Herdeiros, seguidores e devotos do legado jobiniano estão segregados aos nichos, ante plateias específicas e vendagens de discos anoréxicas. "O sucesso no Brasil é ofensa pessoal", alfinetava ele, na época em que sua parceria com Vinicius de Moraes, "Garota de Ipanema", disputava as paradas internacionais com "Yesterday", dos Beatles ("mas eles são quatro", fustigava com sarcasmo), e os entrevistadores só queriam saber se já estava rico.
Sua caligrafia, pautada pela sutileza e pelo refinamento, confronta-se hoje com a massificação rombuda. À parte exceções superlativas, como os sucessivos projetos do violonista, arranjador e epígono Mario Adnet ("Para Gershwin e Jobim", 2 vols., "Jobim Sinfônico", "Jobim Jazz", 2 vols.), vez por outra, o "mainstream" ainda recorre à sua grife elegante. Em 2008, CD/DVD e shows reuniram "Roberto Carlos, Caetano Veloso e a música de Tom Jobim". A estrela Vanessa da Mata engatou álbum (com arranjos de mais um discípulo, Eumir Deodato) e turnê com suas músicas, patrocinada pela empresa Nívea, em 2013. A dupla movida a terças Chitãozinho & Xororó lança em janeiro "Tom do Sertão", um álbum com "canções de natureza e amor", pescadas entre suas composições. "Esse é o disco mais sertanejo da nossa carreira", apregoam.
Mesmo que hoje paire entre uma inalcançável aura erudita e as orquestrações pasteurizadas dos hits, desidratados como musak de elevador, a obra do carioca Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim (1927-1994) permanece como um dos principais arquétipos da identidade musical do país, aqui e no exterior. Filho de uma educadora e um poeta, suas raízes foram solidamente plantadas entre o nacionalismo ecumênico de Villa-Lobos, o reformismo do vanguardista alemão Hans Joachim Koellreuter, seu primeiro professor, mais a práxis do piano tocado no "cubo de trevas" das boates e arranjos para ídolos populares como Dalva de Oliveira.
Também em 1954, o pré bossa-novista Dick Farney lançou "Outra Vez", primeira dissidência harmônica dos sambas-canções vigentes, e ainda dividiu com o rival de modernidades, Lucio Alves, o audaz triangulo amoroso de "Tereza da Praia" ("o verão passou todo comigo/ o inverno pergunta com quem"), parceria de Tom e Billy Blanco. A mesma dupla autoral e o mesmo par de cantores embarcariam na ainda mais ousada "Sinfonia do Rio de Janeiro", ode à cidade, orquestrada com opulência por outro mestre informal do compositor, o maestro gaúcho Radamés Gnattali, mais adicionais participações de Nora Ney, Emilinha Borba, Os Cariocas, Doris Monteiro, Jorge Goulart e Elizeth Cardoso. Em 1955, "Se É por Falta de Adeus" inicia a breve aliança de Tom e Dolores Duran (que resultaria nas cintilantes "Por Causa de Você" e "Estrada do Sol").
Com outro comparsa, de quem carregaria o amplificador do violão, Luiz Bonfá, gravou um histórico LP, no mesmo ano, ao lado de João Donato, ainda no acordeão, e assinou "A Chuva Caiu" (Ângela Maria), "Engano" (Doris Monteiro), "Samba não É Brinquedo" (Dora Lopes), além da posterior "Correnteza" e a instrumental "O Barbinha Branca", reprocessada por João Gilberto no matreiro "Um Abraço no Bonfá". Em 1956, Sylvia Telles sussurraria "Foi a Noite" (com Newton Mendonça), para alguns o marco zero da bossa nova, já que o produtor, Aloysio de Oliveira (futuro parceiro em totens como "Dindi", "Inútil Paisagem", "Só Tinha de Ser com Você", "Demais", "Eu Preciso de Você"), hesitou em carimbá-la como mais um samba-canção.
