Arnaldo Jabor
Com a corrupção a carne apodrece, a fruta definha e o alimento se espedaça em nossas mãos.
A corrupção enfeia nossos corpos e apaga a luz que brilharia em nossas
almas, com a corrupção ninguém faz uma casa de boas pedras, com a
corrupção ninguém pinta um paraíso no muro de uma igreja, nenhuma
pintura será feita para durar nem para brilhar diante de nossos olhos,
com a corrupção seu pão cada vez mais será de farrapos dormidos, seu pão
será seco como papel sem trigo da montanha e sem nutritiva farinha, com
a corrupção ninguém encontra um bom sítio para fazer sua casa, os
tecelões são afastados de seus teares, a corrupção embota a agulha nas
mãos das donzelas e desbota a graça dos tecidos, Dante não nasceu da
corrupção, nem Piero della Francesca, nem Giotto, a corrupção enferruja o
cinzel do escultor e as estatuas não se erguem, o azul vira um câncer
na corrupção e não se bordam de ouro as vestes púrpuras, a corrupção
apunhala a criança no ventre e a esmeralda não será lapidada e mata o
prazer dos jovens amantes deitando entre seus corpos paralisados na
cama, cadáveres sentarão na mesa dos banquetes sob as ordens da
corrupção, a corrupção é obesa, a corrupção cria esposas desprezadas se
consumindo e amantes cobertas de pérolas e juras de amor, a corrupção
cria súbita dignidade em tribunais, cria ladrões de olhos em brasa,
dedos espetados, uivos de falsas virtudes, negando os contratos de
gaveta, os recibos falsos, os laranjas desdentados nas portas de
empresas inexistentes. A corrupção provoca brados de honradez, socos nas
mesas, babas indignadas nas negações em tribunais, hipócritas lágrimas
de esguicho, punhos batidos no peito e clamores a Deus. A corrupção se
sente superior à ridícula moralidade de classe media. A corrupção tem
uma única vontade: vingar-se de inimigos, cobrar lealdade dos
seguidores, exigir pagamentos de propina em dia.
A corrupção cria firmas sem dono, sem obras, vagando num deserto
jurídico e contábil que leva ao caos proposital, a corrupção aumenta a
amizade entre as famílias de safados, cria os cálidos abraços, os
sussurros de segredo nos cantos das varandas, o piscar de olhos
matreiros, as cotoveladas cúmplices, os charutos comemorativos, vastos
jantares repletos de moquecas e gargalhadas, piadas, dichotes,
sacanagens jucundas.
A corrupção valoriza a norma castiça da língua, palavras que dormem em
estado de dicionário. A corrupção traz de volta interjeições e adjetivos
raros: "ilibado", "despautério", "infâmias", "aleivosias"... A
corrupção é o paraíso dos advogados, com ternos brilhantes, sisudos
semblantes, liminares na cinta, serenidade cafajeste, 'chicanas'
decoradas, diplomas comprados.
Com a corrupção, malas pretas voam em todas as direções, os dólares
flutuam nos céus estrelados, as luas são sempre minguantes, os rostos
nunca mostram o que pensam, as gargalhadas soam como latidos, as bocas
salivam, os punhais saem das bainhas, os carros atropelam, as finas
cordas apertam os pescoços, os assassinos se fartam, os olhos do povo
olham impotentes. A corrupção confunde, é um labirinto, uma grande
aranha em sua teia, a corrupção cria firmas em sanfona, uma dentro da
outra, subsidiárias sem obras, vagando num labirinto jurídico e contábil
que leva a um caos indecifrável, pois o emaranhado de roubalheiras
dificulta apurações. No imaginário brasileiro, a corrupção tem uma aura
heroica. São heranças da colônia, quando era belo roubar a Coroa. A
corrupção é a mola mestra do atraso. A corrupção mostra que os lírios
que apodrecem fedem mais que as ervas daninhas (Shakespeare). A
corrupção desenha as caras deformadas de políticos, as barrigas, a
gomalina dos cabelos, a boçalidade dos discursos, tudo compondo um
estafermo fabricado com detritos de vergonhas passadas, cérebros
encolhidos, olhos baços, irresponsabilidades fiscais, municípios
apodrecidos, decapitações, ônibus em fogo. A corrupção escolhe seus
peões entre os mais espertos dentre os mais rombudos e boçais. A
corrupção transforma a estupidez em uma estranha forma de inteligência,
uma rara esperteza para golpes sujos e sacos-puxados. A corrupção é
fabricada entre angus e feijoadas do interior, em favores de
prefeituras, em pequenos furtos municipais, em conluios perdidos nos
grandes sertões. A corrupção é a torta escultura feita de palha e barro,
de gorjetas, de sobras de campanha, de canjica de aniversários e água
benta de batismos. A corrupção explica o País, pois tem raízes e
tradição: avô ladrão, bisavô negreiro e tataravô degredado. A corrupção
durante quatro séculos criou capitanias, igrejas, congressos, golpes e
tomadas de poder. A corrupção tem um vago sentimento de poesia
brasileira. A corrupção para muitos se julga revolucionária, roubando
para um futuro imaginário e mentiroso, para enganar otários cheios de
esperança. A corrupção é um rabo de lagarto que sempre se recompõe,
renasce quando cortado.
