Eugênio Bucci*
Sim, você se atrapalhou quando tentou ler em voz alta o
título aí em cima. Não se culpe. Não sofra. O que temos aí é mesmo uma
palavrona empedrada, cheia de sílabas e, para piorar, vertebrada de
consoantes atravancadas, congestionantes. A pronúncia escorreita não sai
assim de primeira. Na sua forma e no seu conteúdo, corrompreendedorismo
não é uma palavra de fácil assimilação.
Ela deriva de outra que também não tem sido afável à fala espontânea:
empreendedorismo. Convenhamos que esta aqui também não é fácil. Quando
um incauto dá de cara com ela pela primeira vez, sente que bateu numa
parede. Empreendedorismo não é como “getulismo”, que todo mundo sabe que
vem de Getúlio. Não é como lulismo, que se refere evidentemente a Lula.
Empreendedorismo, à primeira audição, parece descender de prendedor,
isso mesmo, prendedor, aquele utensílio que as mulheres usam nos cabelos
para se embelezar com ares de descontração. O substantivo
“empreendedor” nunca primou pela popularidade. Não faz parte do
linguajar corrente das ruas. Foi só depois de muita doutrinação que a
gente começou a aprender que “empreendedorismo” se liga à atividade do
empresário, ou à ideia de “espírito empreendedor” (no termo
Unternehmergeist, cunhado por Schumpeter). Realmente, como versão em
português de entrepreneurship, ou algo por aí, o vocábulo não vingou.
Bateu na trave.
Em poucas encrencas, como nesta agora,
política e economia estiveram tão entrelaçadas
pelo que têm de pior
Não surpreende, portanto, a dificuldade do improvável leitor com
“corrompreendedorismo”. Apesar disso, é o caso de insistir. Não podemos
mais viver sem essa palavrona. Com todo o desconforto fonoaudiológico
que nos traz, ela é indispensável. As cifras exorbitantes que vêm sendo
aventadas a partir do oleoso e denso escândalo da Petrobrás a tornam
obrigatória. Sem ela a realidade subterrânea das relações negociais
escusas nos será inapreensível. Sem ela não há como definir e
compreender o modus operandi desse vasto segmento das petroempreiteiras.
Se a tal livre-iniciativa precisa lubrificar (e não apenas “molhar”) a
mão do agente público para conseguir empreender, de que
“empreendedorismo” estamos falando, afinal de (e das) contas? Lembremos a
quantidade de zeros envolvida, que sobrepuja a casa do bilhão. São
bilhões e mais bilhões de reais. Muita coisa. Estamos diante não mais de
um desvio de um lobista qualquer que foi lá e amaciou o deputado, mas
de um modo de produção extenso, complexo e generalizado, implantando há
décadas com protocolos bem azeitados e regras próprias (não escritas e,
principalmente, não faladas). Esse modo de produção não pode ser chamado
de “empreendedorismo”, assim, sem mais nem menos, pois depende
visceralmente da corrupção como método e como “investimento” inicial
(uma taxa de ingresso, se você quiser) para poder estabelecer-se. Aqui, o
círculo virtuoso que se presume no “empreendedorismo” precisa do
gatilho vicioso da propina, do impulso baixo do suborno, dos préstimos
providenciais e degradantes da também chamada bola. Isso não é
“empreendedorismo” nem aqui e muito menos na China.
Um dos desafios da história é tentar entender quem está corrompendo
quem. Altíssimos executivos de empresas privadas foram presos. Seriam os
corruptores. A presidente da República viu nisso um ineditismo policial
sensacional e declarou algo na linha “nunca antes na História deste
país”. Se o corruptor for mesmo o empresário (o corrompreendedorista em
pessoa), o raciocínio presidencial tem fundamentos.
Sem prejuízo dessa linha de suposições, porém, há outra possibilidade
especulativa. Os “operadores” (essa nova categoria da teoria econômica
em tempos de corrompreendedorismo) de vários partidos, mancomunados por
detrás dos gabinetes com elevadores privativos nas sedes da Petrobrás,
podem também atuar como polos ativos da corrupção. De que modo? Muito
simples: eles agiriam para forçar uma aliança, uma relação promíscua – e
criminosa – entre representantes do mercado e servidores públicos,
porque iria extrair benefícios dessa aliança, transformando as empresas
privadas dos “corruptores” em doadoras fiéis e pontuais de barris de
dinheiro para as campanhas eleitorais e para outras régias regalias.
Quer dizer: se o corruptor privado “compra” o funcionário público para
lucrar sem trabalhar e sem ter de se aborrecer com concorrentes, o
“operador” partidário “compra” o corruptor privado para garantir uma
caixinha segura, mensal, líquida e certa (embora errada). E então? Quem
corrompe quem?
De um jeito ou de outro, por um ângulo ou por outro, por uma lógica
ou por outra, o fato é que os corruptores, partidários, públicos e
privados, bem como os corruptos, de muitos lados do balcão, foram
alcançados pelas investigações e isso, claro, é positivo. De um jeito ou
de outro, as engrenagens do corrompreendedorismo estão nuas como as
intenções de seus agentes e a sociedade está mais informada sobre o que
não deveria ter acontecido nunca.
Tudo isso talvez suscite no improvável e estimado leitor a lembrança
do conceito de acumulação primitiva, tão caro a Karl Marx, ou do
conceito de patrimonialismo, conforme Victor Nunes Leal e Raymundo Faoro
o descreveram. Este articulista, igualmente improvável e nem tão
estimado assim, também pensa sobre isso. Agora, contudo, para sorte de
muitos, o espaço deste artigo já vai secando como um campo de petróleo
que se extingue miseravelmente. Restam poucas linhas para uma nota
rápida, que não pode ser mais do que telegráfica. Ei-la: quanto à
acumulação primitiva, seria interessante considerar que, agora, não se
trata de um atalho para que o capital se fortaleça antes de ingressar no
mercado; estamos lidando, isso sim, com uma gangrena asfixiante e
retardatária, uma decrepitude do capitalismo que não tende ao livre
mercado, de jeito nenhum. Antes tende a matá-lo.
Em poucas encrencas, como nesta agora, política e economia estiveram tão entrelaçadas pelo que têm de pior.
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* Eugênio Bucci é professor doutor da Escola de Comunicações e Artes (ECA)
e pesquisador visitante do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da
Universidade de São Paulo (USP). É colunista do jornal "O Estado de S.
Paulo" e do site "Observatório da Imprensa". Integrou o conselho curador
da Fundação Padre Anchieta (TV Cultura de São Paulo) de 2007 a 2010.
Autor de livros e ensaios sobre comunicação e jornalismo, foi presidente
da Radiobrás entre 2003 e 2007. Como crítico de televisão e de cultura,
manteve colunas em jornais na "Folha de S. Paulo" e "Jornal do Brasil" e
nas revistas "Veja", "Nova Escola" e "Sem Fronteiras". Na Editora
Abril, foi diretor de redação de revistas mensais e secretário
editorial.
Bucci é graduado em Jornalismo e em Direito pela Universidade de São
Paulo (USP) e é doutor em Ciências da Comunicação, também pela USP.
Fonte: O Estado de S.Paulo, 27/11/2014.Imagem da Internet
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