Eliana Cardoso*
Talvez por não ter um deus, o budismo
parece abolir
a violência. Não podemos dizer o mesmo
sobre teologias
monoteístas e seus líderes,
que disputam, através dos tempos,
o troféu
da violência no mundo.
Como você, meu querido, e como o resto da torcida do Flamengo também,
adoro John Lennon e imagino o mundo onde não existiriam razões para
matar ou se oferecer à morte: um mundo sem religião.
Já adivinho sua resposta, completando meu pensamento com a melodia:
"You may say I'm a dreamer" e não terei como desmenti-lo. No entanto
sonhamos, mesmo sabendo que deuses e políticos precisam dividir para
reinar.
Bom, se vamos falar de religião, melhor começarmos lá atrás com uma
boa tragédia de Eurípedes: nada mais nada menos que as "Bacantes". De
modo perturbador, esse drama oscila entre o humor negro e o pânico que
nos domina ao ver um homem, possuído pela curiosidade sobre a celebração
do rito de mulheres a Dionísio, se vestir como elas para espioná-las. A
peça explora os engenhos do teatro e da religião, os conflitos entre a
ilusão e a realidade, a crença e a descrença.
A trama de "Bacantes" entrelaça o advento da adoração de Dionísio na
Grécia com uma tragédia pessoal. O jovem deus - que preside não só sobre
o vinho e o teatro, mas também sobre a música, a dança, o êxtase e a
loucura libertadora - anuncia que chegou a Tebas com o propósito de
impor seu culto aos gregos. Defrontando-se com a resistência dos
tebanos, Dionísio demonstra seu poder e autoridade: enlouquece as
mulheres, que correm para o campo e se tornam bacantes, para grande
consternação dos homens que permaneceram na cidade.
Penteu - o jovem rei de Tebas, filho de Agave (uma das bacantes) -
condena as práticas orgiásticas e anuncia a intenção de erradicar o
culto. Ignorando os anciãos experientes que lhe aconselham um caminho
mais moderado, Penteu planeja cercar as bacantes e prender o líder
efeminado, que é, sem o conhecimento de Penteu, o próprio Dionísio
passando por sacerdote.
O rei e o deus ficam cara a cara. Ambos são teimosos, cada um
convencido da própria justiça. Penteu representa a civilização e seus
valores: a autoridade política, a moralidade, a razão, a "polis" e o
masculino. Dionísio representa a natureza e seus significados: o corpo, a
sexualidade, a embriaguez, os espaços selvagens fora da cidade e o
feminino. A escalada do conflito impulsiona o drama.
A fúria crescente de Penteu expõe o conhecido tipo psicológico que
ele encarna. O espectador sabe que a repugnância aos novos ritos se
alimenta da fascinação reprimida. O deus também sabe disso e usa esse
conhecimento para seduzir o mortal a se tornar o que ele proclama achar
repelente. A fim de espionar as mulheres praticando os ritos secretos,
Dionísio lhe explica, o rei deve vestir-se de mulher.
Chegando às colinas onde as bacantes se encontram, Penteu se esconde.
Descoberto, elas o agarram, tomando-o por um leão, e em êxtase
demoníaco o desmembram e estraçalham.
Espectadores mergulham na realidade à medida que a mãe de Penteu
reconhece o que fez. E o grotesco sacrifício planta o alicerce do culto
de Dionísio na Grécia. Em seu discurso final, o deus profetiza que a
tribo de Penteu percorrerá a Grécia, derrubando altares dos antigos
deuses e criando outros para o que acaba de chegar.
A violência na substituição da adoração de um deus por outro marca as
perseguições e guerras religiosas através dos séculos e chega a nossos
dias na forma do Estado Islâmico. Em Eurípedes, Dionísio ele mesmo exige
a ampliação de seu território por toda Grécia. Na Idade Média, a Igreja
Católica se deu a missão de levar a fé cristã ao resto do mundo.
Algumas décadas atrás, visitando Kyoto com um companheiro,
telefonamos, na estação de trem, para a pousada e não conseguíamos nos
fazer entender. Começamos a falar português, preocupados por não
conseguir confirmar a reserva. Um japonês se aproximou e, falando a
nossa língua, se ofereceu para fazer o telefonema, confirmou a reserva e
escreveu o endereço num papel. Agradecemos e perguntamos onde ele
aprendera português. No Japão, no colégio dos jesuítas, ele explicou. E
contou que ainda existiam jesuítas portugueses por lá seguindo a
tradição de Francisco Xavier, que chegou ao Japão em 1549 vindo de
Malaca (na costa sudoeste da Malásia).