A corrupção cria, esculpe, organiza as imposturas, as perfídias, os
sepulcros caiados, os beijos de Judas, os abraços de tamanduá, as
lágrimas de crocodilo.
(*) Com gratidão a Ezra Pound por seu
Canto XLV - A Usura.
Tradução de Augusto de Campos
Com usura nenhum homem tem casa de boa pedra
blocos lisos e certos
que o desenho possa cobrir;
com usura
nenhum homem tem um paraíso
pintado na parede de sua igreja
harpes et luthes
ou onde a virgem receba a mensagem
e um halo se irradie do entalhe;
com usura
ninguém vê Gonzaga, seus herdeiros e concubinas
nenhum quadro é feito para durar e viver conosco,
mas para vender, vender depressa;
com usura, pecado contra a natureza,
teu pão é mais e mais feito de panos podres
teu pão é um papel seco,
sem trigo do monte, sem farinha pura.
Com usura o traço se torna espesso
com usura não há clara demarcação
e ninguém acha lugar para sua casa.
Quem lavra a pedra é afastado da pedra
O tecelão é afastado do tear.
COM USURA
a lã não chega ao mercado
a ovelha não dá lucro com a usura
A usura é uma praga, a usura
embota a agulha nos dedos da donzela
tolhe a perícia da fiandeira. Pietro Lombardo
não veio da usura
Duccio não veio da usura
nem Pier della Francesca, nem Zuan Bellini veio
nem usura pintou La Callunia.
Angelico não veio da usura; Ambrogio Praedis não veio,
Nenhuma igreja de pedra lavrada, com a inscrição:
Adamo me fecit.
Nenhuma St. Trophime
Nenhuma Saint Hilaire.
A usura enferruja o cinzel
Enferruja a arte e o artesão
Rói o fio no tear.
Mulher alguma aprende a urdir o ouro em sua trama;
A usura é um câncer no azul; o carmesim não é bordado,
A esmeralda não encontra um Memling.
A usura mata a criança no ventre
Detém o galanteio do moço
Ela
trouxe paralisia ao leito, jaz
entre noivo e noiva
CONTRA NATURAM
Putas para Elêusis
cadáveres no banquete
a comando da usura.
Canto XLV - A Usura.
Tradução de Augusto de Campos
Com usura nenhum homem tem casa de boa pedra
blocos lisos e certos
que o desenho possa cobrir;
com usura
nenhum homem tem um paraíso
pintado na parede de sua igreja
harpes et luthes
ou onde a virgem receba a mensagem
e um halo se irradie do entalhe;
com usura
ninguém vê Gonzaga, seus herdeiros e concubinas
nenhum quadro é feito para durar e viver conosco,
mas para vender, vender depressa;
com usura, pecado contra a natureza,
teu pão é mais e mais feito de panos podres
teu pão é um papel seco,
sem trigo do monte, sem farinha pura.
Com usura o traço se torna espesso
com usura não há clara demarcação
e ninguém acha lugar para sua casa.
Quem lavra a pedra é afastado da pedra
O tecelão é afastado do tear.
COM USURA
a lã não chega ao mercado
a ovelha não dá lucro com a usura
A usura é uma praga, a usura
embota a agulha nos dedos da donzela
tolhe a perícia da fiandeira. Pietro Lombardo
não veio da usura
Duccio não veio da usura
nem Pier della Francesca, nem Zuan Bellini veio
nem usura pintou La Callunia.
Angelico não veio da usura; Ambrogio Praedis não veio,
Nenhuma igreja de pedra lavrada, com a inscrição:
Adamo me fecit.
Nenhuma St. Trophime
Nenhuma Saint Hilaire.
A usura enferruja o cinzel
Enferruja a arte e o artesão
Rói o fio no tear.
Mulher alguma aprende a urdir o ouro em sua trama;
A usura é um câncer no azul; o carmesim não é bordado,
A esmeralda não encontra um Memling.
A usura mata a criança no ventre
Detém o galanteio do moço
Ela
trouxe paralisia ao leito, jaz
entre noivo e noiva
CONTRA NATURAM
Putas para Elêusis
cadáveres no banquete
a comando da usura.
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Fonte: Estadão online, 31/12/2014
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