FERNANDO LUÍS SCHÜLER*
Quanto de concentração de riqueza é demais? A resposta é: não sabemos. Por isso, o desafio do século XXI é combater a pobreza, não a desigualdade
*
Imagine
que Jean Valjean, o célebre personagem de Victor Hugo, em Os
miseráveis, tivesse tido outro destino. Prestes a furtar o pedaço de pão
que desencadearia toda a história, dá de cara com uma máquina do tempo.
É só entrar na máquina, apertar um botão e escapar daquilo tudo. Ele
gosta da ideia. A máquina lhe dá duas opções: desembarcar em 1980 ou em
2014. “Qual é a diferença?”, pergunta Valjean. A diferença é que, em
2014, a miséria terá caído à metade do que fora em 1980; em compensação,
os ricos concentrarão o dobro da riqueza. Valjean fica confuso, mas
precisa escolher. Em qual dos mundos, pergunta a máquina, ele gostaria
de desembarcar?
Não
é difícil imaginar qual seria a resposta de Valjean ou de qualquer
francês muito pobre, dos séculos XVIII ou XIX. Resposta diferente parece
se depreender de um outro francês, Thomas Piketty, que passou pelo Brasil agora em novembro, para o lançamento de seu livro, O capital no século XXI (Piketty
palestrou na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da
USP, num evento com apoio de ÉPOCA e da editora Intrínseca). Seu foco é
mostrar que a desigualdade de renda e a riqueza têm aumentado de maneira
contínua, ao menos no mundo desenvolvido, nas últimas três ou quatro
décadas – e que isso significa uma má notícia para o planeta.
O livro vai além do debate econômico. Ele desenha uma resposta, pouco estruturada, é verdade, sobre o que define a justiça social. Piketty desempenha um duplo papel, de economista e filósofo da justiça, e isso explica um pouco o enorme interesse despertado por seu trabalho.
O Piketty economista refuta a tese de seu colega de profissão Simon Kuznets (1901-1985), segundo a qual, após um período de acumulação de capital e crescimento das desigualdades, o desenvolvimento capitalista assistiria a uma fase de convergência de renda entre os extremos da pirâmide social. A igualdade seria, para Kuznets, a consequência previsível do maior acesso à educação, disseminação da tecnologia e pressão por direitos sociais. Foi assim nos Estados Unidos, na primeira metade do século XX. O ponto é que essa tendência foi invertida, a partir do final dos anos 1970, e isso deu margem ao diagnóstico de Piketty.
O Piketty filósofo define-se a partir de uma suspeita. Afirma que, quando a desigualdade cresce acima de um nível “x”, há uma clara ameaça à justiça social. Sociedades muito desiguais corroem a ideia de meritocracia e equidade no acesso a oportunidades, valores centrais na democracia. Ele não define em que consiste o ponto “x”. Mesmo assim, acha que os ricos pagam menos tributos do que deveriam. Sugere criar um imposto global sobre a riqueza e, nem bem chegou ao Brasil, já sugeriu aumentar o nosso imposto sobre herança. Suas opiniões têm um viés bastante claro. Ele parece acreditar que o governo, se arrecadar mais, fará um bom trabalho em favor dos mais pobres.
A
tese de Piketty daria pano para manga. Não apenas como conceito, mas no
plano das evidências. Será mesmo que o crescimento da fortuna dos mais
ricos reduz as oportunidades abertas aos mais pobres? A sociedade se
move como um jogo de soma zero, em que o ganho de alguns leva à derrota
de outros? Piketty não apresenta nenhuma evidência. Seu ponto é mostrar
que a desigualdade cresceu, no mundo rico, e sugerir que isso não é bom
para os valores da justiça.
