Em seu novo livro, 'Waking Up' ('Acordando', em tradução livre), Sam Harris demonstra que a espiritualidade é a expansão da consciência, algo simples, natural e ordinário (Reprodução/VEJA)
Para o filósofo americano Sam Harris é possível ter experiências espirituais sem passar pelo caminho da religião. Nesta entrevista ao site de VEJA, o autor explica como isso acontece, por que o ceticismo científico é essencial para alcançar esse estado de felicidade e amor sem limites e indica técnicas para chegar até ele
Ao caminhar sobre a montanha onde Jesus proferiu seu sermão das
bem-aventuranças, o filósofo americano Sam Harris foi invadido por uma
profunda felicidade, que silenciou seus pensamentos. A sensação de estar
conectado ao cosmos e sua verdade perseguiu o escritor durante aquele
verão, enquanto refazia os passos da figura central do cristianismo. Se
Harris não fosse o autor do livro A Morte da Fé, de 2004, e um dos principais defensores de uma corrente chamada Novo Ateísmo,
ele provavelmente diria que vivenciou uma experiência de transcendência
religiosa. Entretanto, para ele, aqueles dias não passaram de uma
expansão da consciência, natural e ordinária. Uma vivência espiritual,
mas não religiosa.
Para Harris, que também é doutor em neurociência pela Universidade da
Califórnia, nos Estados Unidos, desligar a espiritualidade das
religiões é o grande passo que faltava às doutrinas seculares. Em seu
novo livro, Waking Up (Despertando), recém-lançado nos
Estados Unidos, o filósofo mostra que é possível chegar à
transcendência e atingir a mais plena felicidade sem se aproximar da
essência divina. Mais que isso, indica técnicas, como meditação,
respiração e até o uso de alucinógenos, que facilitam o percurso até a
espiritualidade dos ateus.
“A espiritualidade deve ser distinta da religião. Pessoas de todos os
credos e aquelas que não têm fé alguma têm os mesmos tipos de
experiências espirituais. Um princípio mais profundo deve estar em
funcionamento”, afirma Harris.
É esse “diamante escondido” que o filósofo pretende arrancar das
religiões, usando para isso os últimos achados científicos sobre o
cérebro e, principalmente, seu ceticismo ferrenho. Harris acredita
apenas no que pode ser provado por experimentos científicos e, portanto,
alma, Deus ou revelações da essência superior não entram na
espiritualidade que defende em seu livro. Nesta entrevista, concedida ao
site de VEJA, Harris explica o que é essa nova espiritualidade e mostra
como a ciência é o caminho fundamental para nos alçar a esse estado de
felicidade.
Outros títulos:
O ESPÍRITO DO ATEÍSMOEm 2006, o filósofo francês André Comte-Sponville, ex-professor da Sorbonne e autor de uma dezena de livros traduzidos em 24 línguas, escreve esse livro para mostrar como aqueles que não acreditam em Deus podem vivenciar a espiritualidade. De acordo com o autor, esse é um atributo que nos difere dos demais animais e possibilita a contemplação da arte ou da natureza. Em suas páginas, Sponville explica como essa comunhão com o absoluto, inexplicável, condiz com o materialismo, o racionalismo e o naturalismo.
GOD ON YOUR OWN
Também em 2006, o ex-monge Joseph Dispenza ensinou em seu livro God on Your Own (Deus do seu jeito, em tradução livre) como alcançar a espiritualidade fora das religiões. Seu objetivo é mostrar o caminho até a fonte direta da transcendência, sem dogmas, regras ou doutrinas.
LIVING WITHOUT GOD
Outro “novo ateísta” que publicou um livro sobre como chegar ao absoluto sem Deus foi Ronald Aronson, professor de história das ideias na Universidade Estadual de Wayne, nos Estados Unidos. Em seu livro Living Without God (Vivendo sem Deus, em tradução livre), lançado em 2008, o americano substitui a espiritualidade pela moral e responsabilidade que temos pelo planeta, pelo bem-estar alheio e pela política.
Por que um ateu resolveu escrever sobre espiritualidade? Porque
transcendência e amor incondicional são algumas das experiências mais
importantes que as pessoas têm em suas vidas. Mas a maioria delas
interpreta esses episódios pela lente da religião. Isso não faz sentido,
porque cristãos, muçulmanos, judeus, budistas e ateus têm o mesmo tipo
de experiências. Então sabemos que nenhuma dessas doutrinas religiosas
incompatíveis pode ser a melhor explicação para seu significado.
Como funciona essa base escondida nas religiões? A
ciência não consegue localizar no cérebro uma região específica onde o
eu se localiza, como fazemos com a memória ou a raiva. A ideia de que há
um espaço no cérebro onde o eu, ou nossa consciência, está escondida
não faz nenhum sentido anatômico ou científico. Assim, se a consciência
não é um espaço delimitado, ela pode ser alterada ou expandida. A
espiritualidade é essa transcendência do eu.
