Leandro Karnal*
Gafe viral. Reação à fala de Huck sobre Lais mostra que ele entrou num campo minado
Hoje somos induzidos a calar sobre nossa infelicidade e a alheia
Um católico fervoroso das Filipinas se submete a um estranho
ritual na Sexta da Paixão: permite ser crucificado, em pleno século 21.
Os turistas do Primeiro Mundo registram com interesse antropológico essa
cena no “Coração das Trevas” de um arquipélago asiático. Na cabeça de
muitos ocorre certo elo de causalidade entre o atraso econômico daquele
país e o ritual. Permitir dor seria parte do conjunto do ser
subdesenvolvido. Seriam os analgésicos a base da civilização?
A ascensão dos valores ditos “modernos” incluiu a rejeição do
sofrimento. A dor só poderia existir, e ainda marginalmente, em jogos
sexuais mutuamente consentidos. Flagelar-se tornou-se campo patológico. A
imagem de Jesus crucificado, reforçada a dramaticidade com manchas
vermelhas e feridas expostas, incomoda hoje. Somos mais “sensíveis”.
Espetáculos teatrais de dor, tão comuns no Antigo Regime (torturas
públicas, execuções), viram escândalos. O Estado Islâmico sabe do
impacto no Ocidente ao degolar ao vivo um ser humano. Importante notar
que essa nova sensibilidade asséptica e indolor conviveu, em pleno
século 20, com genocídios inimagináveis para o Medievo.
Os analgésicos são um tema quase de diretos humanos hoje. A
dor foi desnaturalizada. A primeira grande guerra imperialista inglesa
do século 19 foi em nome do ópio, uma droga e analgésico. A enfermagem
contemporânea nasceu nos campos de batalha da Crimeia e de Solferino.
Matamos mais do que nunca e em escala inédita, mas lá estava a solícita
Florence Nightingale para amenizar a dor dos soldados, ao menos dos
nossos.
É uma contradição. Gêngis Khan ficaria corado em Auschwitz.
Nós ficaríamos horrorizados com a naturalidade com que a dor era imposta
nos tempos do grão-mogol. Somos mais sensíveis do que nunca e matamos
mais do que nunca. Situação complexa entre o que aspiramos e idealizamos
e o que somos.
Luciano Huck cometeu um deslize verbal. Falar muito em público
implica risco constante. Às vezes ocorre uma ideia sem nexo ou
simplesmente fora do aceitável. Falar muito (e sendo observado por
milhões) é um imenso desafio. É preciso muito controle racional para
emitir apenas flores verbais corretas e socialmente louváveis. O
problema é que nenhum apresentador é selecionado pelo controle
cartesiano da fala. Nenhum homem de mídia está onde está pela análise
acurada de textos fundamentais dos direitos humanos. Outros fatores
pesam mais.
Luciano disse a uma atleta de corpo imobilizado que isso seria
bom, porque a tatuagem não doeria. O deslize, reduzido ao absurdo,
seria como elogiar alguém de pé amputado por não ter mais calos. Pior:
“Que bom que você é cego, pois economizará em óculos de grau na
velhice”.
Não é fácil dominar os códigos contemporâneos. Sabe o leitor
que o verbo judiar é um deslize imperdoável? Que a palavra
homossexualismo não pode ser dita por associação com doença? Que ninguém
no Brasil é preto? E há os eufemismos, como “plus size” ou “melhor
idade”.
Velho ou gordo ficaram inadmissíveis, mas, curiosamente,
melhor idade parece ser um esforço enorme de tinta na remodelagem do
preconceito. Funciona como a folha de gesso que o pudor católico colocou
sobre a genitália da estátua grega: ao invés de esconder, o branco do
gesso atrai a atenção sobre o tom rebaixado do mármore. É um holofote,
mais do que um véu. Funciona como o careca que usa peruca: ao tentar
disfarçar, torna insuportavelmente magnética a cabeça. Não conseguimos
desviar o olhar! As perucas são buracos negros dos quais nem a luz
escapa.
Nossa sensibilidade à dor aumentou tanto que inclui a física e
a psicológica. Achamos horrível, em era de redes sociais, sofrer.
Felicidade é um mandamento e nossas vidas devem ser iluminadas por
muitos selfies estúpidos. Somos felizes, ao menos para fins de cálculo. O
sorriso no Facebook funciona como a peruca do careca.
Hoje devemos calar sobre nossa infelicidade e sobre a dor
alheia. Quanto mais desenvolvido o país, aparentemente, maior o grau de
politicamente correto. Alguém exibe uma cicatriz, um doença cutânea ou
uma amputação? O código exige um silêncio total. Nada de perguntas ou
olhares fixos. O silêncio artificial é, curiosamente, o sinal claro de
que notamos muito e bem, que estamos desconfortáveis, mas que o mundo
exige nossa discrição. O código mistura vitorianismo hipócrita e
linguagem contemporânea. Talvez tenhamos raiva desses códigos. Essa
raiva é sempre transferida para quem não o cumpre.
Nos grandes centros do século 21, Quasímodo, o Corcunda de
Notre Dame, poderia entrar e pedir seu chá gelado com serena
tranquilidade, sem medo de ser remetido para a torre. Mas o ideal de
beleza é, hoje, mais forte do que na sua época. O corcunda seria muito
mais notado, mas receberia mais sorrisos de atendentes: “Em que posso
ajudá-lo?”.
Sim, a linguagem fere. Não é correto atacar alguém com uma
palavra carregada de preconceito. Essas dores marcam na escola e na vida
adulta. Seria melhor que Luciano Huck não tivesse dito o que disse. Não
foi, exatamente, preconceito, mas um deslize verbal. Há uma reação
excessiva ao ato. Isso mostra que ele entrou num campo minado, onde
muitos estão se controlando. Para evitar nossa dor, vivemos indicando a
alheia. Ninguém quer sofrer e, por isso, ao menos, o sofrimento do outro
era um consolo escasso e possível e agora nem podemos declará-lo. Como
dizia Schopenhauer, o único consolo da ovelha insípida é quando o lobo
come a do lado. Poupada para seguir sua vidinha, ela obtém um efêmero
habeas corpus. Não sendo nem paraplégico nem apresentador de televisão,
eu sorrio: posso continuar pastando a graminha gostosa do politicamente
correto.
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* LEANDRO KARNAL É HISTORIADOR E PROFESSOR DE HISTÓRIA CULTURAL DA UNICAMP
Fonte: Estadão. Cad. Aliás, online, 20/12/2014
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