A revista Rolling Stone que está nas bancas
nos Estados Unidos contém uma denúncia que causou repulsa no país e
continua a repercutir no exterior. Em 2012, uma estudante de 18 anos foi
estuprada e espancada por sete colegas da Universidade da Virgínia, em Charlottesville. O crime aconteceu durante uma festa numa fraternity house
- tipo de república ou residência estudantil. O choque não se deve
apenas aos detalhes gráficos das três horas de horror a que foi
submetida a estudante. O que aconteceu nas horas e nos dois anos
seguintes é uma história de complacência e omissão criminosa. E, pior,
ocorrida numa escola de prestígio, fundada por Thomas Jefferson, o terceiro presidente do país.
A entrevista é de Lúcia Guimarães, publicada pelo jornal O Estado de S.Paulo, 29-11-2014.
Os EUA acumularam mais pesquisa acadêmica e experiência jurídica sobre o problema da violência sexual em universidades
do que qualquer outra importante democracia ocidental. Acumularam
também estatísticas sombrias. Os números dispensam qualificação: 1 em 5
estudantes sofrem estupro ou tentativa de estupro no câmpus, mas só 5% a
10% denunciam a agressão (fora do câmpus o índice de denúncia de
estupro é 35%).
O calvário pós-estupro da estudante, que a Rolling Stone identifica pelo pseudônimo Jackie, começou já na saída da fraternity house.
Na rua, descalça e com a roupa ensanguentada, ela telefonou para seus
dois melhores amigos, um rapaz e uma jovem que a desaconselharam a ir ao
hospital ou denunciar o crime à universidade. Um ano depois do ataque, Jackie
não conseguia acompanhar o curso, caiu em depressão, pensava em se
suicidar e contou o que aconteceu à escola. A diretora encarregada de
casos de agressão sexual no câmpus deu a Jackie
a opção de não fazer nada, ir à polícia, relatar o caso a um comitê
disciplinar ou, pasmem, ter um encontro supervisionado com seus
estupradores em que Jackie expressaria seus sentimentos em busca de uma ‘solução informal’.
Exposta à vergonha nacional, a Universidade da Virgínia cancelou todas as festas nas associações estudantis e prometeu elaborar novas diretrizes para combater a violência sexual. A universidade é uma das 86 escolas de ensino superior sendo investigadas pelo governo federal sob uma lei de igualdade de direito à educação que encampou assédio e agressão sexual como promotores de desigualdade.
O grupo inclui universidades de elite como Harvard. A punição vai de
multas até a suspensão de financiamento federal. A investigação é
conduzida pelo Escritório de Direitos Humanos do Departamento de Educação.
O governo de Barack Obama, especialmente o vice-presidente, Joe Biden, tem sido ativo no reconhecimento e combate à epidemia de violência sexual nas universidades,
um problema mais agudo num país onde dois terços dos estudantes começam
a vida universitária morando em dormitórios no câmpus, frequentemente
num Estado distante de casa. Em janeiro deste ano, a Casa Branca
instituiu uma força-tarefa para proteger estudantes contra a violência sexual.
Mas uma recomendação feita pelo governo Obama em
2011, cuja intenção era facilitar as denúncias, está sendo criticada
pelo efeito oposto. O governo federal disse às escolas que era obrigação
delas investigar denúncias e lhes atribuiu a tarefa de adjudicar os
casos, na esperança de que, contando com um estágio anterior a chamar a
polícia, estudantes teriam incentivo para contar suas histórias. Na
prática, as escolas se viram transformadas em tribunais, com professores
e bibliotecários em comitês de avaliação do que é, de fato, um crime. O
processo é falho - frequentemente resulta em punições como suspensão ou
expulsão para criminosos que deveriam estar cumprindo pena de prisão.
Pesquisas mostram que cerca de 4% dos estudantes são autores da maioria
dos estupros e são reincidentes, cometendo em média, cada um, seis
estupros.
