Carla Rodrigues*
Em
‘O clamor de Antígona — Parentesco entre a vida e a morte’, filósofa americana
toma personagem como alegoria para a crise do parentesco
RIO
— Achegada, ao mercado brasileiro, de “O clamor de Antígona — Parentesco entre
a vida e a morte”, de Judith Butler, é uma ótima notícia e, ao mesmo tempo, a
constatação de um descompasso. Filósofa consagrada nos estudos de gênero,
Butler tinha até então apenas um livro traduzido — “Problemas de gênero —
Feminismo e subversão da identidade”, lançado em 2003 pela Civilização
Brasileira e esgotado há alguns anos. O descompasso começa a ser reduzido com o
lançamento de “O clamor de Antígona”, cuja originalidade da abordagem da
tragédia de Sófocles, lida e relida na Filosofia, no Direito e, depois de
Lacan, na psicanálise, interessa a estudiosos de diferentes áreas.
Tomada
por Butler como alegoria para a crise contemporânea do parentesco, o amor
incestuoso da personagem por seu irmão é o ponto de partida para o
questionamento do que se pretende chamar de “normalidade familiar”.
Desde
a leitura de Hegel, Antígona representava o parentesco em sua forma ideal, a
mulher representante da figura familiar e defensora de uma lei singular, que se
opõe a Creonte, aceito como representante do Estado e, consequentemente, da
única possibilidade de lei universal. Contra esta perspectiva, Butler se
insurge afirmando que Antígona, na verdade, representa a deformação e o
deslocamento do parentesco, “colocando em crise os regimes reinantes de representação
e levantando a questão de quais poderiam ter sido as condições de
inteligibilidade que teriam tornado sua vida possível”.
Trata-se,
então, de pensar como operam as versões normativas de família e como reconhecer
a existência de diferentes arranjos de parentesco, negando a sobreposição de
família e parentesco, revendo os discursos que tratam como disfuncionais as
famílias sem pai, repensando normas que proíbem a adoção de crianças por casais
do mesmo sexo e, sobretudo, reconhecendo que não há base, nem natural, nem
cultural, para a estrutura normativa heterossexual e monogâmica das famílias.
A
leitura hegeliana para a peça de Sófocles é uma das questões do livro de
Butler, filósofa cuja trajetória está, desde seu início, marcada pelo
pensamento de Hegel. “O clamor de Antígona” tem ainda dois outros
interlocutores: o antropólogo Lévi-Strauss e o psicanalista Jacques Lacan. Do
primeiro, ela questiona a centralidade do tabu do incesto nas estruturas
elementares de parentesco, seguindo a trilha aberta pela antropóloga feminista
Gayle Rubin. Do segundo, ela interroga a representação de Antígona como aquela
que se opõe ao campo do simbólico, ao pensar que um dos objetivos da personagem
trágica poderia ser indicar “justamente os limites do parentesco”.
Ao
apontar o que chama de “cegueira” em relação ao amor de Antígona pelo seu
irmão, Butler quer repensar a rede de relações familiares que permitiu
delimitar uma fronteira entre o que está dentro e o que está fora da norma e
apontar uma possibilidade de pensar num “parentesco futuro que exceda a
totalidade estruturalista, um pós-estruturalismo do parentesco”. Com a crítica
à abordagem estruturalista, Butler não pretende pôr fim ao parentesco, mas
entendê-lo como “um conjunto de acordos socialmente alteráveis, destituído de
características estruturais”, de tal forma que o parentesco possa vir a
significar “qualquer número de acordos sociais que organizam a reprodução da
vida material”.
A
originalidade da leitura de Butler está nas formulações políticas
contemporâneas que ela faz a partir de Antígona, a fim de pensar em estruturas
de famílias em que, quando uma criança diz “mãe”, não espera ser atendida por
uma única pessoa, ou quando diz “pai” pode se referir tanto a um homem ausente
que nunca conheceu quanto ao que assumiu tal lugar. Por fim, a exigência de
repensar as estruturas familiares baseadas em modelos heterossexuais e
normativos não são, como se pode pensar à primeira vista, apenas do campo de
interesse dos militantes da causa homossexual. Afetam o conjunto da sociedade,
dizem respeito a mulheres solteiras que criam seus filhos sozinhas, por
exemplo, ou mesmo a famílias recompostas em que o parentesco não consegue mais
se organizar nos limites do que foi estabelecido como inteligível. Como
exemplo, ela cita comunidades negras norte-americanas nas quais mães, avós,
tias e irmãs são responsáveis pelas crianças de famílias descritas como
disfuncionais por ausência do pai. Exemplo bastante próximo da realidade
brasileira, em que famílias pobres chefiadas por mulheres são identificadas
como origem da criminalidade, indicação de que a defesa de certas estruturas
familiares não estão destituídas de ideologia.
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*Carla
Rodrigues é professora de Filosofia IFCS/UFRJ, autora, entre outros, de “Duas
palavras sobre o feminismo”
Fonte: Jornal o Globo online, 07/12/2014
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