Ainda que o leque de respostas possa extrapolar as letras do abecedário, a última alternativa soa como a mais improvável. No entanto, ela não parece tão absurda à medida que o escritor best-seller e filósofo Alain de Botton vem exercendo seu talento para "coach da vida" usando os mais diferentes campos do conhecimento, e mais leitores tornam-se não apenas fãs, mas fiéis seguidores. Em 2008, ele fundou a School of Life (Escola da Vida), um espaço para palestras sobre os dilemas da vida moderna, com braços em diferentes países, incluindo Brasil.
Aos 44 anos, o autor suíço radicado em Londres usa em seus livros uma linguagem irônica e coloquial, mas não despida de sofisticação e filosofia, ou, como diriam seus detratores, "filosofia pop", como se pop fosse o ultraje supremo para temas elevados e comumente herméticos. Assim foi em seu livro de estreia, "Ensaios de Amor" (1993), em que, aos 23 anos, dissecou uma relação amorosa do início ao fim, usando ainda estatística e psicologia, e em obras que abordam temas que vão da literatura ("Como Proust Pode Mudar Sua Vida", de 1997, que já no título não nega sua vocação para a prateleira de autoajuda) à arquitetura, filosofia, jornalismo etc.
Em “Arte como Terapia” (2013), é a vez de Alain de
Botton irritar curadores, historiadores e artistas plásticos. O escritor
não apenas defende que a arte tem função, como enumera cartesianamente
sete de suas supostas finalidades. Para ele, a arte deve falar ao
espírito humano e ajuda a nos tornar melhores e mais felizes seres
humanos. Ou seja, ele joga por terra um sistema que, desde os anos 90,
tem se distanciado do espírito e se beneficiado de uma estrutura de
eficácia quase industrial, em que artistas plásticos midiáticos,
galerias, feiras e leilões suprem a demanda de novos milionários russos,
chineses e árabes ávidos por obras que muitas vezes pregam uma “arte
pela arte” referendada por museus e curadores.
Ainda que defenda valores liberais, De Botton
afirma que a censura deve ser repensada (e retomada) neste começo de
século XXI, que as lojas dos museus são a parte mais importante dessas
instituições e que o capitalismo deveria ser reformulado, como não
poucos pensadores no pós-“Occupy Wall Street” têm alardeado. Leia a
entrevista a seguir.
Valor: O senhor
parece prestar atenção aos mínimos detalhes da vida contemporânea. Como
busca a inspiração para os seus livros e como surgiu “Arte como
Terapia”?
Alain de Botton: Meu
trabalho é focado em duas coisas. Primeiro, a tentativa de desenvolver o
meu nível de inteligência emocional e o do meu leitor. Com isso quero
dizer a capacidade de entender a si mesmo, de lidar com o mundo, de
extrair o máximo de suas próprias habilidades. Em segundo lugar, quero
fazer isso contando com a sabedoria e o conhecimento que está contida na
história da cultura: na filosofia, psicologia, literatura, nos estudos
científicos, na teoria política... Este é o lugar aonde vou para ter
ideias. Não sou um cientista.
Então foi muito natural para mim olhar para a arte e perguntar uma questão muito básica: “O que a arte pode fazer para nós?”.
É muito fora de moda pensar que a arte pode “fazer”
algo para nós. Há uma presunção em nossa cultura de que a arte não é
“para” nada em particular. Ela é muito interessante e importante. No
entanto, essa explicação não parece coesa o suficiente para mim.
Acredito que a arte é uma ferramenta, e, como todas as ferramentas, ela
tem suas funções. Também acho importante saber a finalidade da
ferramenta, para podermos saber quando e como usá-la.
Em “Arte como Terapia”, meu coautor [John
Armstrong] e eu argumentamos que a arte é uma ferramenta que pode nos
ajudar de formas diversas a inspirar, consolar, redimir, guiar,
confortar, expandir e redespertar. O livro percorre sistematicamente
essas funções da arte, e em cada área pegamos uma seleção de trabalhos
do decorrer da história que sentimos mostrar a arte executando seu
trabalho de modos ideais.