Entre os críticos que querem ver os agressores enfrentando a Justiça,
e não o casulo institucional universitário, está a professora Bonnie Sue Fisher, da Universidade de Cincinnati, uma pioneira dos estudos sobre a violência no câmpus, e coautora de livros sobre o tema, como Campus Crime: Legal, Social, and Policy Perspectives.
Eis a entrevista.
Desde que começou a examinar números de violência sexual em câmpus, a sra. notou padrões que distinguem algumas escolas?
Nenhum campus é imune à agressão sexual.
O que varia é o número de alunas que revelam sua experiência e a reação
institucional. Ainda hoje, de 90% a 95% dos casos de violência sexual
não são denunciados nas escolas. Algumas escolas fecham os olhos para as
ocorrências, outras sinalizam apoio às alunas para encoraja-las a fazer
denúncias. Quando há a percepção de que uma escola vá criar obstáculos,
a reação da aluna é pensar ‘não quero ser vitimizada uma segunda vez,
não quero que minha integridade seja questionada’. O que estamos vendo
agora é uma transformação cultural que ajuda as vítimas a falar, não
porque as universidades fizeram progresso em lidar com o problema, mas
apesar delas. Note que as mulheres agora são 58% das novas inscrições e
há um movimento social maior de conscientização.
Quando o governo americano começou a encarar o problema do estupro no câmpus?
Em 1990, o presidente George Bush, pai, assinou o Clery Act,
uma lei obrigando qualquer escola que recebesse fundos federais a
relatar todos os incidentes de crime no câmpus à polícia. O ato levou o
nome de Jeanne Clery, que tinha 19
anos quando foi barbaramente estuprada e assassinada no prédio de seu
dormitório na Lehigh University, na Pensilvânia, em 1986. Seus pais se
tornaram ativistas e perceberam que o problema da segurança em
universidades era nacional. A lei passou por várias emendas, mas ficou
claro que tinha problemas. Os relatórios anuais feitos ao Departamento
de Educação eram incompletos, não havia cobrança sistemática pelo
governo. A emenda mais importante veio em 2011 com o chamado SaVE Act (Ato de Eliminação da Violência no Câmpus), que, entre outras mudanças, ampliou as exigências para lidar com incidentes como violência doméstica, intimidade forçada e stalking (perseguição).
A reportagem da Rolling Stone que revelou o estupro de uma estudante por sete colegas na Universidade da Virgínia a surpreendeu?
Não. Há mais de 15 anos pesquiso o assunto e sabemos de casos
extremamente violentos que não foram propriamente investigados ou nem
denunciados, em que responsáveis não foram punidos. Não podemos
subestimar a mentalidade de grupo que domina as fraternity houses. Ela recompensa o comportamento de seus frequentadores e pune as jovens que apontam seu agressor. Mas reportagens como a da Rolling Stone são um sinal de que não é mais possível continuar como está. O trem já saiu da estação.
Como sua pesquisa atual contribui para a força tarefa instituída este ano pela Casa Branca para proteger estudantes?
Estou trabalhando num modelo de questionário para melhorar a coleta
de dados. Por mais que haja controvérsia sobre o tema, minha experiência
nesse campo é clara: as palavras usadas têm impacto significativo. Não
adianta sair perguntando: ‘Você foi estuprada?’, ‘Sofreu agressão
sexual?’ É necessário fazer perguntas específicas sobre penetração
vaginal pelo pênis ou outros objetos, sexo anal. São desconfortáveis,
mas têm que ser feitas.
O que acha da lei de ‘consentimento sexual afirmativo’
implantada recentemente na Califórnia, que exige que o ‘sim’ para
interação sexual seja comunicado inequivocamente?