O argumento não deixa de ser sedutor. O planeta foi varrido, nos
últimos anos, por movimentos de massa, com demandas difusas em favor da
justiça, não raro associadas à crítica aos “super-ricos” e ao
famigerado “1%”. O livro de Piketty joga lenha nessa fogueira. Funciona
como uma espécie de manifesto acadêmico de que, sim, a turma do Occupy
Wall Street tinha lá alguma razão.
Afora expressar um sentimento real, neste mundo pós-crise financeira, será que a tese de Piketty responde adequadamente ao problema da justiça, em nossa época? E mais: o mundo por ele descrito é real, em escala global? Ou apenas em alguns países em que ele concentrou sua pesquisa (EUA, Japão, Alemanha, França e Reino Unido)?
É difícil responder a essas perguntas sem considerar a mudança social ocorrida em boa parte do mundo em desenvolvimento – 650 milhões de pessoas escaparam da pobreza extrema, nas últimas três décadas. Na América Latina, a pobreza recuou de 48%, no início dos anos 1990, para 28%, nesta década. A “periferia” do sistema cresceu mais e de modo mais equânime que o mundo rico, para desgosto dos que gastaram seu tempo, na última década, amaldiçoando a tal “globalização”.
Afora expressar um sentimento real, neste mundo pós-crise financeira, será que a tese de Piketty responde adequadamente ao problema da justiça, em nossa época? E mais: o mundo por ele descrito é real, em escala global? Ou apenas em alguns países em que ele concentrou sua pesquisa (EUA, Japão, Alemanha, França e Reino Unido)?
É difícil responder a essas perguntas sem considerar a mudança social ocorrida em boa parte do mundo em desenvolvimento – 650 milhões de pessoas escaparam da pobreza extrema, nas últimas três décadas. Na América Latina, a pobreza recuou de 48%, no início dos anos 1990, para 28%, nesta década. A “periferia” do sistema cresceu mais e de modo mais equânime que o mundo rico, para desgosto dos que gastaram seu tempo, na última década, amaldiçoando a tal “globalização”.
Os dados são conhecidos, mas não parecem muito relevantes para Piketty.
Sua preocupação consiste em que os 1% mais ricos dos Estados Unidos,
desde o início dos anos 1980, aumentaram sua participação de 10% para
pouco mais de 20% na renda do país. Em sua perspectiva, isso define
melhor a natureza do capitalismo, no século XXI, do que investigar se
houve uma melhora na condição econômica das pessoas com menor renda. E
houve: 71% daqueles que pertenciam à metade mais pobre das famílias
americanas, no final dos anos 1970, melhoraram sua posição em relação a
seus pais, e 45% delas subiram mais de 20 pontos, numa escala de renda 1
a 100. Isso significa mobilidade social. É um bom percentual? Seria
melhor se voltássemos ao nível de impostos dos anos 1970? Que efeitos
isso produziria?
Observemos o caso da China. Em meados dos anos 1980, os 1% de chineses
mais ricos detinham 5% da riqueza. No início da presente década, essa
fatia passou de 10%. No mesmo período, a pobreza absoluta recuou em 45%.
O crescimento chinês representou uma troca entre redução da pobreza e
aumento da desigualdade. Valeria perguntar ao cidadão chinês médio se
ele gostaria de voltar no tempo e trilhar um caminho diferente. A mesma
pergunta poderia ser feita a um cidadão indiano ou brasileiro. No
Brasil, à parte a redução acentuada da pobreza, também a desigualdade
diminuiu. O coeficiente Gini, um medidor de desigualdade, passou de 0,58
para 0,52. Há muitos tipos de capitalismo, assim como muitas formas de
definir justiça social. A assimetria de renda no mundo rico é apenas uma
variável.
Piketty alinha-se aos que concebem a justiça como vinculada à noção abstrata de igualdade de renda. A justiça não se define, como argumentou o economista indiano Amartya Sen, pela oferta de meios para que cada um desenvolva suas capacidades, pela educação e pela garantia de direitos. Tampouco, como argumentou o filósofo americano John Rawls (1921-2002), pela garantia de ganhos maiores aos menos favorecidos, ao longo do tempo, mesmo que isso implique fazer crescer a desigualdade.