A nascente bossa nova teria sua prova de fogo
em show
na boate Au Bon Gourmet, em 1962, que
reuniu Jobim,
Vinicius,
João Gilberto
e Os Cariocas
Ou seja, muita coisa aconteceu na carreira de Tom Jobim antes do célebre encontro com Vinicius de Moraes, no bar Villarino, onde surgiria o convite para musicar a peça "Orfeu da Conceição", montada no Teatro Municipal com cenários do arquiteto Oscar Niemeyer, também em 1956. Além de um instantâneo clássico de vocação sinfônica ("Se Todos Fossem Iguais a Você"), a parceria com o poeta consagrado no meio literário (desdobrada em "A Felicidade", na trilha da peça filmada, "Orfeu Negro", por Marcel Camus, em 1959) transportou Jobim para o patamar seletivo do selo Festa, do produtor Irineu Garcia. Na etiqueta, além de musicar "O Pequeno Príncipe", de Saint-Exupéry, declamado pelo ator Paulo Autran, Jobim partilharia com Vinicius dois discos fundadores, em que se definiram os rumos da nascente bossa nova.
Estrelado pela heráldica Elizeth Cardoso, o primeiro songbook da dupla, "Canção do Amor Demais", de 1958, comboiava o requintado cardápio ("Eu não Existo sem Você", "Estrada Branca", "Janelas Abertas") na direção da música popular, já dimensionada nas síncopas de duas faixas cerzidas pelo violão de João Gilberto. A precursora "Outra Vez" e a programática "Chega de Saudade", "longa melodia baseada em pequenos motivos constantemente transpostos", como define o ensaísta Lorenzo Mammì, evocando a ligação inicial de Tom com Villa-Lobos, no livro "Três Canções de Tom Jobim" (Cosac Naify, 2004). Em entrevista para o livro que escrevi com Tessy Callado e Márcia Cezimbra, "Tons Sobre Tom" (Editora Revan, 1995), o próprio autor disseca a composição: "Lembra as introduções dos conjuntos de violão e cavaquinho, tipo regional de choro. Na segunda parte, passa para maior, com aquelas modulações clássicas. 'Chega de Saudade' tem a saudade jogando fora a saudade", cravou.
A música projetaria João Gilberto a partir de um "single" de 78 rotações, que inseminou futuros luminares Brasil adentro (Chico Buarque, Edu Lobo, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Jorge Ben) e seria faixa-título do LP do novo cantor e seu violão, orquestrado e avalizado pelo próprio Jobim, em 1959. No mesmo ano, no entanto, saía no supracitado selo Festa o álbum "Por Toda a Minha Vida", a outra via que poderia ter tomado a parceria Tom-Vinicius. A do canto lírico de Lenita Bruno, com orquestrações de seu marido, o maestro erudito Leo Peracchi, mais um mestre de Jobim. O repertório repete algumas faixas de "Canção do Amor Demais" (inclusive esta), mas há exceções importantes ("Sem Você", "Por Toda a Minha Vida", "Soneto da Separação", "Eu Sei Que Vou Te Amar", "Canta, Canta Mais"), além da distinção principal, de sua linhagem camerística.
"A música dele era inspirada nos impressionistas, Debussy e Ravel, mas há também alguns traços dos russos como Rimsky-Korsakov, Rachmaninoff, Aran Katchaturian", decupou Carlos Lyra(*). Em 1960, nova incursão erudita, em parceria com Vinicius: "Brasília, Sinfonia da Alvorada", inspirada na cidade arquitetônica projetada por Niemeyer. O então presidente, Juscelino Kubitschek, condutor da travessia, definia em seu livro "A Marcha do Amanhecer" (Editora Bestseller, 1962) um novo estágio nacional: "Se uma tradição secular definia o Brasil como produtor de matérias-primas era dever de seus cidadãos modificar essa situação de inferioridade".
A revolução estética seria consumada pela emissão confidente e o violão batido no tempo fraco de João Gilberto, para manifestos metalinguísticos como "Desafinado" (cuja letra enfatiza a subversão harmônica) e "Samba de Uma Nota Só" (um "ostinato" desdobrado em síncopas). Ambas parcerias de Jobim com Newton Mendonça, pianista que costumava revezar-se nos inferninhos com o amigo de infância. Ele não era apenas o letrista da dupla. Dividiria com Tom autorias integrais dessas e outras delicadas joias da coroa da bossa, como "Meditação" (do refrão, "o amor, o sorriso e a flor", emblema da ala "arte pela arte" do movimento), "Só Saudade", "Discussão", "Caminhos Cruzados" e "Domingo Azul do Mar". Saiu da festa no início, fulminado por um enfarte, aos 33 anos, em 1960.