Meu coautor é um historiador da arte e eu sou um
filósofo. Então trabalhamos bem em conjunto e cada um trouxe diferentes
experiências para a tarefa.
Valor: A arte o ajudou a ter uma vida melhor? Em que momentos de sua vida a arte desempenhou um papel crucial?
De Botton: Obras de arte são
sempre mais bem-acabadas, belas, inteligentes e sábias do que somos
capazes de ser no dia a dia. Quando nos cercamos de obras de arte,
olhando-as repetidamente, elas funcionam implicitamente como modelos a
seguir que nos convida a ser um pouco mais como elas — e portanto ajudam
a nos tornarmos versões melhores de nós mesmos.
Religiões sempre souberam disso: no budismo,
parte de se tornar um bom seguidor de buda envolve olhar regularmente
para uma estátua ou imagem sorridente da face de buda. O mesmo pode se
aplicar a um católico em relação a uma imagem da Virgem.
No entanto, há analogias seculares para isso.
Alguém poderia pensar, ao ver um Manet, um Edward Hopper ou um Andreas
Gursky: “Eu também gostaria de ser um pouco mais como esse trabalho. Há
uma promessa aqui de como eu poderia reordenar aspectos de minha
vida...”.
Isso tem ocorrido frequentemente comigo: sou inspirado a ser um pouco melhor pelas obras de arte que tenho visto.
Valor: Por que a ideia de “arte pela arte” é tão problemática? Obras de arte sem função terapêutica não têm valor?
De Botton: “Arte pela arte”
sugere que a arte não pode fazer nada por nós. Ao passo que eu
firmemente acredito que ela pode — e que alguém pode definir o propósito
da arte de forma bem simples.
Deixe-me listar as funções, de uma maneira
bem enxuta (o livro vai explicar melhor): obras de arte podem nos ajudar
a lembrar o que importa; elas também nos fornecem esperança; dignificam
o sofrimento; expandem nossos horizontes; ajudam a nos entender a nós
mesmos; elas nos reequilibram e, por último, fazem com que apreciemos o
que é familiar sob uma nova perspectiva.
Tomemos esse último tópico, que é onde a imagem de
Adriaen Coorte [artista holandês do século XVIII] entra. Em teoria,
sabemos de antemão que morangos são bonitos. Mas Coorte fez um monumento
a eles. Ele quer nos ressensibilizar para os morangos. Ele está nos
lembrando que amamos um aspecto do mundo mais do que pensamos, que há
coisas na vida que tomamos por certo, mas não sabemos apreciar
plenamente. Ele está olhando para os morangos como um forasteiro
apreciador, reencontrando o senso de deslumbramento e nos encorajando a
fazer o mesmo. Não há distrações: uma simples e padronizada tigela
chinesa verde-creme e uma flor branca proveem o cenário ideal para nos
reconectar com um simples encanto. O artista sabe algo sobre nós: como a
familiaridade embota nossa apreciação do que está disponível. Ao nos
convidar a concentrar apenas por um minuto ou dois, ele pode renovar
nossa curiosidade e senso de valor. Precisamos fazer com muitas coisas
aquilo que Coorte fez com os morangos. Começando com, pelo menos, nossos
parceiros e cônjuges.
Valor: O senhor
realmente não vê nenhum aspecto positivo nos museus de hoje? Será que
elogiar as lojas dos museus não é apenas uma maneira de endossar o
consumismo?
De Botton: Museus são
extraordinários, mas correm risco de serem objetos de fetiche também.
Frequentemente, se você tem um computador, você não precisa ver o
original. Apenas fique em casa e olhe com atenção as belas reproduções
na Wikipedia. Ou compre o cartão-postal.
Corremos o risco de sempre pensar que só o
original é que vale a pena. É como música: claro que concertos são
formidáveis, mas música gravada não é tão ruim.
