Luiz Felipe Pondé*
No passado, domingo era para descansar. Hoje, descansa-se mais em certos empregos do que na função social de lazer
Domingo à tarde. Perto de um parque na zona oeste paulistana. Bikes por
toda parte. Calor. No passado, dizia-se que domingo era dia para
descansar. Hoje, descansa-se mais em certos empregos do que cumprindo a
função social de lazer.
Uma fila gigantesca de carros entope a rua. A região, invadida por bikes
de domingo e por frequentadores do parque, vira um pequeno inferno em
busca do lazer.
Traço irônico esse: a busca pela felicidade e pelo descanso torna-se uma visita ao inferno.
Mesmo aqueles que não partilham da busca infernal pela felicidade de
domingo sofrem com a invasão do espaço cotidiano. E muitos, acostumados
com o modelo de "mundo parque temático" em que vivemos, nem chegam a
perceber o ridículo daquele acúmulo de gente na fila para ser feliz.
Pode-se imaginar a pressão dentro dos carros. Percebe-se que,
provavelmente, muitos deles e seus "habitantes" vêm de longe em busca de
lazer "para as crianças".
Dentro dos pequenos carros (claro que há também aqueles coreanos, que
mais parecem ambulâncias zero quilômetro), podemos imaginar a irritação
da mulher com seu marido por não ter sido capaz, ainda, de trocar o
carro por um com ar-condicionado. Mesmo porque ainda paga a centésima
prestação do pequeno micro-ondas com rodas.
O marido, por sua vez, como todo marido humilhado no cotidiano pelo
sentimento de que deve engolir sapos por sua família, permanece em
silêncio para não piorar as coisas. Afinal, é domingo e ele ainda tem
esperança de "comparecer" com a patroa.
Esse tipo sumiu das "representações sociais masculinas". Agora só
sobraram os malditos machões idiotas e os sensíveis, que fazem manifesto
porque não aguentam o tranco da responsabilidade insustentável de ser
"chefe de família". Na pré-história, esse tipo comum, ridicularizado por
todos, foi essencial para a sobrevivência da espécie.
E a mulher? Coitada. Cansada de ser mãe, mulher, profissional esmagada
pela pressão de ter que dividir gastos com um marido já não tão
interessante, já sem muitos horizontes, tem ainda que controlar as duas
crianças (pior se forem três...) que gritam no banco de trás, se batem e
se mordem, sonhando com o parque que se aproxima na velocidade de
cágado com que a fila se move.
Ficar em casa, nem pensar! Talvez o humilhado "homem sério", pai de
família, até cogitasse ficar vendo o "Corintia", mas a mulher afundaria
num tédio insuportável, e os maridos preferem filas de horas no calor do
que encarar uma mulher entediada no domingo.
Um pouco mais à frente, uma van com umas oito ou dez pessoas. Pouco se
pode dizer sobre o que vem a ser "aquilo", além de uma "mancha humana",
como diria Kafka. Mas ouve-se seu péssimo gosto musical de longe. Além,
claro, da gritaria de gente sonhando em ser feliz no domingo no parque.
No meio de tudo isso, pessoas atravessando a rua sem olhar para os
carros como se fossem imunes à morte. De onde vem esse empoderamento da
má educação, que agora passa por cima de todo mundo na sua busca feroz
por alegria?
Por um instante me lembro da barata de Kafka ("Metamorfose"), personagem
a esta altura conhecido de muitos, apesar de, talvez, tristemente mal
compreendido.
Gregor Samsa, jovem que acorda um dia transformado num gigantesco inseto
marrom (que carinhosamente assumimos como sendo uma barata), de cara,
teme por perder seu bonde para o serviço e, consequentemente, perder seu
emprego.
Estranha fidelidade essa ao emprego que faz alguém temer mais perdê-lo
do que chorar por ter virado uma barata. Confessemos: todos nós o
entendemos, mesmo que, possivelmente, sejamos mais chiques do que ele.
Gregor-barata um dia descobre que pode andar pelo teto e pelas paredes
com suas centenas de perninhas que colam na superfície, graças a um
sofisticado sistema de gosma marrom que deixa um rastro por onde passa.
Algum profissional especializado em palestras motivacionais poderia
citar esse momento como algo "inspiracional" para a nova condição barata
de Gregor, a fim de mostrar o "lado positivo" que tudo tem.
A fila de carros no parque também deixa seu rastro marrom.
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* Filósofo. Escritor. Prof. Universitário.
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