Ostentando digitais de Jobim (e novas parcerias com Vinicius, "O Amor em Paz", "Insensatez", "Brigas Nunca Mais" e as próprias "Só em Teus Braços" e "Este Seu Olhar", de harmonia convergente), os três álbuns iniciais de João Gilberto, lançados entre 1959 e 1961, fincaram as diretrizes da bossa. Testado em apinhados shows universitários, o gênero nascente teria sua prova de fogo no show da boate Au Bon Gourmet, em Copacabana, em agosto de 1962, onde se reuniram Jobim, Vinicius (o diplomata debutava como cantor), João Gilberto e o grupo vocal Os Cariocas.
Sumidade de bastidores, como autor, pianista e arranjador (a ele também se devem alicerces do samba-jazz, do mítico "Você Ainda não Ouviu Nada", de Sérgio Mendes, de 1965), Tom Jobim, a contrapelo de sua timidez, era catapultado ao centro do palco por causa do milhão de cópias vendidas da gravação instrumental de "Desafinado" pelos jazzistas americanos Stan Getz e Charlie Byrd. Já contava 36 anos, em 1963, quando estreou solo, nos EUA, a bordo do manifesto "The Composer of Desafinado Plays", sob diáfana orquestração de Claus Ogerman, suporte para seu "one finger piano", saudado com cotação máxima pela revista de jazz "Down Beat".
"Ele usava arpejos, dava toques que abreviavam as coisas, aquelas duas notas que valiam por mil. A gente ouvia as notas que ele tocava e as que não queria tocar", solfejou Hermeto Pascoal(*). A têmpera pop da bossa, no entanto, ainda estaria por virar nervo exposto, depois do lançamento, no ano seguinte, de "Getz/Gilberto", com o saxofonista americano Stan Getz, o casal João e Astrud Gilberto e Jobim ao piano, recorde de vendas da versão "The Girl from Ipanema". Jobim passa a alternar temporadas no exterior e no Rio, onde registra o histórico "Caymmi Visita Tom e Leva Seus Filhos, Nana, Dori e Danilo". Mantém o hábito de frequentar o boteco Veloso, em Ipanema, onde recebe o lendário telefonema de Frank Sinatra convidando-o para gravar.
A propósito de outra pepita da dupla, "Pois É", o ensaísta Lorenzo Mammì discorre: "Chico introduz no cancioneiro de Jobim o gosto pela frase cortante, pela palavra dita entre os dentes. A adjetivação de Vinicius é generosa, barroca; Chico quase não usa adjetivo"(**). E os dois deságuam na canção de exílio "Sabiá", antes "Gávea", peça de câmara escrita para a cantora lírica Maria Lúcia Godoy. Com ela, venceriam o Festival Internacional da Canção do turbulento 1968, sob vaias de uma legião aliciada pelo militante "Pra não Dizer Que não Falei das Flores", de Geraldo Vandré. Ironicamente, adiante, Jobim seria um dos compositores detidos pelo Dops (ao lado de Chico, Edu Lobo, Marcos Valle, Sérgio Ricardo) após recusar-se e participar do FIC de 1970, em protesto contra a censura. O incidente alterna-se com uma nova temporada nos estúdios americanos, onde ele grava um segundo disco com Sinatra e álbuns solos memoráveis como "Tide" e "Stone Flower" (no qual adere brevemente ao piano elétrico).
Cultor de Stravinsky, Chopin e Pixinguinha, Jobim, um colecionador de dicionários, sempre foi imantado também pela literatura - de Carlos Drummond de Andrade a Olavo Bilac e Guimarães Rosa. Aos poucos, assoma em sua obra o autor solitário de música e letra. Esgotada a prosódia da bossa, o compositor reinventa-se a partir do devastador "Águas de Março", lançado no compacto "Disco de Bolso", do jornal "Pasquim", em 1972, e imortalizado em outro songbook, o álbum "Elis & Tom", dois anos depois, ao lado da cantora Elis Regina. O músico e ensaísta Arthur Nestrovski (também no livro "Três Canções de Tom Jobim") disseca a meticulosa carpintaria da composição: "São pequenas espirais, ou redemoinhos, torcendo a canção dentro de si. Ela repete, mas não se repete, é cíclica, mas não fecha o círculo, como a água que escorre pelo sorvedouro".
