JUREMIR MACHADO DA SILVA*
“Sou um grande poeta, mas não há mais espaço para a poesia em nosso mundo”.
Fomos visitar Michel Houellebecq no seu apartamento num dos
mais asiáticos bairros de Paris. Ele mora no 12º andar de um dos
edifícios mais altos da cidade. Excêntrico, estranho e mordazmente
irônico, Michel recebeu-nos, na companhia da sua jovem e bonita
companheira, de pijama. Tido por muitos, apesar dos prêmios Nobel
recentes de Jean-Marie Le Clézio e Patrick Modiano, como o mais
importante e genial escritor francês das últimas décadas, Houellebecq
não esconde que se considera o mais provável próximo Nobel da literatura
do seu país. Só acha que isso pode demorar uns 20 anos. Enquanto isso
não chega, vai lançar, em janeiro de 2015, o seu novo romance. “Vou
botar fogo na França”, promete. Multimídia, ele encarnou a si mesmo no
filme “O sequestro de Michel Houellebecq. Fotógrafo, chama a atenção com
uma exposição no popularíssimo bairro de Ménilmontant. Cantor e poeta,
ele não se faz do modesto: “Sou um grande poeta, mas não há mais espaço
para a poesia em nosso mundo”. Ganhador do mais prestigioso prêmio
francês, o Goncourt, por “A carta e o território” (publicado no Brasil
pela Record), Houellebecq ficou famoso com “Extensão do domínio da luta”
e “Partículas elementares” (Sulina).
Os franceses contam os dias para a chegada do livro que vai sacudir o
inverno e aquecer mais polêmicas em torno do mais maldito e provocativo
dos escritores do século XXI.
Caderno de Sábado – Ainda há um lugar para a literatura num mundo dominado pela imagem e pelos objetos?
Michel Houellebecq – Sim, ainda há espaço para a literatura. Ao
menos, num país como a França. É claro que isso depende de cada país. Na
França, a literatura vai bem. Huuummm… Não, aqui as pessoas ainda leem.
Pode parecer até bizarro, mas há grande interesse por livros. Talvez
seja culpa do inverno ou do nosso atraso em outros setores. A verdade é
que escrever livros ainda dá prestígio, dinheiro e influência entre nós.
Ainda bem.
CS – Quem lê? Para que serve a literatura num mundo materialista, consumista e sem grandes ideias?
Houellebecq – Huummm… A literatura serve para cada leitor ver o mundo
expresso em palavras sem que cada um esteja diretamente implicado. É
como ver o mundo de fora estando dentro dele. Pode-se mergulhar num
turbilhão sem arriscar a própria vida. Dá uma sensação de vertigem e de
conforto ao mesmo tempo. Quem lê? Boa pergunta. Principalmente as
mulheres. Mas, de maneira geral, muita gente. Há pessoas que adoram
narrativas e intrigas. Não podemos ver viver sem fabulação e sem nos
projetar na ficção, que talvez seja a nossa mais profunda realidade.
CS – Tu te lanças cada vez mais na exploração de outros registros
artísticos como cinema, música, teatro, fotografia. É pelo gosto de tudo
explorar ou pela possibilidade de atingir um público que não lê?
Houellebecq – Meu público no cinema é menor. Se faço isso, é para não
ficar parado. Não sou de escrever todo o tempo. Tenho curiosidade por
outros registros. Escrever é uma aventura muito particular. Preciso de
outras coisas. Por que não se tentar tudo aquilo que pode dar prazer e
aguçar as sensações? A arte, como a vida, tem muitas entradas. O
importante é não se sentir coagido pelas imposições dos outros. Faço o
que desejo e me dá prazer.
CP – E a fotografia? Qual a especificidade da tua fotografia? Jean
Baudrillard dizia ter escolhido a fotografia para encontrar algo que
pudesse escapar da lógica da mercadoria e de todo valor de troca. E tu?
Houellebecq – Não é a mesma coisa. A fotografia também pode ter valor
de mercadoria. No meu caso, ainda não tem, mas poderá ter. O esquisito é
que, pela primeira vez, fiz alguma coisa que não é destinada ao grande
público. Dirijo-me a um público que não conheço. Exprimo algo. Nada
mais. Toda a minha obra, na literatura e no cinema, está voltada para o
grande público. Trabalho para o consumidor comum de cultura. Agora, com a
fotografia, não. Não se trata de ter sucesso ou de ser compreendido. A
minha literatura é totalmente voltada para o grande público. Meus livros
atingem vendas de milhares de exemplares. A França, insisto, é um país
de leitores. Minha fotografia é um exercício de sensibilidade. Só.
CS – Dá mesmo para se falar em literatura de qualidade para um grande público? Existe esse grande público?