O capitalismo é uma coisa de fato maravilhosa, e
sou feliz em apoiá-lo, apesar de também querer reformá-lo. Mas, de fato,
a loja do museu é um lugar importante porque é onde o visitante
habitual é capaz de fazer uma decisão estética por si mesmo e levar as
lições da arte para dentro de nosso mundo.
Nós estamos sendo intencionalmente polêmicos porque
acreditamos que deveria ser um senso comum, e não uma surpresa,
atribuir um sentido para a arte. Arte pode nos ajudar com nossos mais
íntimos e comuns dilemas, perguntando: “O que posso fazer sobre as
dificuldades nas minhas relações? Por que meu trabalho não é mais
satisfatório? Por que outras pessoas parecem ter uma vida mais
glamourosa? Por que a política é tão deprimente?”. O propósito deste
livro é introduzir um novo método de interpretar arte: arte como uma
forma de terapia. O ponto de vista dos autores é que certas obras de
arte fornecem soluções poderosas para nossos problemas, mas, para que
esse potencial seja libertado, a atenção do público tem que ser
direcionada de uma nova maneira, em vez de direcionada para as
preocupações históricas e estilísticas mais tradicionais, com as quais
os livros de história e textos de museus são associados. Os autores
propõem que a débil crença de que a arte deve ser “arte pela arte” tem
desnecessariamente impedido que a arte revele seu latente potencial
terapêutico. Este livro envolve recompor e recontextualizar uma série de
obras de arte de diferentes épocas e gêneros, para que possam ser
abordadas como uma ferramenta para a resolução de difíceis questões na
vida individual.
Valor: O mercado
de arte parece, muitas vezes, um playground para os super-ricos. Será
que esse cenário ajudou a tornar o público alienado em relação à arte? A
arte virou apenas uma moeda?
De Botton: Esse tipo de
fetiche em torno da arte é absurdo e muito, muito inútil. Por isso é que
digo para comprar o cartão-postal. Mas as pessoas só fazem um auê em
torno da arte porque, no fundo, ela importa. Quer dizer, só nos tornamos
esnobes sobre coisas que são, no fundo do coração, merecedoras de
atenção.
Valor: Por que a
arte e a cultura são tratadas como temas secundários? O orçamento dos
governos costuma ser menor para a pasta da cultura; raramente a cultura
gera manchetes etc. Faz parte da natureza humana?
De Botton: A arte poderia
substituir a religião na vida de muitas pessoas. Aprendemos todas as
lições erradas da religião em relação à arte. Adotamos a reverência, mas
ignoramos o propósito pelo qual religiões se interessam em arte. Você
frequentemente ouve dizer que “museus de arte são nossas novas igrejas”:
em um mundo secularizado, a arte substituiu a religião como uma medida
de nossa reverência e devoção. É uma ideia intrigante, parte de uma
ambição mais ampla de que a cultura deveria substituir a Bíblia, mas, na
prática, museus de arte frequentemente abdicam muito de seu potencial
de funcionar como novas igrejas (locais de consolação, sentido,
santuário, redenção) devido à maneira como lidam com as coleções que
abrigam. Enquanto expõem objetos de importância genuína, eles entretanto
parecem incapazes de dispô-las de uma maneira que se ligue com força às
nossas necessidades interiores.
O problema é que os atuais museus de arte
falham em contar diretamente às pessoas por que a arte importa, porque a
estética modernista (na qual os curadores são instruídos) é
profundamente desconfiada de qualquer alusão a uma abordagem
utilitarista para a cultura. Ter uma resposta ao alcance de qualquer um
para a questão de por que a arte importa é rapidamente vista como
“redutiva”. Engolimos muito facilmente a ideia modernista de que a arte
com a intenção de mudar, ajudar ou confortar o público deve por
definição ser “arte ruim” (arte soviética é rotineiramente evocada aqui
como exemplo) e que apenas a arte que busca nada muito claro para nós é
que pode ser boa. Daí a tão frequente questão que fica na nossa cabeça
ao sairmos de um museu: “O que aquilo significa?”.