Grava discos com Miúcha (com quem, ao lado de Vinicius e Toquinho, fez um show recordista de público no extinto Canecão), Edu Lobo e especiais de TV, ao lado de Milton Nascimento e João Gilberto (na comemoração dos 30 anos do show da bossa no Carnegie Hall). Vira enredo ("Se Todos Fossem Iguais a Você") da escola de samba Mangueira, em 1992, a que retribui no arrepiante "Piano na Mangueira", outra parceria com Chico. Excursiona pelo planeta com sua Banda Nova, da qual participavam os filhos do primeiro casamento, o violonista Paulo (pai do pianista Daniel) e a artista plástica Elizabeth e a segunda mulher, Ana, com quem teria mais dois filhos. Como na arte, Jobim reinventava-se na vida e findaria seu percurso fulgurante no disco em que conjuga DNA e sobrenome, "Antonio Brasileiro". Numa das faixas, entoava o "Samba de Maria Luiza", ao lado da filha caçula, então com 7 anos, cujo pendor musical a levou - voltas que o mundo dá - para a eletrônica, no duo Opala, com Lucas de Paiva.
O álbum de Jobim saiu no ano de sua morte abrupta, em 8 de dezembro de 1994, aos 67 de idade, em Nova York, onde sua trajetória decolou. O legado monumental deixado por ele articula a árdua simplicidade do gênio, lapidada pelo perfeccionismo. "A minha música é essencialmente harmônica. Fazendo uma autoanálise, tentei harmonizar o mundo, o que evidentemente é uma utopia"(*), ironizou o autor da proeza, no mínimo, na arte.
(*) Entrevistas ao livro "Tons Sobre Tom" (**) Do livro "Três Canções de Jobim"
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Reportagem Por Tárik de Souza | Para o Valor, do Rio
Fonte: Valor Econômico online, 05/12/2014
"A fonte de criação dele era a mata"
Poucos conheceram tão bem Tom
Jobim quanto sua irmã, Helena. Escritora com livros traduzidos em
diversos países, fez uma das mais elogiadas biografias sobre o
compositor, "Antônio Carlos Jobim - Um Homem Iluminado" (Nova Fronteira,
1996). Aos 83 anos, radicada em Belo Horizonte desde 2000, Helena Jobim
será tema de uma cinebiografia dirigida por Ernane Alves. O ponto alto
do filme será a infância dela e do irmão, nos anos 30 e 40, na então
bucólica Ipanema. Helena conversou com o Valor:
Valor: Como a senhora acha que Tom Jobim veria o Brasil de hoje? Continuaria achando que o país "não é para principiantes"? Ele era um cético ou tinha esperanças de que tudo melhorasse?
Helena Jobim: Tinha esperanças. Não era derrotista, desistente do Brasil, ele amava o país. Tom falava: "O que o Brasil tem de riquezas, os bichos, tem tudo pra ser um grande país, muita água, esse rio Amazonas, ele só precisa se ajeitar". O Tom queria que o Brasil fosse de homens fortes e, sobretudo, honestos.
Valor: Jobim, sempre divertido, tinha uma frase sobre a morte: "É mais confortável morrer em português. Como é que você vai dizer para o médico gringo, em inglês: 'Tô com uma dor no peito que responde na cacunda?'" Em algum momento, durante seus últimos dias em Nova York, ele pressentiu que poderia morrer longe do país?
Helena: Ele sabia que ia morrer. Eu sonhei na época com ele numa cama cercada de anjos. O Tom dizia que queria morrer aqui, mas não aconteceu, ele foi só enterrado no Brasil. E a gente pensa que ele fez o que tinha que ser feito, tem que pensar assim.
Valor: Hoje a obra de Tom Jobim é popular como ele desejava? Ele se dizia um "eruditinho", uma mistura de músico popular com erudito.
Helena: O Tom desejava. Ele falava: "Pode ser popular isso!" Ele era uma pessoa muito obsessiva, como eu. Tudo o que fazia tinha que ser com perfeição.
Valor: Nas três últimas semanas de Tom Jobim no Brasil, vocês ficaram muito próximos - a senhora, aliás, a pedido de Tom, passou esse tempo na casa dele. Como era a rotina de ambos?
Helena: Fui morar na casa do Tom para ficar com os filhos dele, que eram pequenos. O filho mais novo, João Francisco, no dia que o Tom morreu dizia: "O que vai ser mim, o que vai ser de mim?" Fiquei como mãe deles, ajudava na escola, na roupa. O Tom, dentro de casa, não ficava parado pensando. Ficava fazendo escalas no piano o tempo todo, não parava de trabalhar.
