Escritor inglês China Miéville
'A Cidade & A Cidade' , distopia do autor inglês fala de cidades sob o tacão do arbítrio
Três vezes ganhador do prêmio Arthur
C. Clarke, o mais prestigiado da Grã-Bretanha para livros de ficção
científica, China Miéville ainda é um autor cult no Brasil, conhecido
apenas por fanáticos do gênero. Isso deve mudar com a recente
publicação, pela Boitempo Editorial, de A Cidade & A Cidade,
que venceu o referido prêmio há quatro anos, quando saiu na Inglaterra.
O livro é um dos favoritos de Miéville, autor influenciado por
Lovecraft e Mervyn Peake, mas principalmente por Ian Sinclair, também o
mestre de William Gibson, o pai do cyberpunk.
Expoente
da cultura geek (gente obcecada por tecnologia), Miéville nasceu em
Norwich há 42 anos, mas foi criado pela mãe em Londres. Mestre em
direito internacional e ativista político, ele é um desses autores que
surpreende pela habilidade em reunir num mesmo livro fantasias barrocas e
um credo político radical, que o fez criar um partido político nanico e
disputar (e perder) anos atrás um cargo pela Aliança Socialista
inglesa.
O mundo ficcional de Miéville é conhecido como Bas-Lag, onde
convivem a magia, o horror, a alta tecnologia e uma visão urbana
extremamente pessimista. Sua obra o conduziu no passado à liderança de
um grupo de escritores de um gênero conhecido como “new weird”, ou seja,
radicais que rejeitam o escapismo e carregam na ficção distópica. A Cidade & A Cidade
é isso: a investigação de um crime cometido numa cidade pós-soviética
chamada Beszel que, desafiando as leis da física, abriga no mesmo espaço
outra cidade, onde seus moradores, controlados por um governo
autoritário, ignoram a existência dos outros.
Miéville, gregário por natureza – ele adora jogar RPG –, deve
ficar escandalizado com um mundo em que os interesses individuais ditam
as regras e levam as pessoas ao isolamento. Nas duas cidades que
coexistem num mesmo espaço, os cidadãos são obrigados por uma autoridade
a ignorar o que se passa na urbe duplicada. Miéville, no entanto,
resiste ao apelo metafórico, evitando uma aproximação analógica com a
indiferença do mundo à dor e ao sofrimento alheio.
De qualquer modo, a violência da autoridade suprema que ameaça
os cidadãos resistentes à ordem de não olhar para os habitantes da
“outra” cidade, encontra correspondência evidente no mundo real. À
maneira de outro expoente da ficção científica, Philip K. Dick, que
cruzou a ficção futurista com a bestialidade policial do presente em Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? (livro que deu origem ao filme Blade Runner),
Miéville denuncia a vocação da urbe para o crime. No livro de Dick, um
caçador de androides buscava seus pares numa Babel arruinada pela chuva
ácida. Em A Cidade & A Cidade, China Miéville usa a figura
de um policial, o inspetor Borlú, narrador de sua história, para
investigar o assassinato de uma jovem que teria transitado ilegalmente
entre as duas cidades.
Miéville, autor de dez romances, além de contos e uma série em quadrinhos, terá outros livros publicados pela Boitempo (Perdido Street Station, The Scar e Iron Council). Ele falou ao Caderno 2 sobre o livro agora lançado e suas principais influências literárias.
Você disse certa vez que A Cidade & A Cidade é seu
livro favorito entre muitos que escreveu. Ele é mais ambicioso que os
outros em termos de cruzar a cultura geek (dos obcecados por tecnologia)
com filosofia política? Você estava pensando em Kafka ou Borges quando
criou as duas cidades que coexistem num mesmo espaço?
Não sei agora qual seria exatamente o meu favorito entre os
livros que escrevi – isso muda a cada dia –, mas está entre os que eu
considero os melhores. Como um alucinado por tecnologia com interesse
particular em filosofia política, tudo o que escrevo deriva da
intersecção entre ambos, especialmente A Cidade & A Cidade. Para o
meu gosto, consideraria Iron Council mais ambicioso, ainda que ele falhe
gloriosamente onde falha, mas A Cidade & A Cidade é igualmente
ambicioso no sentido de ter sido o ponto de partida, não só no tom como
na ambientação, um livro do qual muito me orgulho. Não estava pensando
em Borges, de forma consciente, quando comecei a escrevê-lo, mas,
naturalmente, ele é um escritor incontornável, no qual não se pode
deixar de pensar. Kafka, diria, era uma referência mais imediata. Diria
ainda que estariam mais próximos dois outros autores: Bruno Schulz e
Alfred Kubin.