Por que essa veneração à ambiguidade deve
continuar? Por que confusão deve ser uma emoção estética central? Seria o
vazio de intenção de uma obra de arte realmente um sinal de sua
importância?
Em contraste, o cristianismo nunca nos deixa em
dúvida sobre para que a arte serve: é uma mídia que nos ensina como
viver, o que amar e o que temer. Tal arte é extremamente simples ao
nível de seu propósito, por mais complexo e sutil que seja no que se
refere à execução (Ticiano, por exemplo). Arte cristã corresponde a um
conjunto de gênios dizendo coisas tão incrivelmente básicas, mas
extremamente vitais como: “Veja aquela pintura de Maria se você quer se
lembrar com o que a ternura se parece”; “Olhe aquela tela com um
crucifixo se você quer aprender uma lição sobre coragem”; “Veja a
‘Última Ceia’ para você aprender a não ser covarde e mentiroso”. O ponto
crucial é que a simplicidade da mensagem não compromete a qualidade do
trabalho “como peça de arte”. Em vez de refutar a instrumentalização,
citando o caso da arte soviética, poderíamos defendê-la mais de maneira
mais convincente citando Mantegna e Bellini.
Isso leva a uma sugestão: e se os museus tivessem
em mente o exemplo da função didática da arte cristã, para que de tempos
em tempos mudassem a maneira como apresentam suas coleções? Iria
arruinar um Rothko destacar para o público a funcionalidade que ele
mesmo declarou: conceder ao espectador um momento de comunhão em torno
de um eco dos sofrimentos da nossa espécie?
Tente imaginar o que aconteceria se os museus
tomassem o exemplo das igrejas mais seriamente. E se eles também
decidissem que a arte tem um propósito específico (nos fazer um pouco
mais sãos, ou ligeiramente bons ou um pouco mais sábios e bondosos) e
tentassem usar a arte que possuem para nos incentivar a ser dessa
maneira? Talvez a arte não devesse ser “pela arte”, um dos slogans mais
estéreis, mal interpretados e sem ambições de toda a estética: por que a
arte não pode, como nas eras religiosas, ser mais explícita em favor de
algo?
Museus tipicamente nos levam a galerias com títulos
como “O Século XIX” e “A Escola do Norte da Itália”, o que reflete as
tradições acadêmicas nas quais os curadores foram educados. Um sistema
de indexação mais fértil poderia agrupar obras de arte de diferentes
gêneros e eras de acordo com nossas necessidades interiores. Um passeio
pelo museu de arte deveria resultar em um encontro estruturado com um
pouco das coisas que são mais fáceis para nós esquecer e mais
essenciais e transformadoras para lembrar.
O desafio é reescrever as agendas para nossos
museus, para que as coleções possam começar a servir às necessidades
psicológicas de forma tão eficaz como, por séculos, serviram àquelas
necessidades da teologia. Curadores deveriam tentar deixar de lado seus
medos profundos de instrumentalização e de vez em quando usar obras de
arte para a ambição de nos ajudar a seguir pela vida. Apenas então os
museus estariam aptos a dizer que cumpriram a notável, mas ilusória
ambição de em parte se tornarem substitutos para igrejas numa sociedade
rapidamente secularizada.
"Obras de arte são sempre
mais belas, inteligentes e sábias do que somos capazes de ser no dia a
dia (...) Funcionam como modelos a seguir"
Valor: No livro, o
senhor defende a censura. Como evitar que ela não descambe para ideias
como a “arte degenerada” de Hitler, uma vez que a noção de “boa” e “má”
arte é muito subjetiva?
De Botton: Acredito em
censura. Às vezes. Claro que esta é uma visão muito impopular
atualmente: censura parece ser algo mesquinho, defensivo e inimigo de
uma liberdade conquistada a muito custo. Pessoas associam censura a
queima de livros, repressão política e intolerância. Os eventos heroicos
que encerraram a censura na Europa parecem apenas confirmar essa
percepção. A censura à Enciclopédia de Diderot em 1752 foi um ataque
insignificante da Igreja a um projeto intelectual sofisticado e
extremamente útil. A proibição de “O Amante de Lady Chatterley”, de D.H.
