coluna um microconto que se chamava "O Quarto".
Nesse microconto eu descrevia uma situação em que um homem escondia
judias (mãe e filhas) em sua casa durante a Segunda Guerra, e sua
família (mulher, filhos e sogra) acabam por entregá-los (marido e
judias) aos nazistas, por medo, desprezo e interesses comuns como "ter
uma vida tranquila" durante a ocupação.
Ao final da invasão, sua mesma família se juntava a outros cidadãos
"honestos" na humilhação pública de mulheres colaboracionistas. Eu
sustentava que hoje em dia faríamos a mesma coisa.
Na época, recebi dezenas de e-mails furiosos com minha descrença na
capacidade ética da humanidade de aprender com os erros. Alguns
"psicanalistas de esquerda" (um caso a ser estudado em consultório), em
especial, me odiaram.
De fato, não acredito que a humanidade aprenda muito em determinadas
áreas, entre elas, romper a cegueira com a própria falha moral:
dificilmente somos capazes de ver as coisas de modo claro quando está em
jogo nossa autoestima e nossos interesses cotidianos.
E quando (como no caso de "psicanalistas de esquerda") se afirma que
existe uma "clínica política" para questões como essas, o ridículo da
coisa é maior ainda. Como alguém pode ser psicanalista e crer numa
bobagem como "a verdadeira clínica é a política"?
O engano quanto à própria disposição moral em enfrentar riscos, como o
descrito por mim naquele microconto (o caso de judeus x nazistas é fácil
citar porque é um clichê histórico, outros casos podem ser pensados em
situações semelhantes), não se atém apenas ao fato de que não judeus
esconderem judeus implicava riscos para a família como um todo.
A primeira questão que muitos se fazem sobre aquela época é: por que
homens e mulheres escolheriam colocar seus filhos em risco para esconder
pessoas com as quais nada tinham a ver? Muitos filhos se sentiam mal
amados e preteridos por conta da atitude dos pais.
Mas há uma outra questão que normalmente escapa nesse experimento moral
hipotético que descrevi. Questão mais difícil de ser encarada, porque
não toca apenas na oposição entre coragem e covardia, mas também na
minha própria avaliação moral das vítimas em jogo.
Qual é essa questão? Simples: os nazistas haviam feito um excelente
trabalho de propaganda ideológica na época (que se somava ao atávico
antissemitismo, existente até hoje, mas travestido de antissionismo, que
facilitava o trabalho dos seus marqueteiros).
Este trabalho consistia em deixar claro para a população que os judeus
eram maus. Eles eram interesseiros, gostavam de deixar os pobres mais
pobres, eram desleais com seus países, só pensavam em si mesmos e em
grana. Enfim, "gente ruim". E essa propaganda pegou.
Alguma dúvida que pegou? Não era apenas o medo dos nazistas que fez
quase todo mundo colaborar, era o fato de que a maioria esmagadora das
pessoas concordava que os judeus não eram gente legal. Por isso, os
desprezavam.
Logo, quando se perguntar "você seria capaz de esconder judeus durante a
guerra?", você deve pensar em algum tipo de gente que você considere
"gente ruim" no lugar dos "judeus".
Gente, talvez, que você concordasse, não com o extermínio em si, mas que
não era "gente legal", gente que você não convidaria para jantar em
casa, ou que queimaria seu filme caso fossem vistas com você.
Candidatos? Fala a verdade...
Pense bem antes de responder com bravatas morais, porque deve existir
alguma categoria de gente que você despreza. Ideias são baratas.
Enfrentar situações reais é que custa caro.
Sem acessar essa capacidade humana, demasiado humana, de sentir ódio ou
desprezo por quem você acha que não seja gente legal (e todo mundo acha
que algum tipo de gente merece algum tipo de desprezo), você não entende
o que estava em jogo na defesa dos judeus naquela época. Era correr
riscos por alguém que você achava que não merecia todo esse
investimento.
No microconto em questão, elas ficavam escondidas num quarto. A vida moral íntima é sempre um quarto escuro.
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* Filósofo. Escritor. Prof. Universitário.
Fonte: Folha online, 08/12/2014
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