Em Malaca, Francisco Xavier conhecera um renegado japonês procurado
por assassinato de quem aprendeu a história de Buda. A princípio,
Francisco Xavier entendeu que Buda, como Moisés, acreditava num único
deus. Mudou de ideia dois anos mais tarde e chamou Buda de uma invenção
dos demônios. Nem mesmo o santo parecia capaz da tolerância que John
Lennon nos ensina. Mas a vida é cheia de ironias. Tentando converter os
japoneses ao cristianismo, Francisco Xavier transformou a palavra "deus"
em "daiusu", cujo som é muito parecido com a palavra "mentira" em
japonês.
Na época de Francisco Xavier, o mundo se dividia em judeus, cristãos,
maometanos e idólatras. A idolatria incluía todo mundo, dos astecas aos
taoistas. Os cristãos - que distribuíam imagens de Jesus, de santos e
da Virgem Maria - viam a si próprios como diferentes dos outros
idólatras a quem perseguiam.
Não só em imagens santas residiam as semelhanças. Budistas e cristãos
contavam com monges celibatários cobertos por longos vestidos pedindo
esmola. Ambas as religiões tinham e ainda têm céus e infernos, embora os
16 infernos do budismo sejam mais numerosos do que os sete círculos de
Dante. E, para o budista, os infernos não são eternos, mas apenas
estações de passagem no caminho para a próxima encarnação.
Segundo Donald S. Lopez Jr ("From Stone to Flesh: A Short History of
the Bhuda"), a descoberta das línguas indo-europeias originou
especulações sobre as conexões entre diferentes mitos e confundiu
algumas divindades com outras. Pensou-se que Buda fosse o mesmo deus
que, por exemplo, um certo deus egípcio, outro escandinavo e por aí
afora. Antes disso, a confusão ainda era maior, pois o Ocidente não
distinguia os deuses azuis, ou com cabeça de elefante, da figura de
Buda.
Pouco a pouco as coisas foram mudando. Para os protestantes, a
austeridade do Buda o aproximava de Calvino. Além disso, o budismo
abolira a adoração dos deuses hinduístas e se opusera a duas práticas
que os britânicos achavam repelentes: o sacrifício de animais e o
sistema de castas.
Hoje a biografia de Buda, formalizada séculos após a sua morte, é bem
conhecida. No nascimento do príncipe Sidarta, os astrólogos declararam
que ele poderia renunciar ao mundo e tornar-se um Buda. Seu pai, com
medo de que Sidarta, ao descobrir as dores do mundo, pudesse
abandoná-lo, encerrou a criança num palácio onde todos eram jovens e
bonitos. Aos 29 anos, Sidarta fugiu do palácio e fez quatro viagens,
cada uma em um sentido diferente. Viu coisas cuja existência ignorava:
um velho, um homem doente, um cadáver. Na quarta viagem ele encontrou um
mendigo.
O rei tentou, sem sucesso, manter o príncipe junto a si, mas ele se
foi e vagou durante seis anos e passou por privações. Depois se sentou
sob uma árvore, resistiu às tentações de Mara, deus da morte e do
desejo, se iluminou e se rendeu ao ensino da existência da dor e sua
causa e o caminho para o fim do sofrimento.
A emergência de um Buda simpático se disseminou no Ocidente pela
leitura e tradução de seus textos. Em Kathmandu, Brian Hodgson - que
trabalhava para a Companhia das Índias Orientais e coletava espécimes
ornitológicos e escrituras budistas para o Museu Britânico - encontrou
as versões originais em sânscrito de textos budistas. Mandou-as para
Eugène Burnouf, que traduziu o mais influente desses textos, o "Sutra de
Lótus", lido por Thoreau, Emerson, Schelling, Schopenhauer e Nietzsche.
Segundo Burnouf, Buda não era ídolo nem deus, mas professor de uma
filosofia humanista. Aí está. Talvez por não ter um deus, o budismo
parece abolir a violência. Não podemos dizer o mesmo sobre teologias
monoteístas e seus líderes, que disputam, através dos tempos, o troféu
da violência no mundo.
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*Eliana Cardoso, economista e escritora.
E-mail: eliana.anastasia@gmail.com
Fonte: Valor Econômico online, 12/12/2014
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