Lawrence, foi uma atitude similarmente idiota. Quando a editora,
Penguin, foi julgada em 1960 sob o Ato de Publicações Obscenas, a
acusação pareceu desajeitada e obtusa, enquanto a defesa era apaixonada e
inteligente. Na história da censura, sempre parece que algo de valor
real (profundo, sincero e verdadeiro) é condenado e alguém vil, corrupto
e ridículo está tentando efetuar a censura.
Mas talvez isso não seja mais verdade.
Talvez, apenas talvez, esse período da história (em que os censurados
sempre foram os bons, e os censores sempre os maus) tenha, nos países
desenvolvidos ao menos, terminado de muitas maneiras. Talvez, a
verdadeira ameaça nos dias de hoje não é que verdades maravilhosas
estejam correndo o risco de serem reprimidas por autoridades malignas,
mas, sim, que iremos nos afundar no caos produzido por agressivos e
incontroláveis interesses comerciais, que seremos esmagados por
futilidades, gananciosas, nocivas e inúteis, e que seremos incapazes de
nos concentrar no que é genuinamente importante e bom.
Um argumento-chave daqueles que atacam a “censura”
hoje é alegar que todos nós precisamos ouvir todas as mensagens o tempo
todo. Mas precisamos? Precisamos, por exemplo, ouvir uma mensagem sobre
que tipo de perfume seria bom comprar quando passamos pelo leito de um
rio no centro de Paris?
A publicidade da Chanel [colocada na fachada do
Museu D’Orsay, em Paris, em 2011] é deprimente para o espírito humano
porque representa em larga escala, em um lugar destacado e de prestígio,
uma fraqueza que todos precisamos superar em nós mesmos: nossa
tendência a nos perder em distrações, narcisismo e consumismo inútil. A
publicidade dá, inadvertidamente, apoio aos nossos piores lados.
O argumento aqui é que coisas que nos afastam de
nosso verdadeiro potencial não deveriam ser ostentadas na nossa frente,
pedindo por admiração, em todas as ocasiões (no ônibus, atrás do banco
do avião, na rua....). No caso do Museu D’Orsay, censura significaria
tomar cuidado para que o ambiente público refletisse, e desse modo
encorajasse e apoiasse nossas melhores índoles.
Censurar um outdoor inconveniente colocado em um
prédio muito amado pode ser algo não muito controverso. Mas tal exemplo
revela princípios que podem ser usados posteriormente. Mensagens inúteis
podem ser apontadas em várias áreas.
TV, por exemplo. Transmissões de TV têm sido há
tempos censuradas nas áreas da violência e sexualidade — e há ampla
concordância de que essa é uma aceitável, e até bem-vinda, restrição da
liberdade. Sabemos perfeitamente bem que imagens extremas estão
disponíveis em outro lugar se alguém realmente quiser procurá-las; mas
há uma importante distinção entre o que as pessoas fazem no privado e o
que é mais ou menos aceitável “em público”, por meio das ondas de ar. A
percepção que nos leva a censurar imagens porque elas são muito
explícitas ou grotescas, na verdade se aplica mais amplamente do que
apenas a essas duas categorias.
Porque o problema não tem raízes no sexo ou na
violência: o verdadeiro temor é de que algumas cenas que são exibidas
sejam humilhantes para nossa dignidade humana. Elas nos dão uma visão
vergonhosa da natureza humana.
Censura não tem necessariamente a ver com tornar
tal material impossível de ser visto. O que ela insiste é no caráter
privado e pessoal do interesse: ela recusa endosso popular. Os programas
e as publicidades mais sinistras são aquelas que têm confiança em seus
próprios méritos quando, na verdade, são indignas de estima.
Em uma sociedade democrática, orientada pelo
mercado, a cultura pública é tremendamente importante. Ela guia nossas
ideias coletivas sobre o que é admirável ou chocante, o que é normal ou
esquisito. Ela gera uma percepção compartilhada de status. Todas as
coisas públicas moldam nossas vidas, e elas encontram caminho na
política e na economia.
