Branca de Neve
é um conto sobre o advento dos tempos modernos. Diz respeito à história
da emergência e dos desdobramentos da subjetividade moderna. Se não é
assim para todos, ao menos é dessa forma que eu o leio.
O conto é dos irmãos Grimm publicado em
1812, a partir de versão oriunda da tradição oral germânica medieval. A
versão feita por Disney para o cinema tornou-se um clássico dos filmes
de animação. Lançada em 1937 perpetuou-se entre o público infantil e,
provavelmente, é a versão da referência popular de nossos dias. É
suficientemente conhecida para que se possa sempre falar dela sem
precisar expor seus traços fundamentais.
Tomo-a como a história das vicissitudes
da subjetividade moderna porque, nas personagens de Branca de Neve e da
Rainha, o que se estabelece é a transformação do espírito no sentido da
proto-individualidade para a individualidade subjetiva em suas agruras,
as nossa agruras.
Branca de Neve está longe de compor um
indivíduo moderno. Sua esfera íntima não é propriamente uma esfera na
qual se mostra um sujeito moderno, no sentido pedido por Sloterdijk. Ela
age como uma menina-mãe para com os anões e se relaciona com os
bichinhos da natureza, e nisso se dá a ressonância entre os polos de sua
esfera. É uma esfera que protege uma intimidade cujos traços evolutivos
deixam a desejar. Não há a gestação da mãe de Branca de Neve. Não há
nada que substitua o elemento placentário na companhia do bebê. Nem mãe e
nem pai. Não há infância. Branca de Neve não constrói sua esfera
íntima. Branca de Neve já aparece como mocinha e suas relações íntimas
não são bem o que podemos chamar de uma verdadeira intimidade. Quem pode
cultivar alguma intimidade morando diante de uma madrasta má e, depois,
com sete anões desajeitados que funcionam como estereótipos de ogros de
uma floresta europeia perdida? Por isso mesmo, ela é o personagem que
não aponta na direção da modernidade, é a parte reacionária da história,
que emperra o advento das relações modernas. Aliás, isso fica claro ao
final, quando segue a tradição do casamento e da vida nobre.
Por sua vez, a Rainha compõe a figura do
que mais se aproxima do sujeito moderno. Ela é solitária e sua
companhia, seu parceiro na esfera íntima, é o Espelho Mágico. Os
espelhos são um produto moderno. Eles deram a possibilidade da
facialização se acoplar a algum tipo de reflexão necessária para que um
sujeito possa ser um sujeito. Todavia, a completude desse sujeito deixa a
desejar ou, melhor dizendo, se realiza segundo uma pseudorreflexão,
típica da função do espelho, na conta de Sloterdijk.
O indivíduo moderno enquanto sujeito
deveria poder desinibir-se a partir de narrativas próprias, consultadas
por ele de modo a fazê-lo passar da teoria consultada, a justificação da
ação, para a própria ação.[1]
Ora, a Rainha tenta isso, mas só consegue o consultor exterior, ou
seja, o célebre Espelho Mágico. Um espelho não dá nenhuma resposta senão
o que nós mesmos balbuciamos, como cópia – e isso se estamos de frente.
O que falamos de costas para o espelho nem é perceptível. São falas
redundantes e picadas. Um espelho mágico faz, de fato, o trabalho do
consultor de empresas, governos e pessoas modernas: ele diz o que não
sabe ou diz o que diz para todos os concorrentes, levando-os ao
imbróglio do mercado, todos com a mesma opinião e, portanto, sem nenhuma
estratégia particular para vencer o outro. O jogo de mercado
encontraria seus mesmos resultados sem ele. Todavia, o Espelho Mágico,
ou seja, o espelho fetichizado, eleito como consultor como se fosse
realmente uma voz interior (a voz da consciência), que imita então a
reflexão mas, claro, não é ela plenamente, dá as opiniões mais toscas
possíveis. Um espelho no qual Branca de Neve jamais se olhou não poderia
dizer dela, somente da Rainha. Mas o espelho fala para Rainha
alertando-a da beleza superior, praticamente absoluta, de Branca de
Neve. Mera fofoca.
Caso a Rainha estivesse agindo na
condição de um sujeito pleno, como manda o figurino iluminista, ela, com
os seus poderes de feiticeira, simplesmente se arrumaria, fazendo-se a
si mesma bela, e se tornaria de novo a mais bela. No entanto, como a
reflexão aí é uma pseudorreflexão, porque o que se está obedecendo é um
espelho, ou seja, um consultor externo que sabe menos do que quem o
consulta, a Rainha fica suficientemente atordoada para seguir as piores
escolhas. Primeiro faz aquilo que não se deve fazer nunca: mandar matar.
O assassinato é algo que não se manda fazer, deve-se executá-lo com as
próprias mãos. Segundo, dando errada essa opção, então a nova tentativa
de solução do caso é pior ainda: ao invés de ficar mais bonita que
Branca de Neve, com suas poções, a seguidora do Espelho Mágico se
transforma num bruxa velha horrenda com uma maçã envenenada nas mãos. O
resultado é trágico, como para todo empresário que confia em seu
consultor! A bruxa é descoberta e morta pelos anões, que a jogam de uma
ribanceira. Branca de Neve, então, virgem e sem muito o que dizer de si
mesma, uma vez que só sabia dar ordens aos anões e escutar bichos,
casa-se com o tal príncipe que, como sempre nessas histórias, chega sem
dizer nada e vai embora com a moça dizendo menos ainda. Claro, ele é
menos indivíduo moderno que a própria Branca de Neve.
