terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Branca de Neve, um conto de Peter Sloterdijk

Paulo Ghiraldelli*

Branca de Neve é um conto sobre o advento dos tempos modernos. Diz respeito à história da emergência e dos desdobramentos da subjetividade moderna. Se não é assim para todos, ao menos é dessa forma que eu o leio.
O conto é dos irmãos Grimm publicado em 1812, a partir de versão oriunda da tradição oral germânica medieval. A versão feita por Disney para o cinema tornou-se um clássico dos filmes de animação. Lançada em 1937 perpetuou-se entre o público infantil e, provavelmente, é a versão da referência popular de nossos dias. É suficientemente conhecida para que se possa sempre falar dela sem precisar expor seus traços fundamentais.

Tomo-a como a história das vicissitudes da subjetividade moderna porque, nas personagens de Branca de Neve e da Rainha, o que se estabelece é a transformação do espírito no sentido da proto-individualidade para a individualidade subjetiva em suas agruras, as nossa agruras.

Branca de Neve está longe de compor um indivíduo moderno. Sua esfera íntima não é propriamente uma esfera na qual se mostra um sujeito moderno, no sentido pedido por Sloterdijk. Ela age como uma menina-mãe para com os anões e se relaciona com os bichinhos da natureza, e nisso se dá a ressonância entre os polos de sua esfera. É uma esfera que protege uma intimidade cujos traços evolutivos deixam a desejar. Não há a gestação da mãe de Branca de Neve. Não há nada que substitua o elemento placentário na companhia do bebê. Nem mãe e nem pai. Não há infância. Branca de Neve não constrói sua esfera íntima. Branca de Neve já aparece como mocinha e suas relações íntimas não são bem o que podemos chamar de uma verdadeira intimidade. Quem pode cultivar alguma intimidade morando diante de uma madrasta má e, depois, com sete anões desajeitados que funcionam como estereótipos de ogros de uma floresta europeia perdida? Por isso mesmo, ela é o personagem que não aponta na direção da modernidade, é a parte reacionária da história, que emperra o advento das relações modernas. Aliás, isso fica claro ao final, quando segue a tradição do casamento e da vida nobre.

Por sua vez, a Rainha compõe a figura do que mais se aproxima do sujeito moderno. Ela é solitária e sua companhia, seu parceiro na esfera íntima, é o Espelho Mágico. Os espelhos são um produto moderno. Eles deram a possibilidade da facialização se acoplar a algum tipo de reflexão necessária para que um sujeito possa ser um sujeito. Todavia, a completude desse sujeito deixa a desejar ou, melhor dizendo, se realiza segundo uma pseudorreflexão, típica da função do espelho, na conta de Sloterdijk.

O indivíduo moderno enquanto sujeito deveria poder desinibir-se a partir de narrativas próprias, consultadas por ele de modo a fazê-lo passar da teoria consultada, a justificação da ação, para a própria ação.[1] Ora, a Rainha tenta isso, mas só consegue o consultor exterior, ou seja, o célebre Espelho Mágico. Um espelho não dá nenhuma resposta senão o que nós mesmos balbuciamos, como cópia – e isso se estamos de frente. O que falamos de costas para o espelho nem é perceptível. São falas redundantes e picadas. Um espelho mágico faz, de fato, o trabalho do consultor de empresas, governos e pessoas modernas: ele diz o que não sabe ou diz o que diz para todos os concorrentes, levando-os ao imbróglio do mercado, todos com a mesma opinião e, portanto, sem nenhuma estratégia particular para vencer o outro. O jogo de mercado encontraria seus mesmos resultados sem ele. Todavia, o Espelho Mágico, ou seja, o espelho fetichizado, eleito como consultor como se fosse realmente uma voz interior (a voz da consciência), que imita então a reflexão mas, claro, não é ela plenamente, dá as opiniões mais toscas possíveis. Um espelho no qual Branca de Neve jamais se olhou não poderia dizer dela, somente da Rainha. Mas o espelho fala para Rainha alertando-a da beleza superior, praticamente absoluta, de Branca de Neve. Mera fofoca.

Caso a Rainha estivesse agindo na condição de um sujeito pleno, como manda o figurino iluminista, ela, com os seus poderes de feiticeira, simplesmente se arrumaria, fazendo-se a si mesma bela, e se tornaria de novo a mais bela. No entanto, como a reflexão aí é uma pseudorreflexão, porque o que se está obedecendo é um espelho, ou seja, um consultor externo que sabe menos do que quem o consulta, a Rainha fica suficientemente atordoada para seguir as piores escolhas. Primeiro faz aquilo que não se deve fazer nunca: mandar matar. O assassinato é algo que não se manda fazer, deve-se executá-lo com as próprias mãos. Segundo, dando errada essa opção, então a nova tentativa de solução do caso é pior ainda: ao invés de ficar mais bonita que Branca de Neve, com suas poções, a seguidora do Espelho Mágico se transforma num bruxa velha horrenda com uma maçã envenenada nas mãos. O resultado é trágico, como para todo empresário que confia em seu consultor! A bruxa é descoberta e morta pelos anões, que a jogam de uma ribanceira. Branca de Neve, então, virgem e sem muito o que dizer de si mesma, uma vez que só sabia dar ordens aos anões e escutar bichos, casa-se com o tal príncipe que, como sempre nessas histórias, chega sem dizer nada e vai embora com a moça dizendo menos ainda. Claro, ele é menos indivíduo moderno que a própria Branca de Neve.