Censurar um conteúdo estranho nem sempre deveria
ser considerado uma supressão obscura de ideias cruciais, mas
ocasionalmente uma tentativa sincera de organizar o mundo para o
florescimento humano.
Valor: Muitos problemas
do mundo são ligados ao capitalismo. No fundo, o livro não é menos sobre
arte e mais uma crítica ao capitalismo?
De Botton: O sistema que
conhecemos como capitalismo é ao mesmo tempo extraordinariamente
produtivo e imensamente problemático. No aspecto negativo, o capitalismo
promove desigualdade excessiva; valoriza lucro imediato a benefícios de
longo prazo; ela nos vicia em produtos desnecessários e incentiva
consumo excessivo dos recursos do mundo com consequências potencialmente
desastrosas — e isso é apenas um começo. Estamos agora profundamente
familiarizados com o que pode dar errado no capitalismo. Mas isso não é
razão para pararmos de sonhar com as formas que o capitalismo poderia um
dia adquirir em um futuro utópico:
Na utopia, passaríamos menos tempo pensando sobre o Dow Jones.
O Dow Jones, que é o índice financeiro mais
prestigiado do mundo, faz uma leitura diária da temperatura dos EUA,
atribuindo um número muito preciso, que é amplamente divulgado nos
noticiários e com o qual tendemos a tratar com um alto nível de
reverência. Tal dado financeiro parece estar nos contando algo de imensa
importância. Ele dá uma dica de resposta às grandes questões da
existência: as coisas estão indo bem ou mal?, o mundo está Ok? Como é a
vida na Terra?
Realmente vale a pena perguntar tais questões e
refletir bastante sobre elas. Isso é o que os filósofos tradicionalmente
gostam de fazer. Mas os números não respondem de fato às nossas
questões, porque a relação entre o Dow Jones e o que realmente está
acontecendo nas vidas humanas (suas altas e quedas) é muito mais
ilusória. Não é que não haja conexão. A saúde financeira das maiores
companhias dos EUA tem elos indiretos, distantes, com o lado econômico
da vida de todas as pessoas. Entretanto a qualidade e natureza da vida
diária é afetada por muitas coisas com as quais os dados financeiros não
reconhecem, como por exemplo, sua saúde, a vista de sua janela, a
qualidade de seu relacionamento, a quantidade de tempo que você gasta
indo e voltando do trabalhos, as relações que você tem com os vizinhos, o
estado de suas ambições, seu nível de inveja, como seus filhos estão.
Isso pode, de fato, ser mais importante para determinar “como as coisas
estão indo” que o índice Dow Jones. Mas o Dow não admite inteiramente
isso. Ele parece estar fazendo uma reivindicação maior: saber como sua
vida está indo — e ela leva a essa reivindicação uma pompa de
impressionantes flechas, gráficos e siglas que nos intimidam a acreditar
em sua autoridade, em vez dos murmúrios de um padre sentado no topo de
um altar em um templo escuro, como nossos ancestrais podem ter feito .
Apesar de toda nossa expertise, ainda não
aprendemos como inventar indicadores de confiança da condição das nações
e das pessoas. Não temos um conjunto diário de símbolos para registar o
que realmente importa. Poderia ajudar, por exemplo, saber a incidência
de constrangimento desnecessário, ou se a arrogância está se tornando
0,1% mais ou menos comum. Não temos símbolos medindo estoque de
paciência, tato ou boa vontade. Não temos índices em torno da inveja,
infidelidade e fúria.
Na falta desses indicadores vitais, nos apegamos
aos sinais oferecidos por Wall Street. Usamos palavras como depressão e
abundância, termos bem conhecidos da vida pessoal, para descrever os
movimentos das ações e cotas. Pedir melhores índices de bem-estar
nacional soa excêntrico. Mas não deveria, porque precisamos de dados
baseados em coisas que importam para o que nossas vidas realmente são.