Valor: Em seu livro, a senhora diz que o Tom era muito místico, que chegava a ouvir vozes na infância e "até receber músicas prontas". Pode citar algumas que resultaram dessa suposta espiritualidade?
Helena: As músicas todas tinham algo da espiritualidade, porque ele entrava muito na Floresta da Tijuca. A fonte de criação dele era a mata. Ele sentia muita paz dentro da floresta, não queria saber de mais nada, ele se isolava completamente do mundo. Aí vinham sons pra ele, que ele gravava. O Tom possuía um ouvido absoluto, tinha uma sensibilidade exagerada. Eu conto muito dessas passagens de nossa infância no filme "Helena", do querido Ernane Alves.
"Fiz parte, durante muitos anos, da turma do Tom Jobim, que se reunia
quase que diariamente no Antonio's e, mais tarde, no Plataforma, ambos
no Leblon. Aquela mesa, usando uma frase do Tom sobre o Brasil, não "era
para principiantes". Só tinha gente da pesada: Chico Buarque, José
Lewgoy, Antônio Pedro, Miguel Farias, Paulo Mendes Campos, Tarso de
Castro e por aí vai. Tinham também os chatos, alguns deles amigos dos
amigos do Tom, que faziam de tudo para se sentar à mesa, mas a gente
dava um jeito, a pedido do anfitrião, de mantê-los longe. Quando o
assédio dos chatos se tornou inevitável, e a gente começou a achar uma
chatice essa história de ter que se livrar dos chatos, o Alberico
Campana, dono do Plataforma, deu um jeitinho: deslocou a mesa para um
ponto estratégico do restaurante, que permitia ao Tom avistar, sem ser
notado, quem estava vindo em direção à mesa. Se fosse um amigo, ele não
dizia nada. Se fosse um chato, ele mandava um sinal para o Alberico, que
prontamente encaminhava o cara para o lado oposto.
Não me lembro exatamente em que momento passei a fazer parte da turma de amigos íntimos do Tom. Escrevi muito sobre ele, enaltecendo sua genialidade, na "Última Hora" e depois em "O Pasquim", mas não acho que isso tenha qualquer relação com a nossa aproximação, que deve ter se dado - era assim com a maioria dos amigos - por outros motivos. O Tom não gostava de ser bajulado, o que explica o pavor que ele tinha dos chatos, que vinham de todos os cantos do Brasil para tentar virar "amigo de copo de Tom Jobim". Na mesa do Plataforma conversava-se sobre tudo, menos assuntos sérios, "eruditos". O Tom adorava contar piadas, eram dele os comentários mais espirituosos sobre tudo o que se possa imaginar - ou sobre ele mesmo. Era uma conversa de botequim. Não existia, nesse sentido, sujeito mais carioca que o Tom. E todos que estavam ali tinham mais ou menos esse espírito, sendo cariocas ou não.
O Tom não gostava de ser bajulado, mas também se irritava com uma minoria de críticos de música que o perseguiu durante toda a carreira. Era uma turma pequena, mas barulhenta. O mais conhecido deles era o [José Ramos] Tinhorão, que dizia aquelas bobagens, que a bossa nova era uma cópia do jazz americano, que "Águas de Março" era plágio de uma música folclórica, nascida de um ponto de macumba, que "Samba de Uma Nota Só" (com Newton Mendonça) seria derivada de "Mr. Monotony", de Irving Berlin, gravada por Judy Garland. O Tom não era de responder publicamente às acusações. Mas os seus amigos, sim. Eu mesmo não deixava barato.
Escrevi um violento artigo contra o Tinhorão em "O Pasquim", não me lembro exatamente em que ano [no número 361, publicado de 28/5 a 3/6 de 1976], o acusando, por causa das críticas ao Tom e aos compositores de MPB da época, de ser um agente remunerado da CIA [o título de artigo era "Tinhorão agente da CIA?"). O Tom não entrou na polêmica, raramente entrava. Mas isso não quer dizer que ele não se vingasse à sua maneira de seus críticos, principalmente de Tinhorão. Os amigos mais chegados sabiam que ele cultivava uma planta, justamente com o nome de tinhorão (apreciada devido à sua folhagem ornamental) no seu jardim e costumava regá-la diariamente, no fim de noite, fazendo ali o último xixi antes de dormir.
