domingo, 28 de dezembro de 2014

Zbigniew Brzezinski: "Vivemos uma instabilidade sem precedentes"

O ESTRATEGISTA Brzezinski no seu escritório em Washington. Ele está otimista com a aproximação entre EUA e Irã  (Foto: Karen Ballard/Redux)

O influente estrategista americano diz que há um “despertar político global”. Ele provocou fragmentação e incerteza, e não há quase nada que os EUA possam fazer a respeito

Considerado um dos maiores estrategistas da política externa americana no século XX, Zbigniew Brzezinski aconselhou todos os presidentes democratas americanos desde Jimmy Carter (1977-1981). Brzezinski foi um dos personagens centrais do combate à União Soviética na Guerra Fria e previu a emergência da China, a  decadência dos Estados Unidos, o enfraquecimento do Ocidente e a importância crescente da tecnologia nos movimentos políticos. Aos 86 anos, mantém febril atividade acadêmica e publica um livro a cada dois anos. Brzezinski afirma que, apesar de vivermos uma “era de tumulto, fragmentação e incerteza”, não há risco de uma guerra global.
ÉPOCA – O senhor costuma dizer que há uma crise global de poder. O que levou a ela e quais suas consequências?
Zbigniew Brzezinski –
Vivemos um período de instabilidade sem precedentes. Há enormes faixas de território dominadas por agitação, revoluções, raiva e perda do controle do Estado. A volatilidade decorre da coincidência de várias mudanças estruturais importantes no sistema internacional. O Ocidente não é mais dominante, os impérios acabaram. Há o que chamo de “despertar político global”: uma tomada de consciência sobre as injustiças, desmandos, desigualdades e explorações. É comovente ver esse despertar produzir ondas como a Primavera Árabe. Mas ele não é necessariamente um passo rumo à democracia. Em alguns casos, como na Europa Central, onde a democracia tinha raízes mais profundas, há um movimento contrário à democracia. Às vezes, essas revoltas aumentam o extremismo e o fanatismo. Vemos um mundo em que há um enorme tumulto, fragmentação e incerteza, em que não há uma única ameaça central, mas várias ameaças diversificadas.

ÉPOCA – O que faz o período atual diferente de outros períodos dramáticos como os anteriores à Primeira e a Segunda Guerra Mundial?
Brzezinski –
Há muitas similaridades, mas não acredito no caos de grandes guerras. Em 1914 e em 1939, as grandes potências tinham uma visão estreita do mundo. Seus líderes estavam preocupados com questões imediatas, acreditavam que poderiam resolvê-las com o uso da força. Nenhuma das potências atuais tem essa visão, nem mesmo a Rússia, que late, mas não morde. Os EUA perderam poder. A China observa as turbulências geopolíticas à distância. Há os Estados-nação do Oriente Médio, que têm alguma viabilidade geopolítica histórica: Turquia, Irã, Israel e Egito; as potências asiáticas de segundo escalão, como Japão e Índia. Essa profusão de protagonistas garante alguma estabilidade mundial residual. Não teremos nada equivalente a 1914 ou a 1941, mas caminhamos para uma época de grande confusão e caos reinante. Na verdade, vejo paralelos entre o que acontece hoje no Oriente Médio e o que aconteceu na Europa durante a Guerra dos Trinta Anos (série de guerras entre nações europeias entre 1618 e 1648): a ascensão da identificação religiosa como o principal motivo para ação política, com terríveis consequências.  

  "O Bric não existe como bloco. É apenas um amontoado de letras. Deixou de ser considerado 
uma alternativa séria."
ÉPOCA – Quais as consequências dessa nova ordem multipolar, que alguns analistas chamam de “ascensão do resto” e outros de “nova desordem mundial”?
Brzezinski –
Não sei o que esses slogans significam. Discussões recentes a respeito do Bric (Brasil, Rússia, Índia e China) foram baseadas em delírios ou apenas em conjecturas oportunistas, como ficou provado. O Bric não existe como bloco. É apenas um amontoado de letras. Deixou de ser considerado uma alternativa séria. Arriscaria dizer que tais fórmulas, em larga medida, refletem o que tenho dito nos últimos 20 anos: vivemos um período de instabilidade sem precedentes, provocado pelo despertar político global.

ÉPOCA – Qual o papel dos Estados Unidos neste mundo?
Brzezinski –
O cenário hoje é mais complexo que há 20 anos. A ascensão da China revelou um poder que já se equipara economicamente aos Estados Unidos. Em breve, isso ocorrerá no âmbito militar. A conduta dos russos também contribuiu para maiores incertezas. O fracasso da Europa em desenvolver uma política e um perfil militar coeso reduziu a capacidade americana de agir como um poder decisivo no mundo. A fragilidade americana fica evidente na incapacidade de dar estabilidade à política dinâmica, arrogante e imprevisível do Oriente Médio. Os esforços americanos para produzir a paz entre Israel e Palestina não foram produtivos, e a política do Oriente Médio se tornou cada vez mais violenta. Dito isso, os EUA ainda são preeminentes. Mas não são mais capazes de exercer poder hegemônico. Há vantagens nisso, especialmente quando a política americana é equivocada. Mas isso gera um sistema internacional instável e imprevisível.

