Card. Jorge Mario Bergoglio*
Numa tira de banda desenhada publicada recentemente, uma criança
contava a uma amiga que, para este Natal, tinha pedido aos seus pais
que não lhe oferecessem presentes, mas antes "espírito natalício", e
que eles tinham ficado desconcertados, sem entender nem saber o que
fazer. A mensagem pareceu-me muito acutilante, e certamente coloca-nos a
pergunta: o que é o espírito natalício?
Dá a impressão de que para responder haveria que fazer uma
corrida de obstáculos através de muitos impedimentos, entre outros os
que nos impõe o acelerado consumismo de fim de ano. Todavia, a pergunta
aí está. Ao longo dos tempos, a arte procurou expressá-lo de mil
maneiras e conseguiu acercar-nos bastante do significado desse espírito
natalício. Quantos contos de Natal nos oferecem histórias que nos
aproximam dele! As belíssimas narrativas de Andersen. Tillich, Lenz,
Böll, Dickens, Gorki, Hamsun, Hesse, Mann e tantos outros conseguiram
abrir horizontes de significação que nos fazem entrar por este caminho
de compreensão do mistério; contudo, não são suficientes.
E, no entanto, é precisamente uma narrativa, uma narrativa
histórica, que nos abre as portas ao real significado do "espírito
natalício". Uma narrativa simples e precisa. Diz assim: «Por aqueles
dias, saiu um édito da parte de César Augusto para ser recenseada toda a
terra.Este recenseamento foi o primeiro que se fez, sendo Quirino
governador da Síria. Todos iam recensear-se, cada qual à sua própria
cidade. Também José, deixando a cidade de Nazaré, na
Galileia, subiu até à Judeia, à cidade de David, chamada Belém, por ser
da casa e linhagem de David, a fim de se recensear
com Maria, sua esposa, que se encontrava grávida. E, quando eles ali se
encontravam, completaram-se os dias de ela dar à luz e
teve o seu filho primogénito, que envolveu em panos e recostou numa
manjedoura, por não haver lugar para eles na hospedaria» (Lucas 2,1-7).
Trata-se de uma narrativa histórica, simples e com marcarda
referência ao caminho percorrido pelo povo de Israel. Quando Deus
escolheu o seu povo e começou a caminhar com ele, fez-lhe uma promessa;
não lhe vendeu ilusões, mas, nos seus corações, semeou a esperança;
essa esperança nele, Deus que se mantém fiel pois não pode desdizer-se a
si mesmo; deu-lhes essa esperança que não defrauda. Baseados na
narração acima transcrita, os cristãos estão convictos de que essa
esperança se consolidou. Consolida-se e lança-nos para diante, para o
momento do reencontro definitivo. Assim se manifesta o "espírito
natalício": promessa que gera esperança, se consolida em Jesus e se
projeta, também na esperança, até à segunda vinda do Senhor.
A narrativa citada continua, contando a cena dos pastores, a
aparição dos anjos e o cântico que é mensagem para todos: «Glória a
Deus nas alturas, e paz na terra aos homens por Ele amados». A
esperança consolidada não só aponta para o futuro, como também extravasa
o mesmo presente e expressa-se em desejos de paz e fraternidade
universal, que, para se converterem em realidade, hão de se enraízar em
cada coração.
De cada vez que leio a narrativa e contemplo a cena, penetrando
neste espírito de esperança e de paz, penso em todos os homens e
mulheres crentes e não crentes, que percorrem o caminho da vida e
semeiam muitas procuras na esperança ou na desesperança, e brota em mim
o desejo de me aproximar, de desejar paz, muita paz, e também de a
receber. Desejar e receber essa paz que definitivamente possibilita que,
no meio de tantas neblinas e noites, possamos reconhecer-nos e
reencontrar-nos como irmãos, reconhecermos no nosso rosto que nos dá o
reflexo de sermos criados à imagem de Deus. Será isto parte do espírito
natalício que aquela criança da banda desenhada pedia aos seus pais?
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*Card. Jorge Mario Bergoglio (papa Francisco)
In "La Nacion", 23.12.2011
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 01.12.2014
In "La Nacion", 23.12.2011
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 01.12.2014
Fonte: http://www.snpcultura.org/
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