Não acho, como ouço por aí, que Tom Jobim não teve sua obra reconhecida em vida. Se não teve, não foi uma exceção. Ary Barroso e Noel Rosa também morreram sem receber as homenagens que mereciam. Mesmo nos Estados Unidos, que gostamos de citar como exemplo de país que cultiva a memória de seus gênios, cerca de 80%, segundo uma pesquisa de uma universidade americana, não sabem quem foi Duke Ellington e Louis Armstrong. Nunca ouvi ele se queixar de falta de reconhecimento. Não era um sujeito queixoso. Ele dizia aquelas frases sobre o Brasil, quase sempre espirituosas, sarcásticas, com muito humor, mas ele adorava viver aqui. O Rio, com todos os seus problemas, nunca deixou de ser a cidade que ele amava. Ele topava o Rio.
Eu adorava estar perto dele. Virei amigo. Mas era também jornalista. Ainda na época do Antonio's, achando que deixava escapar tanta coisa boa durante os papos, decidi levar sempre um gravadorzinho. Chegava primeiro, escondia debaixo do pano da mesa e colocava pra gravar. Boa parte do que registrei serviu de base para a biografia que escrevi sobre o Tom, anos mais tarde. No fundo, acho que ele sabia que eu estava gravando e, como era fã dele, que usaria tudo aquilo de forma positiva. Só uma vez eu exagerei e publiquei, não me lembro onde, que ele estava com problema de saúde, algo bem pessoal, bem íntimo. Ele ficou possesso. Pensei bem e vi que tinha mesmo vacilado. Ele era o Tom Jobim. A gente não deve sair contando certas coisas sobre os gênios."
Depoimento de Sérgio Cabral concedido ao jornalista Tom Cardoso
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Fonte: Valor Econômico online, 05/12/2014
Valor: Como a senhora acha que Tom Jobim veria o Brasil de hoje? Continuaria achando que o país "não é para principiantes"? Ele era um cético ou tinha esperanças de que tudo melhorasse?
Helena Jobim: Tinha esperanças. Não era derrotista, desistente do Brasil, ele amava o país. Tom falava: "O que o Brasil tem de riquezas, os bichos, tem tudo pra ser um grande país, muita água, esse rio Amazonas, ele só precisa se ajeitar". O Tom queria que o Brasil fosse de homens fortes e, sobretudo, honestos.
Valor: Jobim, sempre divertido, tinha uma frase sobre a morte: "É mais confortável morrer em português. Como é que você vai dizer para o médico gringo, em inglês: 'Tô com uma dor no peito que responde na cacunda?'" Em algum momento, durante seus últimos dias em Nova York, ele pressentiu que poderia morrer longe do país?
Helena: Ele sabia que ia morrer. Eu sonhei na época com ele numa cama cercada de anjos. O Tom dizia que queria morrer aqui, mas não aconteceu, ele foi só enterrado no Brasil. E a gente pensa que ele fez o que tinha que ser feito, tem que pensar assim.
Valor: Hoje a obra de Tom Jobim é popular como ele desejava? Ele se dizia um "eruditinho", uma mistura de músico popular com erudito.
Helena: O Tom desejava. Ele falava: "Pode ser popular isso!" Ele era uma pessoa muito obsessiva, como eu. Tudo o que fazia tinha que ser com perfeição.
Valor: Nas três últimas semanas de Tom Jobim no Brasil, vocês ficaram muito próximos - a senhora, aliás, a pedido de Tom, passou esse tempo na casa dele. Como era a rotina de ambos?
Helena: Fui morar na casa do Tom para ficar com os filhos dele, que eram pequenos. O filho mais novo, João Francisco, no dia que o Tom morreu dizia: "O que vai ser mim, o que vai ser de mim?" Fiquei como mãe deles, ajudava na escola, na roupa. O Tom, dentro de casa, não ficava parado pensando. Ficava fazendo escalas no piano o tempo todo, não parava de trabalhar.
Valor: Em seu livro, a senhora diz que o Tom era muito místico, que chegava a ouvir vozes na infância e "até receber músicas prontas". Pode citar algumas que resultaram dessa suposta espiritualidade?
Helena: As músicas todas tinham algo da espiritualidade, porque ele entrava muito na Floresta da Tijuca. A fonte de criação dele era a mata. Ele sentia muita paz dentro da floresta, não queria saber de mais nada, ele se isolava completamente do mundo. Aí vinham sons pra ele, que ele gravava. O Tom possuía um ouvido absoluto, tinha uma sensibilidade exagerada. Eu conto muito dessas passagens de nossa infância no filme "Helena", do querido Ernane Alves.