O mérito da tese de Rawls foi desvincular a justiça da exigência de igualdade econômica. A ideia é simples: ninguém renunciaria a um padrão de renda maior apenas para que a diferença entre a sua renda e a de seu vizinho mais rico fosse um pouco menor. Ninguém fará isso escolhendo, do ponto de vista de Jean Valjean, ser alguém menos favorecido socialmente. Perseguir a igualdade econômica como uma meta independente tende a levar a uma situação em que todos perdem. O ressentimento social, por vezes travestido de ideologia, pode levar a escolhas desse tipo. Cada um quer desenvolver seu próprio plano de vida, quer estudar e levar à frente sua vocação. Isso é mais importante do que se preocupar com o tamanho da fortuna de Mark Zuckerberg ou Warren Buffett.
Frequentemente criticamos a desigualdade social quando estamos, na verdade, tocados pela pobreza. Aqui surge o maior desafio: somos a primeira geração humana que pode vislumbrar a erradicação global da miséria. Restam ainda em torno de 1 bilhão de seres humanos vivendo com menos de US$ 1,25 ao dia. A ONU incluiu, em suas Metas para o Desenvolvimento Sustentável, o fim da miséria no planeta até 2030. Talvez seja excesso de otimismo, talvez não. Para quem viveu no século XIX, a ideia de pôr um fim à escravidão também pode ter soado como utopia. Não foi o caso de Joaquim Nabuco. Ele definiu a abolição como o grande desafio ético de seu tempo e pôs mãos à obra. O desafio ético deste século XXI é o fim da pobreza. Quiçá estejamos à altura da nossa tarefa.
Piketty alinha-se aos que concebem a justiça como vinculada à noção abstrata de igualdade de renda. A justiça não se define, como argumentou o economista indiano Amartya Sen, pela oferta de meios para que cada um desenvolva suas capacidades, pela educação e pela garantia de direitos. Tampouco, como argumentou o filósofo americano John Rawls (1921-2002), pela garantia de ganhos maiores aos menos favorecidos, ao longo do tempo, mesmo que isso implique fazer crescer a desigualdade.
O mérito da tese de Rawls foi desvincular a justiça da exigência de igualdade econômica. A ideia é simples: ninguém renunciaria a um padrão de renda maior apenas para que a diferença entre a sua renda e a de seu vizinho mais rico fosse um pouco menor. Ninguém fará isso escolhendo, do ponto de vista de Jean Valjean, ser alguém menos favorecido socialmente. Perseguir a igualdade econômica como uma meta independente tende a levar a uma situação em que todos perdem. O ressentimento social, por vezes travestido de ideologia, pode levar a escolhas desse tipo. Cada um quer desenvolver seu próprio plano de vida, quer estudar e levar à frente sua vocação. Isso é mais importante do que se preocupar com o tamanho da fortuna de Mark Zuckerberg ou Warren Buffett.
Frequentemente criticamos a desigualdade social quando estamos, na verdade, tocados pela pobreza. Aqui surge o maior desafio: somos a primeira geração humana que pode vislumbrar a erradicação global da miséria. Restam ainda em torno de 1 bilhão de seres humanos vivendo com menos de US$ 1,25 ao dia. A ONU incluiu, em suas Metas para o Desenvolvimento Sustentável, o fim da miséria no planeta até 2030. Talvez seja excesso de otimismo, talvez não. Para quem viveu no século XIX, a ideia de pôr um fim à escravidão também pode ter soado como utopia. Não foi o caso de Joaquim Nabuco. Ele definiu a abolição como o grande desafio ético de seu tempo e pôs mãos à obra. O desafio ético deste século XXI é o fim da pobreza. Quiçá estejamos à altura da nossa tarefa.
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Fonte: REvista Época online, 14/12/2014
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