Otimismo. Para De Masi, Brasil pode ser um modelo para o
mundo:
“O país é pacífico na perspectiva internacional,
aberto à solidariedade”
- Divulgação
Para
Domenico De Masi, prevalência da cultura técnica explica crise do emprego e
xenofobia
TIRADENTES
(MG) - O sociólogo italiano Domenico De Masi vê o avanço do neoliberalismo e a
ascendência do conhecimento técnico sobre as humanidades como fenômenos
relacionados e que estão na origem de dois grandes mal-estares atuais: o
fortalecimento de discursos de ódio e autoritários e a crise do trabalho.
Superar as raízes dessa malaise é urgente se a sociedade quiser evitar uma
revolução sangrenta no futuro próximo, diz o professor da universidade La
Sapienza, de Roma, que está em Tiradentes para participar da primeira edição do
Fórum do Amanhã.
O
senhor veio a Tiradentes (MG) falar sobre os caminhos para o desenvolvimento
daqui para frente. Qual papel o Brasil pode desempenhar nisso?
O
Brasil tem características positivas. È um país muito importante, o sétimo PIB
do mundo, o 5º em extensão territorial. E há também o papel importante
cultural. Em sua história, o Brasil só se envolveu em uma guerra, com o
Paraguai, e essa é uma diferença em relação à Europa. Ele é violento
internamente, claro, mas é pacífico na perspectiva internacional, aberto à
solidariedade, enquanto a Europa está repelindo imigrantes. É um país propenso
à alegria, à música. Pode haver aqui um modelo para o restante do mundo.
Você
já disse que o Brasil é um país de sociólogos. Hoje, porém, em paralelo ao
avanço de ideologias de extrema direita, muitos observadores apontam para o
surgimento de forte movimento anti-intelectual, refratário às humanidades por
aqui. O senhor tem percebido esse movimento?
Não
tenho condições de dizer se isso está acontecendo ou não no Brasil. Mas na
Itália isso é ocorre, assim como por toda a Europa e nos EUA. Isso é muito
perigoso. Setenta anos após a Segunda Guerra, após o fim do fascismo e do
nazismo, as novas gerações não viveram essas tragédias. As ciências humanas e
sociais são ferramentas contra as ditaduras pois são fundamentalmente
democráticas. As primeiras medidas ditatoriais são sempre suprimir as
humanidades. Isso aconteceu com Stálin, que acabou com a sociologia, aconteceu
com Mao Tsé-tung, com Pinochet.
Elas
estão sob risco?
Eu
espero que não. A diferença de hoje é que as instituições democráticas são bem
mais sólidas do que naquela época, e desempenham uma missão global para o
mundo, não nacionalismo. Fascismo e nazismo eram forças nacionalistas.
Trump
se elegeu com uma mensagem anti-globalização, nacionalista e, para alguns, até
nativista. Sua vitória não seria uma mensagem de mal-estar com relação à essas
postura globalista das instituições?
Os
EUA têm muitas diferenças internas. O percentual de população com nível
superior é de 52% na Califórnia mas de 15% a 20% em Utah, por exemplo. Logo,
não existe uma América única. E há outra coisa. A formação nos EUA é baseada em
uma cultura técnica, não humanista. Este é um problema enorme, porque se a
cultura técnica prevalece sobre a cultura humanista, não existe um edifício
cultural que possa barrar o autoritarismo e o populismo. A cultura americana é
técnica, são engenheiros, biólogos, químicos etc. Nos últimos 50 anos, aliás,
está acontecendo a destruição do humanismo, no mundo inteiro e no Brasil
também. Se um jovem vai à universidade, ele estuda técnicas, não humanidades.
Até um país humanista, ou, melhor dizendo, espiritualista, como a Índia, está
passando por esse processo. Uma outra coisa que não existe nos EUA é a cultura
de classe social. Quem sabe que é pobre não pode pensar que sua salvação virá
de um homem rico.
Um
dos argumentos de Trump em sua campanha vitoriosa foram suas supostas
qualidades como empresário. São Paulo acaba de eleger um prefeito que se
autointitula gestor, o que parece ser uma tendência. O que está por trás dela?
Se
ele é gestor de uma empresa, ele busca o lucro. E o prefeito de uma cidade,
quer o quê? Não é suficiente nem a cultura tecnológica nem a econômica para
governar uma cidade ou um estado. A cultura humanista é indispensável. Ela
mostra o que fazer, enquanto que a cultura técnica mostra como fazer, sendo
apenas um meio, não um fim.
A
xenofobia e a rejeição a imigrantes têm alguma coisa a ver com isso?