'Tom não gostava de ser bajulado', diz Cabral
Não me lembro exatamente em que momento passei a fazer parte da turma de amigos íntimos do Tom. Escrevi muito sobre ele, enaltecendo sua genialidade, na "Última Hora" e depois em "O Pasquim", mas não acho que isso tenha qualquer relação com a nossa aproximação, que deve ter se dado - era assim com a maioria dos amigos - por outros motivos. O Tom não gostava de ser bajulado, o que explica o pavor que ele tinha dos chatos, que vinham de todos os cantos do Brasil para tentar virar "amigo de copo de Tom Jobim". Na mesa do Plataforma conversava-se sobre tudo, menos assuntos sérios, "eruditos". O Tom adorava contar piadas, eram dele os comentários mais espirituosos sobre tudo o que se possa imaginar - ou sobre ele mesmo. Era uma conversa de botequim. Não existia, nesse sentido, sujeito mais carioca que o Tom. E todos que estavam ali tinham mais ou menos esse espírito, sendo cariocas ou não.
O Tom não gostava de ser bajulado, mas também se irritava com uma minoria de críticos de música que o perseguiu durante toda a carreira. Era uma turma pequena, mas barulhenta. O mais conhecido deles era o [José Ramos] Tinhorão, que dizia aquelas bobagens, que a bossa nova era uma cópia do jazz americano, que "Águas de Março" era plágio de uma música folclórica, nascida de um ponto de macumba, que "Samba de Uma Nota Só" (com Newton Mendonça) seria derivada de "Mr. Monotony", de Irving Berlin, gravada por Judy Garland. O Tom não era de responder publicamente às acusações. Mas os seus amigos, sim. Eu mesmo não deixava barato.
Escrevi um violento artigo contra o Tinhorão em "O Pasquim", não me lembro exatamente em que ano [no número 361, publicado de 28/5 a 3/6 de 1976], o acusando, por causa das críticas ao Tom e aos compositores de MPB da época, de ser um agente remunerado da CIA [o título de artigo era "Tinhorão agente da CIA?"). O Tom não entrou na polêmica, raramente entrava. Mas isso não quer dizer que ele não se vingasse à sua maneira de seus críticos, principalmente de Tinhorão. Os amigos mais chegados sabiam que ele cultivava uma planta, justamente com o nome de tinhorão (apreciada devido à sua folhagem ornamental) no seu jardim e costumava regá-la diariamente, no fim de noite, fazendo ali o último xixi antes de dormir.
Não acho, como ouço por aí, que Tom Jobim não teve sua obra reconhecida em vida. Se não teve, não foi uma exceção. Ary Barroso e Noel Rosa também morreram sem receber as homenagens que mereciam. Mesmo nos Estados Unidos, que gostamos de citar como exemplo de país que cultiva a memória de seus gênios, cerca de 80%, segundo uma pesquisa de uma universidade americana, não sabem quem foi Duke Ellington e Louis Armstrong. Nunca ouvi ele se queixar de falta de reconhecimento. Não era um sujeito queixoso. Ele dizia aquelas frases sobre o Brasil, quase sempre espirituosas, sarcásticas, com muito humor, mas ele adorava viver aqui. O Rio, com todos os seus problemas, nunca deixou de ser a cidade que ele amava. Ele topava o Rio.
Eu adorava estar perto dele. Virei amigo. Mas era também jornalista. Ainda na época do Antonio's, achando que deixava escapar tanta coisa boa durante os papos, decidi levar sempre um gravadorzinho. Chegava primeiro, escondia debaixo do pano da mesa e colocava pra gravar. Boa parte do que registrei serviu de base para a biografia que escrevi sobre o Tom, anos mais tarde. No fundo, acho que ele sabia que eu estava gravando e, como era fã dele, que usaria tudo aquilo de forma positiva. Só uma vez eu exagerei e publiquei, não me lembro onde, que ele estava com problema de saúde, algo bem pessoal, bem íntimo. Ele ficou possesso. Pensei bem e vi que tinha mesmo vacilado. Ele era o Tom Jobim. A gente não deve sair contando certas coisas sobre os gênios."
Depoimento de Sérgio Cabral concedido ao jornalista Tom Cardoso
Fonte: Valor Econômico online, 05/12/2014
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