A individualidade da Rainha salta aos olhos. Mas sua subjetividade não se completa ou, melhor, se completa como a nossa se completa. Na sua completude falsa, ou na sua completude possível dentro de sua estufa, o liberalismo, tudo que ela faz termina tosco.

O indivíduo moderno propriamente dito é aquele que adquiriu a “habilidade de ser sozinho”.[2] “Os atores separados no regime individualista tornam-se sujeitos isolados sob o domínio do espelho, quer dizer, do refletir, da função de autocompletar-se”. Sendo assim, “crescentemente organizam suas vidas sob a aparência de que eles poderiam agora fazer o papel das duas partes no jogo de relacionamento bipolar exclusivo da esfera, em o outro real”. Uma tal aparência “torna-se mais forte através da história europeia da mídia e das mentalidades, culminando no ponto onde os indivíduos decidem de uma vez por todas que eles próprios são a substancial primeira parte, e suas relações com outros a acidental segunda parte”. Os burgueses enchem suas casas de espelhos. Nós todos colocamos um espelho em cada cômodo. “Admitidamente, o jogo do autocompletar-se do indivíduo diante do espelho (e outra mídia ego-técnica, especialmente o livro, se lido ou escrito) perderia sua atração se não fosse usável para a ficção sublime de independência – esse sonho de autogoverno que tem influenciado o modelo da vida sábia desde o início da filosofia clássica”.[3]

Sloterdijk teme como ninguém essa “ontologia do Um”. Para ele, a tarefa da descrição filosófica é uma tarefa, se ontológica, de criar uma “ontologia do Dois”. Uma “ontologia do Um” é perigosa porque ela cria o que é o substancial e central e o que é o não-substancial e periférico, sendo que essa divisão, em tempos de vacas magras, nos leva a achar que perdemos pouco se ficarmos só com central – nasce a era do descarte que, enfim, é sempre a nossa era. Afinal, quando não estamos em época de vacas magras? Uma “ontologia do Um” aparece, então, como uma espécie de desvio, como o que se faz no espelho. Imagina-se independente porque o que se consulta é algo morto, o espelho, vivificado não por um alter ego gerado por um cultivo de uma esfera que sempre teve no mínimo dois (feto-placenta, bebê-gênio, bebê-mãe etc.), mas pseudovivificado pela presença da imagem refletida em um elemento morto, uma cópia que não pode dar opinião criativa e racional, mas apenas disparates, ecos entrecortados, ou seja, tudo que um elemento morto pode ouvir e repetir. Não se olha um espelho e se tem ideias. Ninguém tem ideia boa diante do espelho. Aliás, não há ideia aí. O que vem do espelho são imagens nossas mesmas, redundâncias, não boas ideias. O que vem desse consultor é tolice. Ele nos engana. Faz-nos acreditar que podemos nos manter sozinhos e onipotentes e ao mesmo tempo dependentes de vozes nossas mesmas, mas sem criatividade, na observância de dizeres do que vem da cabeça do espelho que, por definição, é vazia ou, pior, cheia de bobagem. Afinal, como iria um elemento morto pensar? O fetiche não pensa, ao contrário, atiça em nós a aderência às mágicas tolas. Sabemos bem isso quando apelamos para fetiches no sexo. A Rainha diante do espelho faz tonteiras como nós com uma boneca inflável, com o sapato de uma amada ou sua calcinha ou coisa mais ridícula ainda, se é que há algo mais ridículo. O consultor é ridículo.

É interessante ver que o conto nos deixa, nessa leitura, sem saída. Ou não nos tornamos sujeitos e, então, temos um príncipe, que é um banana, e nos guiará para uma vida eterna sem história – a vida “felizes para sempre”; ou então tentamos nos tornar sujeitos e, do modo que fazemos, caímos na mão do consultor, o espelho, cuja única função é nos levar a fazer tudo errado, por nossa conta, de modo a cairmos numa ribanceira. Ora, cair numa ribanceira, uma vez acossado por anões e vestido de bruxa, isso é um fim digno? É como morrer em dia Halloween ao enfiar o pé em um bueiro e, então, preso ali, ver o carro passar sobre nós, aos oito anos de idade.
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* Paulo Ghiraldelli, 57, filósofo

[1] O que segue é elaboração a partir da teoria do sujeito e da consultoria, como está em: Sloterdijk, P. Palácio de Cristal. Lisboa: Relógio D’água, 2008, pp. 65-74.

[2] Sloterdijk, P. Bubbles, Spheres I. Los Angeles: Semiotext(e), 2011, p. 203.

[3] Idem, ibidem.

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