Houellebecq – Na França, sim. Em países de analfabetos, não. Também
não em países dominados pela oralidade ou que saltaram diretamente do
oral para as imagens da tevê. Precisamos parar com as lamentações. Para
bons livros, e até para certos livros ruins, existem público e mídia. O
que falta, muitas vezes, é talento e ousadia. Há um público que quer ser
desafiado com novidades e outros que deseja apenas ser alimentado com
mais do mesmo. Temos de saber a quem nos dirigir e ocupar os espaços
existentes.
CS – No Brasil, grande público só Paulo Coelho. Leste?
Houellebecq – Tentei ler O Alquimista. Não gostei muito. Desisti. Mas
sei que Paulo Coelho é um cara formidável. Os livros chatos são duros
de ser lidos. Cada um com seus gostos. Na França, mesmo autores como eu
podem encontrar uma enormidade de leitores. Não é preciso ser Coelho nem
fazer qualquer tipo de concessão para encontrar leitores. Escrevo
aquilo que quero, sinto e desejo exprimir. Funciona. Agora, tenho de
suar a camisa para chegar lá.
CS – O livro impresso tem futuro?
Houellebecq – Sim. Isso é evidente. Eu não tenho uma grande
biblioteca. Mas as pessoas adoram ter uma. Acham bonito. O livro
impresso é um produto que se seduz por ser belo, ainda que as capas
francesas sejam feias ou sempre iguais, e agradável de manusear. O fato
de custar mais caro do que o livro eletrônico não é necessariamente um
problema. Muitos produtos caros são bem vendidos. Há quem goste
justamente do que é mais caro. O futuro do livro impresso está
garantido. O livro, na casa de muita gente, funciona como decoração.
Pode-se comprar por metro. Não há como decorar uma sala com livros
digitais. O objeto livro é belo. Não temos com o que nos preocupar.
CS – Tu consegues ler livros inteiros em tablets?
Houellebecq – Não. É muito chato. Desisti disso. Mesmo as novas
gerações, que também envelhecerão, vão comprar apartamentos e querer
decorá-los com belas bibliotecas. Advogados e médicos compram livros por
metro para decorar seus gabinetes. O livro tem um belo futuro pela
frente.
CS – Dois escritores franceses – Jean-Marie Le Clézio e Patrick
Modiano – ganharam o prêmio Nobel recentemente. Mereceram? Tu sonhas com
o Nobel? Acreditas que ganhará?
Houellebecq – Le Clézio nunca me impressionou. De Modiano, eu gosto.
Não sou de esconder o que eu penso. O próximo, tenho certeza disso,
serei eu. O problema é que isso pode demorar uns 20 anos e eu já estar
morto até lá. Se dois franceses receberam o Nobel em tão pouco tempo, o
próximo não virá tão cedo. Ruim para mim. Mas deve vir.
CS – Há algo de político na atribuição do Nobel?
Houellebecq – O lado político do escritor pode ajudar em alguns
casos, mas não sempre. É mais sutil. Ser politicamente correto, às
vezes, facilita, mas não se resume a isso. A qualidade literária também
conta muito. O Nobel também não quer dar a impressão de ser tão
politicamente correto. Não fica bem como escolha artística e estética.
Daí a necessidade de equilíbrio.
CS – A política francesa continua a te interessar?
Houellebecq – Muito. Como nunca. Ela é magnífica. Nada mais
extraordinário do que um presidente da República tão insignificante
quanto François Hollande. Ele é uma nulidade. Nunca tivemos nada igual.
Por que isso? Em primeiro lugar, graças ao próprio Hollande, que é
repugnante. Quando ligo a televisão e dou de cara com ele, quase vomito.
Aí, desligo rapidamente. Todo mundo tem nojo dele. A rejeição a ele é
até física. Não posso vê-lo. Na minha opinião, em 2022 a Frente Nacional
de Marine Le Pen vai chegar ao poder, vai ganhar a presidência do país.
Em 2017, a eleição será ganha pela direita tendo Alain Juppé como
candidato. Nicolas Sarkozy não me parece em condições de entrar de novo
no jogo. Depois, será a vez de Marine Le Pen. Pode apostar nisso.
CS – Será uma catástrofe?
Houellebecq – Já estamos vivendo na catástrofe política e econômica. Faz tempo. Nenhuma novidade quanto a isso.
CS – Será a vitória do racismo?
Houellebecq – Não. Marine Le Pen não é racista. Ela é patriota.
Entende que a França deve proclamar a sua independência em relação a
Europa. A obsessão dessa mulher é a autonomia da França. Quanto ao
racismo, acho que essa não é a sua marca. Talvez seja mais do pai dela.
Romper com a Europa conforme o projeto de Marine Le Pen seria uma
catástrofe. Romper com a Europa de acordo com o que eu penso, embora
ninguém me ouça, seria magnífico. Um país precisa de mais autonomia para
gerir seus negócios. Talvez um dia eu tenha a paciência de mostrar meu
plano.
