Há um esbanjamento de despudor e ausência de autocrítica, além da opacidade do governo
Uma grave crise funcional do Estado eleva seus custos de maneira intolerável
O governo só não cai por falta de
colo hospitaleiro. Ainda bem, pois escasseiam robustas lideranças
democráticas capazes de desmantelar, por simples presença, arranjos
contra a legalidade. O Legislativo distrai-se em conquistas predatórias
ao apagar das luzes do atual mandato. Os movimentos sociais organizados,
outrora valentes escudeiros de valores universais, empalideceram e a
multidão de siglas que desfilam em conclamações lembra os “blocos do eu
sozinho”. Em São Paulo, estado volta e meia em conflito com o resto do
País, a direita brega patrocina intervenções surrealistas sem acordo
prévio sobre o propósito da perturbação do trânsito. Augustos
integrantes da judicatura disputam o horário televisivo com escaramuças
entre bandos de traficantes. Há um esbanjamento de despudor, ausência de
autocrítica, intermináveis confabulações pré-ministeriais, além da
conhecida opacidade do governo. Tudo a deixar a leve impressão de que os
verdadeiros espetáculos em um só ato, ou vários, estão em exibição
alhures. A rotina pós-eleitoral, que deveria ser pacífica, está em
ebulição à revelia das autoridades recém-eleitas.
A insaciável antropofagia brasileira
converteu o “impedimento”, mecanismo de destituição de autoridades
públicas, em alavanca para a nomeação de ministros. Está aí o
surpreendente novo ministro da Fazenda que não me deixa mentir, embora
condenado a ser, ele próprio, deglutido: pelos conservadores, por ser
Joaquim Levy de menos, pela esquerda, por sê-lo de mais. Em qualquer
caso, é improvável que reconquiste a identidade pretérita. Ele e os
demais figurantes em processo de escolha governamental estão sujeitos a
ampla rejeição ao simples anúncio de que estão cogitados para escalação.
A fonte escaladora não transfere segurança, mas doses da mesma
controvérsia de que padece no momento. Ninguém pode prenunciar qual a
face do governo em, digamos, seis meses.
A antropofagia continua na transformação
do saudável pluralismo organizacional democrático em máfias de
concorrência coordenada, com regras e procedimentos estabelecidos. É
adulto de anos o entrelaçamento entre competidores privados e nichos da
burocracia pública e ainda ignorada a extensão do sistema extrativista
assentado em extorsão e suborno. Hoje é a Polícia Federal que determina a
pauta relevante da política, precisamente pela elevada taxa de
imprevisibilidade quanto aos danos políticos e econômicos gerados pelas
investigações. A partidarização pretendida pela oposição, na torcida
pela declaração oficial de que o Partido dos Trabalhadores está
contaminado em estágio terminal pelo vírus da corrupção, não
prevalecerá. Já investigações paralelas começam a revelar alguns dos
escândalos a macular o longo predomínio tucano no estado de São Paulo, e
sabe-se que a era Aécio Neves, em Minas Gerais, não foi um primor de
lisura. Governo, oposição, Legislativo, Judiciário, grupos de pressão
eficazes (OAB, CNBB, jornalismo crítico sensato) terão de lidar, por bom
tempo, com um problema nada miúdo.
Não se trata de
advogar uma anistia generalizada pela comprovação da universalidade do
delito. A oportunidade é singular demais para exaurir-se na
contabilidade de malfeitos partidários. Há uma grave crise funcional do
Estado brasileiro que eleva de maneira intolerável os custos do governo e
do crescimento econômico. Consequentemente, aqui se joga com a
continuidade ou interrupção da distribuição iníqua dos sacrifícios
inerentes à trajetória de países emergentes. Os custos excessivos, o
sobrefaturamento, as propinas e mimos distribuídos não são, nem apenas
nem principalmente, uma agressão a acionistas e fideístas dos bons
propósitos de empresas gigantes, grandes ou médias.
Os recursos ilegalmente extraídos do
Tesouro Nacional, por empresários ou servidores públicos, apontam para
uma das habilidades antropofágicas de transformar o progresso material
em miséria social. Sim, os brasileiros poderiam usufruir um nível de
bem-estar superior se o Estado não fosse balcanizado entre grupos de
burocratas e máfias empresariais de concorrência controlada.
Se existissem países sem solução, o Brasil
pertenceria, talvez, ao grupo. Derrotados eleitorais tentam tornar sem
efeito a derrota. Poucos os ouvem, mas outros, com relativo poder
causal, ameaçam colocar sob suspeição o mandato dos vencedores. Esses
escolhem ignorar a possibilidade de que, segundo a lei vigente e as
conclusões da Polícia Federal, venha a ser impossível governar. Isso,
óbvio, se as conclusões forem aceitas tal e qual pelo Ministério
Público. Bem verdade ser praticamente impossível que o País pare de
funcionar e que a fantástica quantidade de obras em andamento, das quais
depende o futuro da população brasileira, seja interditada. Mas há que
resolver qual o destino dos implicados nos ilícitos. Livres é que não
poderão ficar.
Igualmente improvável que as eleições de
2014 sejam anuladas. Seria indigesto mesmo para alguns bons
antropófagos. Mas é certo também que o País não será governado segundo o
plano original e o Estado não obrará como dantes. Pois governar não se
resume a nomear ministros. Tampouco a exigir que prazos sejam cumpridos.
Mais do que a misteriosa reforma política, urge uma revisão estrutural
no modo de operação do Estado brasileiro, em seus órgãos de controle não
só a posteriori, mas de acompanhamento. E se o governo paira,
sem liderança política para além da administrativa, seria cautelar ser
informado de que ninguém está livre da antropofagia.
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Texto por Wanderley Guilherme dos Santos
Fonte: Carta Capital online, 30/12/2014
Imagem: Saturno devorando um filho, Francisco de Goya
Imagem: Saturno devorando um filho, Francisco de Goya
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