Luiz Felipe Pondé*
Logo o amor será objeto de algum composto psicofármaco. Trataremos Julieta com calmantes.
Caro leitor, cara leitora, que sua semana se abra com tamanha beleza:
"Meu único amor, nascido de meu único ódio! Cedo demais o vi,
ignorando-lhe o nome, e tarde demais fiquei sabendo quem é. Monstruoso
para mim é o nascedouro desse amor, que me faz amar tão odiado inimigo".
É uma fala de Julieta, na peça "Romeu e Julieta" de William
Shakespeare.
E mais: "Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova! Tarde demais eu
te amei! Eis que habitavas dentro de mim e eu te procurava do lado de
fora! Eu, disforme, lançava-me sobre as belas formas das tuas criaturas.
Estavas comigo, mas eu não estava contigo. Retinham-me longe de ti as
tuas criaturas, que não existiriam se em ti não existissem. Tu me
chamaste, e teu grito rompeu a minha surdez. Fulguraste e brilhaste e
tua luz afugentou a minha cegueira. Espargistes tua fragrância e,
respirando-a, suspirei por ti. Eu te saboreei, e agora tenho fome e sede
de ti. Tu me tocaste, e agora estou ardendo do desejo da tua paz".
O trecho é de "Confissões", de Santo Agostinho, capítulo dez.
O grande autor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881) dizia que a beleza
salvaria o mundo. Conhecendo o abismo do desespero e do niilismo, ele
profetizou a força da beleza como restauradora do espírito.
Para ele, habitaríamos um futuro em que a verdade desapareceria por
força de nossa própria dúvida e razão, e que, talvez, apenas a beleza
poderia recuperar a forma do mundo.
Mundo este feito para acolher a misericórdia, já que habitado por
solitários como nós. A esperança, para o nosso russo, é flor que brota
dos escombros. Visões de um romântico, claro. Romântico como a jovem
Julieta.
Mesmo que presos ao tempo --que nos assola a cada dia com o desespero
que parece brotar do vazio das horas e lentamente nos revela o destino
que nos espera--, é este mesmo tempo que ambos, Shakespeare e Santo
Agostinho, chamam à cena para marcar o momento da descoberta da beleza.
Sempre tarde demais ou cedo demais, ela chega. E nós, com nossas
palavras e gestos, corremos atrás pra dar-lhe nome. Romeu e Deus. É pelo
esforço de dar nome à doce fúria que ela nos incita, que recuperamos o
gosto pelas coisas.
Mesmo que seja, como diz o príncipe no final de "Romeu e Julieta", para
nos mostrar como nosso mundo não suporta a beleza de dois jovens que se
amam, sem perceberem que o mundo não é lugar para tamanha monstruosidade
de um amor fora do lugar.
A beleza que Agostinho tarda a amar, na história de Cristo, é esta
beleza mesma, despedaçada pela incapacidade humana de sair da cela da
humilhação para a leveza da humildade --única virtude indestrutível,
como diria outro grande artista, Georges Bernanos.
Sem a humildade, nos sentimos humilhados pela beleza de Deus. O desejo
enlouquecido de Agostinho no texto é lugar comum na literatura mística,
tradição marcada pelo encontro com esta beleza.
No texto de Shakespeare, Romeu é o objeto de amor avassalador da jovem
de 13 anos conhecida como Julieta, da nobre família dos Capuleto,
representante aqui de todo homem e toda mulher que um dia enlouqueceu de
amor.
No texto de Santo Agostinho, Deus é o objeto. Aquele que sustenta tudo
que existe e que é mais íntimo de mim do que sou de mim mesmo. Conhecer
Deus exige de nós um autoconhecimento desconhecido para quem nunca se
descobriu cego.
Beleza esta que nasce das profundezas da cegueira de quem se sabe
incapaz de criá-la, mas pressente sua presença nalgum lugar que não sou
eu.
Uma ciência do mistério, que encanta todos que um dia escreveram sobre
ela. Ridícula, como diria o profeta russo Dostoiévski em seu maravilhoso
conto tardio, "Sonho de um homem ridículo", porque inacessível para
quem nunca se viu disforme.
Se lembrarmos o que dizia outro grande artista, Nelson Rodrigues, que
escrevia contos de amor e morte, assistiríamos à peça "Romeu e Julieta"
de joelhos.
Logo o amor será objeto de algum psicofármaco. Trataremos Julieta com
calmantes, como já tratamos Santo Agostinho. Eis o inferno para um
romântico: a vida "bem" resolvida.
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* Filósofo. Escritor.
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