Se a fé revelou a espiritualidade, por que desligar essa experiência da alma ou de Deus?
Em sua origem, espírito vem do latim spiritus, que significa respiração ou sopro. Por volta do século XIII, essa palavra foi confundida à crença de almas e fantasmas. No entanto, não há qualquer evidência que alma ou espíritos existam — mas podemos estar certos de que a consciência existe. Qualquer que seja sua relação com o mundo físico, a consciência é a base de tudo o que experimentamos. Não importa se estamos tomando um café ou tendo uma visão de Jesus, estar consciente é a condição prévia para qualquer experiência do presente. Na minha visão, espiritualidade é um processo de descoberta de algumas coisas sobre a natureza da consciência por meio da introspecção.
Em sua origem, espírito vem do latim spiritus, que significa respiração ou sopro. Por volta do século XIII, essa palavra foi confundida à crença de almas e fantasmas. No entanto, não há qualquer evidência que alma ou espíritos existam — mas podemos estar certos de que a consciência existe. Qualquer que seja sua relação com o mundo físico, a consciência é a base de tudo o que experimentamos. Não importa se estamos tomando um café ou tendo uma visão de Jesus, estar consciente é a condição prévia para qualquer experiência do presente. Na minha visão, espiritualidade é um processo de descoberta de algumas coisas sobre a natureza da consciência por meio da introspecção.
Ou seja, é uma experiência mental. Ela também nos levará a
responder as questões fundamentais da existência, como ‘de onde viemos’
ou ‘qual o sentido da vida’? Quando falo de espiritualidade,
estou me referindo à figura da primeira pessoa da consciência e a
possibilidade de superar alguns tipos de sofrimento psicológico, como
aqueles vindos da necessidade da satisfação constante dos desejos ou da
percepção de que, mesmo tendo uma família amorosa, dinheiro, saúde e
comida, algo ainda está faltando. Esses são fatos empíricos sobre a
mente humana, testados pela ciência. As religiões tendem a fazer
especulações sobre a origem do cosmo, a existência de mundos e seres
invisíveis e sobre a origem divina de alguns livros. Mais que isso,
fazem essas afirmações com base em montanhas de evidências
contraditórias. Há uma enorme diferença entre falar que, se alguém usar
sua atenção de certa forma, como durante a meditação, vai perceber algo
muito interessante sobre sua mente e dizer que um carpinteiro do século I
nasceu de uma virgem e estará voltando dos mortos. A espiritualidade
não é importante apenas para ter uma boa vida. Ela é importante para
entender a mente humana.
Quais são as pesquisas científicas nos ajudam a compreender a subjetividade humana?
Sabemos que a mente humana é produto do cérebro humano. No entanto, a
consciência não pode ser definida de acordo com critérios externos. Um
famoso trabalho de Roger Sperry, que ganhou o Nobel de Medicina em 1981,
mostrou, com o auxílio de pacientes que sofreram acidentes
cerebrais, que os dois hemisférios do cérebro têm habilidades distintas e
podem funcionar de maneira independente. E há razões científicas para
acreditar que eles são também independentemente conscientes.
As habilidades cognitivas que nos fazem humanos, como a reflexão ou a
capacidade de julgamento, estão no hemisfério direito, no entanto,
apenas o hemisfério esquerdo possui a habilidade da linguagem. Isso
indica que é problemático falar que cada um de nós tem um único eu, uma
consciência indivisível, ou uma alma responsável por nossa
individualidade.
Como assim? A ideia de alma surge da sensação de que
nossa subjetividade tem uma unidade, simplicidade e integridade que
deve transcender as engrenagens bioquímicas do corpo. Mas a ciência
mostra que nossa subjetividade pode ser dividida em, pelo menos, duas.
Pesquisas feitas na última década também mostram que há partes do nosso
cérebro trabalhando sob o consciente que afetam nossa vida cotidiana.
Isso significa que a consciência pode ser expandida em novas direções
para termos uma percepção mais clara da realidade, sem a necessidade de
que isso seja reflexo de uma entidade superior operando. Se olharmos de
perto para essa sensação de que somos um eu indivisível, ela desaparece.
E esse é um experimento que pode ser feito no laboratório de sua
própria mente.
Há técnicas que podemos usar para isso? Ao contrário
de muitos ateus, passei longos anos da minha vida buscando experiências
como as que deram origem às religiões do mundo. Estudei com monges,
lamas, iogues e com pessoas que passaram grande parte de suas vidas em
reclusão meditando. Ao todo, passei dois anos em retiros de silêncio, em
períodos de uma semana a três meses, praticando técnicas variadas de
meditação de doze a dezoito horas por dia. Posso afirmar que quem passa
tanto tempo aperfeiçoando técnicas de respiração, meditação e pensamento
dirigido tem experiências normalmente inacessíveis a quem não tem
acesso a essas práticas. Acredito que esses estados mentais dizem muito
sobre a natureza da consciência e as possibilidades de bem-estar humano.