ÉPOCA – O que provocou essa perda de influência americana?
Brzezinski –
Ela é resultado de várias transformações de significado histórico. Notadamente, a liderança inepta do presidente George W. Bush contribuiu para esse desenvolvimento negativo. A invasão ao Iraque em 2003 foi injustificada, uma vez que se baseou numa premissa falsa. Sua condução desmoralizou os EUA em vários aspectos e contribuiu para o crescente fanatismo no mundo islâmico. O presidente Barack Obama foi mais sensato em sua abordagem. Mas mesmo ele não esteve preparado o suficiente para adotar uma postura decisiva com relação a duas questões que exigem uma solução construtiva: um compromisso com o Irã e um comprometimento entre palestinos e israelenses. Em ambos os casos, uma abordagem dinâmica teria sido mais produtiva.

"Apesar de tudo, Vladimir Putin não é uma ameaça séria,
 não é um Hitler do século XXI"
 
ÉPOCA – O senhor foi um dos principais mentores de Obama. Ficou decepcionado com a política externa do governo dele?
Brzezinski –
Não diria decepcionado, mas surpreso. Como quando ele anunciou, em 2011, que Bashar al-Assad (o ditador da Síria) deveria partir. Não estava claro, para mim, por que deveríamos tirar Assad do poder, ainda mais em face do que poderia vir no lugar dele. Não havia nada na Síria nem sequer próximo à Primavera Árabe. Era uma questão de uma guerra sectária, sunitas contra xiitas. A política claudicante dos Estados Unidos contribuiu para aumentar o caos na Síria, depois da entrada em cena de grupos hostis aos EUA, como o Estado Islâmico. Obama adotou uma política autodestrutiva naquele momento. Agora, estamos num caminho mais correto, envolvendo nas conversas não só os  europeus, mas também russos, chineses e iranianos.

ÉPOCA – O senhor era conselheiro de Segurança Nacional durante a Revolução Islâmica no Irã, em 1979. Acredita numa aproximação dos EUA com o Irã?
Brzezinski –
Bem, algo acontece, porque houve algum diálogo indireto entre EUA e Irã, ainda limitado, mas sem precedentes, considerando as duas últimas décadas. Os iranianos estão esgotados e cansados com as sanções econômicas. É o momento para nos aproximarmos deles. Basicamente, vejo o Irã como um autêntico Estado-nação: tem a coesão que falta à maioria dos países do Oriente Médio e é um Estado mais solidamente definido que o Egito. O problema do Irã é sua ameaça potencial para Israel.

ÉPOCA – Israel acusa o Irã de  mentir sobre o programa nuclear. Os iranianos são confiáveis?
Brzezinski –
Que país não mente quando se trata de relações entre Estados? Os EUA foram acusados de mentir diversas vezes. Em algumas delas, mentimos mesmo. Suspeito que os israelenses também tenham mentido, ocasionalmente. Dito isso, o que podemos fazer? Só poderemos negociar com algum país que tenha a chancela de Israel? Há uma certa histeria quando se trata do programa nuclear do Irã. Os iranianos não são suicidas, não se lançarão a uma corrida desenfreada para fabricar uma bomba nuclear e jogá-la sobre Israel, país que tem de 150 a 200 bombas nucleares e as Forças Armadas mais poderosas do Oriente Médio. Por que o Irã faria isso? Tolice. Eles apenas querem acabar com as sanções que atrapalham o país, tendo o que mostrar à população.

ÉPOCA – Cada vez mais a Rússia tenta controlar antigos satélites soviéticos. O expansionismo de Vladimir Putin é preocupante?
Brzezinski –
A Rússia parece inclinada a aproveitar sua capacidade militar para pressionar seus vizinhos mais fracos. O uso da força na Europa, pela primeira vez desde o fim da Segunda Guerra Mundial, teve um efeito negativo sobre a estabilidade internacional. A ação russa na Ucrânia, o uso da força para conquistar um território, é inaceitável no século XXI. É uma ameaça à ordem mundial e reflete as condições de deterioração dessa ordem. É por isso que os países interessados em preservar a paz mundial devem se unir e pressionar a Rússia a encarar a realidade. A ausência de alguma acomodação forçará a Rússia a assumir a postura de um satélite chinês. Torcerei para que mesmo a China se torne mais ativa e franca sobre a questão da conquista de um território por meio do uso de forças militares. Apesar de tudo, Vladimir Putin não é uma ameaça séria, um “Hitler do século XXI”, ainda que parte de sua linguagem e seus trejeitos mais recentes sejam reminiscências de Hitler e Mussolini. 
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Reportagem por  RODRIGO TURRER
Fonte: Revista Época online, 28/12/2014 10h00 - Atualizado em 28/12/2014 15h03

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