CS – Pensas em te candidatar a algum cargo político?
Houellebecq – Não. Tenho coisas mais importantes a fazer na vida. Não
nasci para ser político. Além do mais, as pessoas não me levariam a
sério. Eu gosto de acompanhar o noticiário político. Vi, por exemplo, as
manifestações que aconteceram no Brasil antes da Copa do Mundo. Depois,
dei uma olhada na Copa do Mundo. Mas fiquei triste. Eu queria muito que
a Argentina ganhasse. Adoro o Messi. Senti dó do Brasil contra a
Alemanha: 7 a 1. Que horror. Mudei minha opinião sobre o Brasil. Hoje,
vejo o Brasil como um país ambicioso, um dos BRICS. O problema é que
Brasil e Rússia parecem estar prestes a afundar. Os BRICS vão se tornar
apenas RICS? A questão é, de fato, séria.
CS – Bernard Maris lançou um livro chamado “Houellebecq economista”. Qual a relação da tua obra com a economia?
Houellebecq – Ele acha que critico o neoliberalismo. Não deixa de ser verdade que a economia perpassa minha obra.
CS – Tu conheces o francês Thomas Piketty, autor de O Capital do Século XXI”, que está visto como guru mundial?
Houellebecq – Não. As minhas leituras são outras. De vez em quando,
faço comentários sobre economia que surpreende algumas pessoas. Há muito
disso nos meus romances. Uma visão sobre a mercadoria, a
mercantilização da vida.
CS – Vais publicar um novo romance em breve?
Houellebecq – Sim, em janeiro, pela Flammarion. Mas não posso revelar
o título. Vou botar fogo na França, modéstia à parte, com muita
polêmica. Já estou na correção das provas. Foram quase dois anos de
trabalho. Há dias que não escrevo uma linha. Em outros, escrevo muito.
Reescrevo enormemente. É tudo muito laborioso. Pode ser que alguns
escritores exagerem o tempo que levam para escrever um livro, pois dizer
que se fez em três meses não pegaria bem, mas eu levo realmente de um a
dois anos. A ironia só me vem quando estou escrevendo. Não consigo ter
nada pronto na cabeça antes. A primeira versão do que escrevo é sempre
muito ruim. O melhor vem com muito trabalho. A espontaneidade não me
traz qualidade. Tenho de refazer. Eu jamais quis ser romancista. Eu
queria ser poeta. No começo, eu fazia poesia. Eu tinha muito talento. A
poesia me vinha espontaneamente. Com o romance é diferente. Na verdade,
sou o único bom poeta francês do século XX. Sou naturalmente vocacionado
para a poesia. O romance, que me dá mais reconhecimento, é fruto de
muito trabalho. Mas não escrevo mais poemas. Não consigo. Não me vem
mais. É muito raro surgir um bom poeta. Gostaria que lembrassem de mim
como poeta. Não há, infelizmente, interesse pela poesia. Nada a ver com a
vulgaridade da nossa época. A verdade é que a poesia sempre foi para
poucos. E acabou. O romance sobrevive por ser mais interessante até que
os filmes. Existem lacunas que o leitor deve preencher e histórias para
acompanhar. A poesia não tem isso. O romance, ao contrário do que se
pensa, é algo popular. Na França, os livros de ficção são produtos de
consumo de massa. O mesmo não se dá com a poesia. Está em extinção.
CS – Gostaste da experiência como ator de cinema?
Houellebecq – Foi prazeroso. O pessoal que trabalhou comigo gostou. O
resultado deve ser analisado pelo público e pelos críticos. Eu me senti
muito bem atuando.
CS – Eu me lembro que, na Patagônia, as tuas fotos eram perfeitas do
ponto de vista do enquadramento, da luz e de certa sensibilidade para
captar ângulos originais. O que tu procuras nas fotos em exposição em
Ménilmontant?
Houellebecq – Algo que eu mesmo não defino. São objetos visuais
acompanhados, muitas vezes, de legendas. Hummm… Seria, talvez, adequado
falar em explorações experimentais da visão sobre objetos presentes no
mundo.
CS – Na Patagônia, tua cantavas Charles Trenet…
Houellebecq – Trenet é maravilhoso. O melhor de uma época. Muito
superior a Brassens, Charles Aznavour e a Serge Gainsbourg, que é fraco.
Trenet tem uma swing, uma leveza, uma poesia, algo que só alguns
artistas brasileiros da Bossa Nova têm. Pena que Trenet esteja tão
esquecido. É lindo o que ele canta. Singelo e profundo.
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* Escritor. Prof. Universitário.
Fonte: Correio do Povo online, 05/12/2014
imagem da Internet
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