A individualidade da Rainha salta aos
olhos. Mas sua subjetividade não se completa ou, melhor, se completa
como a nossa se completa. Na sua completude falsa, ou na sua completude
possível dentro de sua estufa, o liberalismo, tudo que ela faz termina
tosco.
O indivíduo moderno propriamente dito é aquele que adquiriu a “habilidade de ser sozinho”.[2]
“Os atores separados no regime individualista tornam-se sujeitos
isolados sob o domínio do espelho, quer dizer, do refletir, da função de
autocompletar-se”. Sendo assim, “crescentemente organizam suas vidas
sob a aparência de que eles poderiam agora fazer o papel das duas partes
no jogo de relacionamento bipolar exclusivo da esfera, em o outro
real”. Uma tal aparência “torna-se mais forte através da história
europeia da mídia e das mentalidades, culminando no ponto onde os
indivíduos decidem de uma vez por todas que eles próprios são a
substancial primeira parte, e suas relações com outros a acidental
segunda parte”. Os burgueses enchem suas casas de espelhos. Nós todos
colocamos um espelho em cada cômodo. “Admitidamente, o jogo do
autocompletar-se do indivíduo diante do espelho (e outra mídia
ego-técnica, especialmente o livro, se lido ou escrito) perderia sua
atração se não fosse usável para a ficção sublime de independência –
esse sonho de autogoverno que tem influenciado o modelo da vida sábia
desde o início da filosofia clássica”.[3]
Sloterdijk teme como ninguém essa
“ontologia do Um”. Para ele, a tarefa da descrição filosófica é uma
tarefa, se ontológica, de criar uma “ontologia do Dois”. Uma “ontologia
do Um” é perigosa porque ela cria o que é o substancial e central e o
que é o não-substancial e periférico, sendo que essa divisão, em tempos
de vacas magras, nos leva a achar que perdemos pouco se ficarmos só com
central – nasce a era do descarte que, enfim, é sempre a nossa era.
Afinal, quando não estamos em época de vacas magras? Uma “ontologia do
Um” aparece, então, como uma espécie de desvio, como o que se faz no
espelho. Imagina-se independente porque o que se consulta é algo morto, o
espelho, vivificado não por um alter ego gerado por um cultivo de uma
esfera que sempre teve no mínimo dois (feto-placenta, bebê-gênio,
bebê-mãe etc.), mas pseudovivificado pela presença da imagem refletida
em um elemento morto, uma cópia que não pode dar opinião criativa e
racional, mas apenas disparates, ecos entrecortados, ou seja, tudo que
um elemento morto pode ouvir e repetir. Não se olha um espelho e se tem
ideias. Ninguém tem ideia boa diante do espelho. Aliás, não há ideia aí.
O que vem do espelho são imagens nossas mesmas, redundâncias, não boas
ideias. O que vem desse consultor é tolice. Ele nos engana. Faz-nos
acreditar que podemos nos manter sozinhos e onipotentes e ao mesmo tempo
dependentes de vozes nossas mesmas, mas sem criatividade, na
observância de dizeres do que vem da cabeça do espelho que, por
definição, é vazia ou, pior, cheia de bobagem. Afinal, como iria um
elemento morto pensar? O fetiche não pensa, ao contrário, atiça em nós a
aderência às mágicas tolas. Sabemos bem isso quando apelamos para
fetiches no sexo. A Rainha diante do espelho faz tonteiras como nós com
uma boneca inflável, com o sapato de uma amada ou sua calcinha ou coisa
mais ridícula ainda, se é que há algo mais ridículo. O consultor é
ridículo.
É interessante ver que o conto nos
deixa, nessa leitura, sem saída. Ou não nos tornamos sujeitos e, então,
temos um príncipe, que é um banana, e nos guiará para uma vida eterna
sem história – a vida “felizes para sempre”; ou então tentamos nos
tornar sujeitos e, do modo que fazemos, caímos na mão do consultor, o
espelho, cuja única função é nos levar a fazer tudo errado, por nossa
conta, de modo a cairmos numa ribanceira. Ora, cair numa ribanceira, uma
vez acossado por anões e vestido de bruxa, isso é um fim digno? É como
morrer em dia Halloween ao enfiar o pé em um bueiro e, então, preso ali,
ver o carro passar sobre nós, aos oito anos de idade.
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* Paulo Ghiraldelli, 57, filósofo
[1] O que segue é elaboração a partir da teoria do sujeito e da consultoria, como está em: Sloterdijk, P. Palácio de Cristal. Lisboa: Relógio D’água, 2008, pp. 65-74.
[2] Sloterdijk, P. Bubbles, Spheres I. Los Angeles: Semiotext(e), 2011, p. 203.
[3] Idem, ibidem.
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