O início de Waking Up traz sua experiência com o
MDMA (metilenodioximetanfetamina, mais conhecida como a droga ecstasy).
Foi ela quem abriu as portas da espiritualidade em sua vida? Sim.
O MDMA provou para mim que era possível ter uma percepção radicalmente
diversa de mim mesmo, do mundo e de minhas conexões éticas com os
outros. É claro que não recomendo que todos usem a droga, porque isso
traz consequências à saúde e é ilegal. Mas preciso ser honesto sobre o
papel que ela desempenhou em meu próprio desenvolvimento espiritual.
Como o senhor vivencia sua espiritualidade? Faz
muitos anos que usei drogas psicodélicas e minha abstinência está
relacionada aos riscos para a saúde de seu uso. Tenho momentos
espirituais todos os dias, em lugares santos, em meu escritório ou
enquanto escovo os dentes. Isso não é um acidente, é o resultado de anos
da prática de meditação com o propósito de acabar com a ilusão do eu. A
espiritualidade continua sendo o grande vazio das doutrinas seculares,
do humanismo, do racionalismo, do ateísmo e de todas as outras posturas
defensivas que homens e mulheres assumem diante da presença da fé
irracional. Pessoas dos dois lados se dividem imaginando que
experiências transcendentes não têm lugar na ciência, a não ser em um
hospital psiquiátrico. Mas há um caminho do meio entre fazer da
espiritualidade uma experiência religiosa e não ter espiritualidade
alguma. Não precisamos de mais dados científicos para dizer que a
transcendência é possível. Está em nossa capacidade mental acordar do
sonho de um ser único e indivisível e, assim, nos tornarmos melhores em
contribuir para o bem-estar dos outros.
Cinco passos para atingir a espiritualidade sem Deus,
segundo Sam Harris
Meditação
De acordo com Harris, o tipo de meditação mais indicado para iniciantes
é a vipassana, técnica de um ramo antigo do Budismo. Esse é um meio
eficaz para viver a realidade do momento presente e começar a expandir a
consciência. O objetivo dessa meditação é apenas manter o foco na
respiração. Para isso, basta sentar ereto, fechar os olhos, respirar
fundo e sentir o corpo na cadeira. Mantenha o foco na respiração, sem
controlá-la e não deixe os pensamentos interferirem na respiração.
Mantenha-se dessa maneira até que seja possível apenas testemunhar os
sons, sensações e emoções que passam pela mente.
Interromper as emoções negativas
Ninguém está a salvo das emoções negativas, mas o ideal fazer com que
elas não persistam na mente. Da mesma maneira que ocorre quando estamos
irritados no trânsito e recebemos uma ligação de um amigo que nos faz
rir, é possível treinar o pensamentos para interromper o fluxo da raiva
ou da tristeza. A melhor técnica para expandir a mente na presença dos
sentimentos negativos é percebê-los, sem resistência. “O que é a raiva?
Como você se sente? Fazendo essa investigação, com a consciência plena,
você descobrirá que a negatividade desaparece”, diz Harris.
Técnica do homem sem cabeça
Ao olhar o mundo ao redor, foque a atenção onde você sabe que está sua
cabeça e perceba o que acontece. Por instantes, você poderá ter a
sensação de ter eliminado a racionalidade e de fazer parte de todo o
ambiente. Outro método para chegar a esse estado é imaginar que está sem
cabeça. Simplesmente repita o exercício, de maneira relaxada, em vários
momentos do seu dia. O instante deve aparecer antes da intervenção de
seus pensamentos.
Contato visual
O desconforto que sentimos ao encontrar o olhar direto de outra pessoa
tem a ver com a crença de que somo um eu separado do mundo. Por isso, há
uma técnica de meditação em dupla poderosa para suprimir essa ilusão.
Sente-se de frente para outra pessoa e encare seus olhos, sem falar
nada. Ignore as sensações de desconforto e segure o olhar. Essa técnica
pode ser unida às anteriores para mostrar como é possível se unir a
outra consciência.
Superar a barreira entre a consciência e o mundo
Por meio da meditação e da interrupção dos pensamentos negativos, o
objetivo é examinar a consciência e perceber sua extensão. Esse estado
mental mostrará que os pensamentos são como reflexos em um espelho, ou
seja, eles vão e vêm enquanto a consciência se mantém livre. Em estados
de meditação profunda, em que apenas testemunhamos o mundo, é possível
perceber que não há barreiras entre a consciência e o mundo, entre
sujeitos e objetos. Essa é a essência da espiritualidade.
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