Juremir Machado da Silva*
Jean Baudrillard praticava a ironia ao menos três vezes por
dia. Era uma forma de manter o espírito limpo. Entre cada tirada
irônica, tomava um cálice de vinho branco. Uma das suas “boutades”
misturava juízes e aviões: “É preciso tomar cuidados com os juízes e com
os aviões. Os aviões sempre podem cair. Os juízes sempre podem subir
(em cima da gente). Nada tenho contra os juízes, não bebo álcool, embora
aprecie um bom vinho, mas tento praticar a ironia. Nosso aviões pararam
de cair. Nossos juízes andam subindo pelas caronas. Teve aquele que deu
voz de prisão à azulzinha que o multou por estar simplesmente dirigindo
sem carteira um carro sem placas. Teve aqueles que condenaram a agente
de trânsito a indenizar o magistrado por ter-lhe revelado uma verdade
infantil e devastadora: ele não é Deus. O que será desse homem depois
dessa bofetada metafísica?
Agora apareceu outro juiz, o maranhense Marcelo Baldochi, que deu voz
de prisão aos funcionários da TAM por não ter sido autorizado a
embarcar depois do encerramento dos procedimentos e do fechamento da
porta da aeronave. Baldochi foi denunciado em 2011 por manter empregados
em condições de escravidão na sua fazenda em Bom Jardim. Na sua
opinião, como se diz, deve ter sido só uma questão de entendimento da
lei. Desta vez, o juiz argumentou: “Muitos se contentam com as
aparências, permitindo que a fantasmagoria prevaleça sobre a razão. Mas a
razão não admite equívocos! O voo marcado para as 21h02 admitia o
embarque, segundo as normas de aviação civil e do que consta do próprio
bilhete, 15 minutos antes da partida”. Baldochi fez o check-in às
20h32min. O problema é que, em caso semelhante ao seu, ele julgou
improcedente a ação do passageiro contra a Gol.
Depois de um cálice de vinho branco, eu diria: nos olhos dos outros é
colírio. Depois de dois cálices, a frase seria outra. Duvido que o
leitor possa adivinhar qual. Mas não deixo de compreender a ira do juiz
com a TAM. Certa vez, o voo que me levaria de Porto Alegre para São
Paulo atrasou. Nem saiu. Nenhum explicação foi dada. Nada mais banal.
Explicação é para passageiro de ônibus. Consegui outro voo. Chegamos em
Guarulhos faltando uma hora e oito minutos para a decolagem. A moça
informou que o embarque estava encerrado. Montei num porco selvagem. A
chefe passava no local e ouviu. O embarque foi reaberto. Companhias
áreas fazem o que bem entendem com os passageiros. Rodoviárias são muito
confiáveis do que aeroportos. A grande diferença em relação ao juiz
Baldochi é que os passageiros sacaneados todos os dias não podem dar voz
de prisão aos enroladores.
Esse caso me fez pensar no maravilhoso filme “Relatos selvagens”, de
Damián Szifron, com Ricardo Darín, que vi no último sábado. Qualquer um
pode perder o controle, especialmente quando se é massacrado pela
burocracia e pelo papo furado de quem tem o poder. Quando, porém, os
juízes perdem o controle o bicho pega. Será que a TAM vai ter de
indenizar o juiz? É briga de cachorro grande: os aviões de carreira
contra a carreira de uma excelência da lei. A azulzinha de outra
história era só um cusco.
Ou se diz uma cusca?
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* Sociólogo. Escritor.
fonte: Correio do Povo online, 11/12/2014
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