Confesso que não compreendo essa lei e ainda não recebi uma
explicação satisfatória. E não vejo como ela pode lidar com esse
problema. Parece que estão buscando uma solução mágica. Estamos falando
de jovens de 18 a 24 anos, vivendo um período impulsivo e de
experimentação que corresponde a uma fase biológica. Esperamos que dois
jovens tomem decisões com resultados positivos. Mas se prender a
detalhes dessa maneira? Desconfio que a lei é resultado de uma visão
clássica do estupro, da mulher emboscada por um estranho que salta de um
arbusto.
Mas a maioria dos casos de violência sexual não ocorre entre conhecidos?
Com certeza, mesmo que seja entre duas pessoas que se encontraram
pela primeira vez num programa, o que contribui para a hesitação em
fazer a denúncia. Por isso, acho muito importante os ‘kits de estupro’ em que um exame de coleta forense ao menos pode ajudar a identificar o agressor. Descobrimos também que vítimas de violência sexual
têm mais risco de sofrer novo ataque do que quem nunca passou pela
experiência, o que deve estar ligado ao fato de se tratar de conhecidos.
O que a sra. acha da maneira como as escolas foram colocadas na posição de investigar e julgar casos de agressão sexual?
É um problema e não vejo como instituições devam se transformar em
juízes. É para isso que temos o Judiciário e tribunais. Estamos vendo
casos de estupro examinados em audiências disciplinares. Se houvesse um
assassinato no câmpus, passaria pela cabeça de alguém convocar
professores para examinar a evidência? Compreendo que estamos falando de
um ecossistema de pessoas educadas e que a escola
tenha um certo papel in loco parentis. Mas a audiência disciplinar acaba
por reduzir um crime a, por exemplo, um caso de plágio acadêmico.
Em 1984, nos EUA, um ato aprovado pelo Congresso elevou a
idade mínima para consumo de álcool para 21 anos. A competência para
legislar sobre isso é estadual, mas inúmeros Estados seguiram o exemplo.
Isso fez aumentar o consumo de álcool a portas fechadas nas escolas?
O álcool é um grande fator, tanto em termos de consumo voluntário
como quando é usado por agressores para se aproveitar da vítima. Eu
tenho mais de 50 anos e posso dizer que o álcool definiu nossos anos de
universidade. Saíamos de casa para viver nos dormitórios e encontrávamos
uma súbita liberdade. Quando a idade limite era 18 anos, as festas ao
menos eram supervisionadas pelas escolas. Eu pesquisei a história do
crime no câmpus universitário americano e outros tipos violência eram
comuns mesmo quando as escolas só eram frequentadas por homens.
O que acha da expressão ‘cultura do estupro’, às vezes criticada como um exagero?
Se não há punição, se instituições envolvidas não estão sendo
chamadas à responsabilidade, acho que temos ao menos uma cultura de
facilitação. Mas as coisas estão mudando. Tenho me comunicado com
acadêmicos na Europa, na Austrália e no Canadá. Começamos a acumular
conhecimento sobre aspectos comuns da questão da violência sexual
em outros países, mas nós, americanos, temos essa tradição maior de os
jovens saírem de casa para morar no câmpus. Acho que nenhum país
desenvolveu tanta pesquisa e metodologia como os Estados Unidos. Há
cinco anos, eu dou um curso de vitimologia tanto na graduação quanto na
pós-graduação.
Não passa um semestre sem uma aluna pedir um encontro reservado e começar a contar sua história de estupro ou outra forma de violência sexual.
Mesmo quem contesta as estatísticas, alegando que a metodologia de
coleta de dados é falha, precisa fazer uma pausa. Não importa se o
número real é 1 em 4 ou 1 em 5, serão vítimas na universidade. Se o
número de mulheres matriculadas continua a subir, chegou a 58%, estamos
falando de uma população expressiva.
Há alguma relação entre o fato de as mulheres estarem em
maioria na educação superior e em presença crescente no mercado de
trabalho com essas estatísticas tão altas de agressão sexual?
Boa pergunta. Não temos resposta para isso ainda. Mas é certamente algo que devamos examinar.
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FONTE: IHU online, 02/12/2014
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