terça-feira, 2 de dezembro de 2014

E ASSIM VAI O MUNDO

João Pereira Coutinho*
 
Pergunto se um planeta que perde tempo com a camiseta de um cientista merece mesmo ser salvo 

1. O Real Madrid apagou a cruz de Cristo do seu distintivo. Razões comerciais: o clube espera receber financiamento árabe e não pretende ofender as sensibilidades dos torcedores muçulmanos. 

A ideia parece-me excelente e, mais ainda, o início de uma parceria entre a Espanha e o Oriente Médio que poderá ser aprofundada. 

Depois do distintivo do Real Madrid, não vejo por que motivo os dois países não incrementariam as suas relações --comerciais, culturais, paranormais-- destruindo na Espanha todos os símbolos cristãos que sobreviveram na paisagem. 

Claro que, tratando-se da Espanha, o apagamento de símbolos cristãos pode significar o apagamento de todo o país, ou quase, isso se excetuarmos a arte muçulmana mais ao sul. 

Mas até isso pode ser positivo: se a Espanha se transformar em um deserto, com alguns minaretes pelo meio, tenho a certeza de que os investidores árabes irão se sentir ainda mais em casa. 

2. A humanidade conseguiu enviar uma sonda para um cometa. Feito único, sem dúvida, embora ensombrado pelo caso do Dr. Matt Taylor. Melhor: pela camiseta que o Dr. Taylor, um conceituado astrofísico inglês, exibiu perante as câmeras. 

Na dita cuja, era possível observar várias mulheres pin-up, com poses sensuais e trajes idem, o que provocou reações histéricas entre as histéricas --feministas que são rápidas a ver "machismo" em todo o lado, mas obviamente incapazes de realizar uma equação de primeiro grau. 

O cientista, aturdido com as críticas, pediu desculpas e --imperdoável!-- choramingou em público.
Já tudo foi dito sobre o caso: quando o mundo deveria estar a olhar para os céus, o interesse das feministas estava na camiseta de um cientista terráqueo. 

Com a devida vênia, eu gostaria de ir ainda mais longe: a sonda do Dr. Taylor pode permitir --um dia, quem sabe-- rebentar com um cometa assassino a caminho da Terra. Mas pergunto, com honestidade, se um planeta que perde tempo com a camiseta de um cientista merece mesmo ser salvo. 

Dúvidas, muitas dúvidas. 

3. Dois fanáticos israelenses entraram numa mesquita e mataram quatro pessoas. Três delas eram imãs em oração. Em várias cidades israelenses, a população judaica saiu à rua para festejar o ataque e agradecer a Deus. Se esse filme tivesse acontecido, o que diria o leitor? 

Simples: a selvajaria não tem perdão; os festejos são imorais; os israelenses são os novos nazistas; e etc. etc. 

Agora, troque: "fanáticos israelenses" por "fanáticos palestinos"; "mesquita" por "sinagoga"; "imãs" por "rabinos"; e "ruas israelenses" por "ruas palestinas". Foi o que aconteceu depois do ataque em Jerusalém. Algum comentário? 

Precisamente, leitor: uma forma desesperada, mas perfeitamente justificável, de combater a ocupação sionista; e etc. etc. 

4. Brendan O'Neill escreve na "The Spectator" artigo sobre as "Stepford Students" (uma referência às "Stepford Wives" do romance de Ira Levin, criaturas robóticas e tiranizadas pela ditadura "falocêntrica"). E que nos diz O'Neill? O horror, o horror: os estudantes ingleses estão mais intolerantes do que nunca. 

Ele sentiu nos ossos esse clima de intimidação ideológica: convidado a falar sobre o aborto no Christ Church, em Oxford, o pobre O'Neill nem abriu a boca: as suas posições pró-vida despertaram a ira das feministas locais e de outros anões semelhantes, que por todo o lado reclamam "o direito ao conforto". 

"Conforto", entenda-se, significa nunca questionar nenhuma posição progressista que possa perturbar as "ideias" que as meninas e os meninos colaram na cabeça. 

Perder um minuto a tentar explicar que essa blindagem epistemológica representa um atraso cognitivo e até social (o que teria acontecido se os escravocratas também tivessem silenciado os abolicionistas do século 19 em nome do "direito ao conforto"?) é pura perda de tempo. 

O caso de Brendan O'Neill é apenas um vislumbre do que será o futuro: uma espécie de nova Idade Média, em que os bárbaros politicamente corretos têm rédea solta para destruir qualquer processo de conhecimento válido --e, escondidos dentro de portas, alguns monges tudo farão para o salvar. 

Razão tinha o outro: primeiro, a história é tragédia; depois, repete-se como farsa. 
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* Jornalista. Escritor.
Fonte: Folha online, 02/12/2014
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