Escritores de ficção científica costumam ser muito
reacionários – e me vem logo à mente o nome de Ray Bradbury. Seria o
selo “new weird” uma resposta política à ficção do passado,
caracterizada pelo mundo hierárquico de Ray Bradbury e pelas fantasias
de Tolkien?
Não sei se concordo que os autores de ficção científica são,
de modo geral, grandes reacionários, embora existam muitos entre eles.
De qualquer maneira, posso pensar em alguns de diferente origem e
posição – e talvez seja conveniente, a despeito da obviedade, repetir
que a posição política de um escritor não define a qualidade de seus
livros. O termo “new weird”, agora morto e sepultado, era certamente um
instrumento antirreacionário das tropas weird. Teve lá o seu momento.
Minha impressão é que esse momento acabou.
A Cidade & A Cidade pode ser lido como um livro
existencialista sobre duas diferentes cidades convivendo num mesmo
espaço e tempo, como se todos tivessem um doppelgänger repetindo os
mesmos gestos, algo na linha do William Wilson de Poe. Lembro que você
assume outras influências, entre elas Lovecraft, Melville e Ian
Sinclair. Escritores existencialistas como Camus são também referências
para sua literatura?
Até certo ponto isso é inevitável, pois eles estão no
substrato de nossa consciência cultural. Mas estaria mentindo se
apontasse Sartre ou Simone de Beauvoir como primus inter pares das
influências culturais que assumo de forma consciente.
Como seu credo político interfere em sua literatura,
uma vez que você evita as soluções morais do gênero ficção científica
para escrever livros não esquemáticos?
O verbo que você escolheu, “interferir”, é muito interessante,
embora reconheça que não o use de forma provocativa. Contudo, ele
conduz a uma noção oculta do que constitui a relação entre política e
ficção para qualquer autor, particularmente para quem é assumidamente
político. Para ir mais longe, crença política e compromisso podem,
claro, “informar”, “melhorar” ou “desenvolver” a literatura de alguém.
Já uma imbricação desastrosa da política na literatura pode levar à má
ficção. De minha parte, não vejo isso como um dilema. Sou um autor de
ficção e um escritor de esquerda – e um sempre dependerá do outro. Não
existe outro modo de escrever nem eu desejaria que existisse. A ficção
não existe para expor discussões políticas – para isso existe a não
ficção.
Desde seu primeiro romance, King Rat, que foi
publicado em 1998 e lançado no Brasil por uma pequena editora, o que
mudou basicamente no modo de você encarar a literatura? Você pretende se
dedicar mais a ensaios que à ficção no futuro?
Essa é uma boa pergunta. Sim, gostaria de escrever mais
ensaios e não ficção, embora deva usar “tanto quanto” em vez de “no
lugar” da ficção. À medida que escrevo, torno-me mais consciente da
prosa e dos perigos da autoparódia. Tenho um imenso senso de urgência,
pois estou entrando no “período intermediário” de minha carreira. Muitos
já escreveram sobre o “estilo tardio”, como Edward Said, por exemplo,
mas não sobre o intermediário, que, para mim, ou justifica a obra como
um todo ou sinaliza um completo fiasco.
Você escreveu contos, quadrinhos, roteiros para
role-playing games e textos acadêmicos. Qual é a diferença entre
escrever ficção e não ficção, para você? É melhor criar histórias do que
descrever o mundo real?
Não há melhor nem pior para mim. Acho que sofro de um complexo
de culpa, como alguém que tem um passado acadêmico, um ativista que
considera a não ficção mais importante. Conscientemente, quero me livrar
disso, mas é inevitável. Não creio que estaria apto a escrever numa
única forma. Menos porque escrever em múltiplas formas é triunfar, para
mim é uma oportunidade de falhar melhor.
Obras recentes do autor são híbridos literários
Em ‘Railsea’, ele cruza os monstros da juventude com épico de Melville, ambientando o livro num cenário apocalíptico
Se há dez anos você perguntasse a China Miéville se ele era
geek, a resposta vinha rápida: “Sim, sou completamente geek”. Ele
considerava lícito que um homem com pouco mais de 30 anos não abjurasse
sua adolescência passada entre dragões, monstros e jogos eletrônicos.