Questões como ciúme, tédio, beleza, frustração ou raiva moldam nossos
destinos tanto — ou mais — quanto as fortunas do 3M (Minnesota Mining
Company) e as outras 29 corporações cujos negócios formam as bases para
calcular os números do Dow Jones.
A grande questão é como podemos conseguir uma
diversidade de indicadores de nossos painéis nacionais. Não estamos
sugerindo a supressão do Dow Jones Industrial Average. O que queremos
ver é a ascensão de outros (e igualmente importantes) índices que
reportam regularmente elementos da vida psicológica e sociológica, e que
poderia fazer parte da consciência de pessoas sérias e pensantes. Hoje,
o governo não pode ser recompensado ou punido pelo impacto que suas
políticas têm na frequência das brigas domésticas porque brigas não são
registradas. Quando medimos coisas — e damos aos números uma transmissão
pública periódica — começamos o longo processo de fazer coletivamente
algo sobre elas.
Não sabemos hoje como serão os negócios do futuro.
Como em 1975, ninguém poderia descrever a atual essência corporativa do
Facebook ou do Google. Mas sabemos a direção que precisamos tomar:
precisamos do ímpeto e da inventividade do capitalismo para resolver os
grandes e profundos problemas da vida. Isto irá oferecer uma saída das
falhas e tristezas que estão presentes no capitalismo hoje.
Resumidamente, o problema é que nós gastamos recursos em coisas
desimportantes. E somos esbanjadores, no fim das contas, porque nos
falta autoconhecimento, porque estamos consumindo apenas para nos
distrair ou acalmar ansiedades ou em uma busca vaidosa por status e
posses.
Se pudéssemos encaminhar nossas necessidades mais
profundas mais diretamente, nosso materialismo seria refinado e contido,
nosso trabalho seria mais significativo e nossos lucros seriam mais
nobres. Esse é o futuro ideal do capitalismo.
No momento tendemos a achar que o objetivo
definitivo dos negócios é gerar lucro. Estimamos o sucesso de companhias
realmente apenas em termos financeiros: quanto mais lucrativas forem,
melhor os negócios.
Na utopia, negócios teriam que ser, claro,
lucrativos. Mas o sucesso de um negócio seria principalmente estimado em
termos de sua contribuição para o bem geral. O objetivo não seria
maximizar os lucros, mas maximizar a quantidade de benefícios que
poderiam ser feitos, enquanto continuaria a ser lucrativo. Na utopia,
seria entendido que o fim adequado dos negócios é o bem.
Valor: A
extrema-direita, e até o neonazismo, tem ganhado espaço em muitas partes
do mundo. Mas, ao mesmo tempo, o acesso à arte é cada vez maior. São
valores que não parecem combinar. Será que a arte falhou?
De Botton: A arte falhou
porque não a levamos suficientemente a sério. Essa é a mensagem do
livro. Nós a tratamos como uma coisa bela que fazemos no fim de semana.
Não permitimos que a arte seja parte de nossas vidas da devida maneira.
Valor: O sr. está feliz com os resultados da School of Life no Brasil? Como sua percepção sobre o país tem evoluído?
De Botton: O Brasil é um
país maravilhoso em milhões de sentidos. Mas é terrivelmente,
terrivelmente afetada pela corrupção — e pela falência de suas
instituições; os tribunais, as leis que regulam os negócios, os
mecanismos de governo. Tenho feito negócios no Brasil e é muito, muito
penoso. Não deveria ser assim. Esse é um dos maiores países do mundo,
mas é como um gigante com alguns problemas que precisam ser resolvidos
logo. A School of Life ainda está em um estágio recém-nascido no Brasil,
mas espero que se desenvolva apropriadamente muito em breve. (Bruno Yutaka Saito/Valor Econômico)
"Arte como Terapia".
Alain de Botton e John Armstrong.
Trad.: Denise Bottmann.
Intrínseca,
240 págs., R$ 49,90
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REPORTAGEM Por Bruno Yutaka Saito | De São Paulo
Fonte: Valor Econômico online, 05/12/2014
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