Miéville, hoje com 42 anos, mudou de direção, deixando um pouco de lado a
pulp fiction para unir alta tecnologia à alta literatura.
Assim, seus livros de ficção mais recentes, como Railsea
(2012), embora não recusem a fusão híbrida de gêneros, parecem mais
ambiciosos. Railsea é uma típica ficção científica, mas com imagens
arquetípicas, como os livros anteriores, cruzando os monstros da
juventude do autor com o épico – Melville é uma referência imediata
quando se pensa nas criaturas predadoras do livro, inspiradas na baleia
de Moby Dick.
A ambição de Miéville está relacionada à crença na literatura
fantástica como forma revolucionária, capaz de substituir o hermetismo
da academia, que o levou a abominar Cambridge quando trocou o Egito pela
Inglaterra na juventude, decidido a estudar antropologia.
Nesse sentido, é fácil entender a razão de Miéville citar Iron
Council na entrevista acima como sua criação mais ambiciosa, também
porque, além dos temas frequentes na obra de um marxista de formação – o
mundo sujo dos políticos, a revolução –, ele se dedica a explorar uma
história de amor homossexual. Não em busca de polêmica, mas para ser
fiel ao projeto do cruzamento híbrido entre fantasia, thriller político,
romance revolucionário e faroeste, gênero em que o homoerotismo não é
raro.
Esse apego a gêneros vistos como vulgares, subliterários, tem
tudo a ver com a ideologia desse socialista empenhado em desafiar o “bom
gosto” burguês. Para ele, há uma “afinidade estranha” entre políticos
radicais e a literatura fantástica – e, não por acaso, ele sempre cita
nomes como o do trotskista Steven Brust e do anarquista Michael Moorcock
como exemplos de subversão extrema.
Moorcock escreveu um estudo sobre a fantasia épica (Wizardry
and Wild Romance) que acaba com a trilogia O Senhor dos Anéis, definindo
Tolkien como um conservador antimodernista – o idílico território do
Shire, onde moram os hobbits na Europa mitológica do escritor britânico,
seria o doce lar seguro da burguesia, segundo o ensaísta. Tudo o que
está fora de Shire representa o perigo, multiplicando o temor da família
nuclear, que vê como ameaça aquilo que não é seu espelho.
Essa paranoica desconfiança reina em A Cidade & A Cidade.
Considere o exemplo da jovem do livro, assassinada na cidade de Beszel,
no cafundó da Europa, que divide com a cidade gêmea Ul Quoma o mesmo
espaço geográfico, embora com costumes diferentes. A fronteira entre as
duas é respeitada e ignorá-la é um crime – a garota morta, no caso,
estava envolvida com agitadores políticos e cruzou a linha divisória,
desafiando um poder secreto chamado Brecha. Em sua ingenuidade, ela é
como a Dorothy de O Mágico de Oz: quer voltar para casa, mas nem sabe se
esse lar existiu, de fato, algum dia. / A.G.F.
A CIDADE & A CIDADE
Autor: China Miéville
Tradutor: Fábio Fernandes
Editora: Boitempo Editorial(292 págs.,R$ 45)
Trecho do livro:
Autor: China Miéville
Tradutor: Fábio Fernandes
Editora: Boitempo Editorial(292 págs.,R$ 45)
Trecho do livro:
"Os poderes de Brecha são quase ilimitados. Assustadores. O que
limita a Brecha é apenas o fato de que esses poderes são altamente
específicos, circunstancialmente. A insistência para que essas
circunstâncias sejam rigorosamente policiadas é uma precaução necessária
para as cidades.
Por isso, esse equilíbrio arcano entre Beszel, Ul Qoma e a Brecha.
Em circunstâncias diferentes das várias agudas e indiscutíveis brechas –
crime, acidente ou desastre (derramamento de produtos químicos,
explosões de gás, um agressor com problemas mentais atacando através da
fronteira municipal) –, a comissão vetava todas as potenciais invocações
– que eram, afinal de contas, todas as circunstâncias nas quais Beszel e
Ul Qoma se desnudariam de qualquer poder.
Mesmo depois de eventos agudos, com os quais ninguém são poderia
argumentar, os representantes das duas cidades na comissão examinariam
cuidadosamente ex post facto as justificativas apresentadas para a
intervenção de Brecha. Eles poderiam, tecnicamente, questionar qualquer
uma delas:seria absurdo fazer isso..."
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Reportagem por Antonio Gonçalves Filho - O Estado de S. Paulo, 27/12/2014
Fonte: Estadão online.
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