É
uma outra consequência da ignorância humanista e, mesmo, um grande erro
econômico. A Europa precisa de jovens, e os imigrantes são todos jovens. A
mesma coisa acontece nos EUA. É um erro econômico, mas é acima de tudo um erro
do ponto de vista humanista.
O
senhor ficou conhecido pela ideia do ócio criativo. O senhor vê futuro para ela
mesmo quando um país como a França se rende à ideia de flexibilização das leis
trabalhistas?
São
duas coisas diferentes. Eu entendo ócio criativo pela possibilidade para todos
que fazem trabalho criativo de unir trabalho, estudo e lazer. Eu e você estamos
aqui, agora, trabalhando. Estamos trocando ideias, logo estamos estudando. E eu
estou me divertindo. É fazer essas três coisas ao mesmo tempo. Como o
percentual de trabalho de ordem criativa está crescendo no mundo pós-industrial
e o trabalho não criativo está terminando, há mais espaço para o ócio criativo.
Mesmo
quando governos tentam dar a possibilidade a empregadores de aumentar a jornada
de trabalho?
Esse
sistema de flexibilização ao que você se refere está sendo usando em todo o mundo
e é criminoso. Isso leva, eventualmente, à perda de trabalho. A primeira fase é
a flexibilização, e a segunda é a demissão. Em vez de a empresa ter necessidade
de cem trabalhadores, vai para dez. Em 1850, 94% era do trabalho era operário.
Hoje, 33% são trabalho operário, 33% são serviços, finanças etc., e 33% são
considerados criativos. Em 2030, 50% serão trabalho criativo, 25%, operário, e
25%, serviços, finanças etc. Mas não só o trabalho do operário está sendo
substituído por inteligência artificial, parte do trabalho criativo também.
Quando você escreve um artigo, a tendência é que a pesquisa que antecede a
escrita seja feita por inteligência artificial, por exemplo.
Essa
transição gera muita ansiedade na sociedade...
Essa
ansiedade é necessária.E eu acho até que ela é pouca (para a situação)! Mas eu
acho que duas coisas são urgentes. A primeira dela é reduzir a carga de
trabalho. Se você trabalha dez horas hoje, no futuro você trabalharia cinco
para que outra pessoa também possa trabalhar. O passo adiante é muito mais
problemático, porque para um número crescente de pessoas não encontrará nenhum
trabalho. Neste ponto, o problema será como redistribuir a riquezas.
Você
concorda com Thomas Piketty quando ele propõe uma taxação das grandes fortunas
com o objetivo de reduzir a concentração de capital?
Sim,
claro! Mas eu não acredito que os ricos vão um dia pagar imposto. E agora? Aí
os conflitos sociais aumentam. Os conflitos urbanos diminuíram, mas a violência
social tende a aumentar. Ela se dá de muitas formas, como revoluções e guerras.
O
senhor é tido como otimista. Hoje, o senhor me parece bastante pessimista, não?
Antes
de chegar nesses estágios, eu ainda acredito que vamos chegar a uma solução. Eu
acho que antes de chegarmos a uma revolução enorme e violenta, seja possível
que passemos por pequenas revoluções mais simples. Em meu próximo livro, que se
chama "Uma simples revolução", eu detalho quais são elas.
E
quais seriam?
Uma
delas é justamente uma redução drástica da jornada de trabalho. Não para 35
horas semanais, mas para 15 horas. Segundo, aumentar drasticamente o
investimento em formação, de escolas a universidades, passando até por
congressos e conferências. O outro passo é a superação do neoliberalismo,
porque a situação atual é a filha dele. Desde a décadas de 1980, com Reagan e
Tatcher, o mundo vive sob ele.
Matteo
Renzi, na Itália, se enquadra nessa classificação?
Ele
é um neoliberal que diz ser social democrata. É o oposto de Fernando Henrique
(Cardoso), que se dizia neoliberal mas era um social-democrata.
O
senhor falou em redução da jornada de trabalho e investimento pesado em
educação. O Brasil parece estar indo nessa direção?
Não,
mas nenhum país do mundo está. Isso é a prova de que eu tenho razão! Na minha
opinião, um dos motivos para que dificultam a redução da jornada é o fato de
que os trabalhadores que estão empregados e os sindicatos que o representam não
querem isso. Quem ficar sem trabalho vai querer que isso ocorra. Como fazer isso?
A solução pode ser semelhante ao Uber. Esses profissionais desempregados podem
criar uma rede e, por um tempo, trabalhar de graça. Os empregadores vão
preferir essa mão-de-obra gratuita àquela que é paga. Depois de um tempo, essa
rede deixa de trabalhar de graça, e os empregadores serão obrigados a ceder.
Essa é uma possível revolução, pequena, simples, sem violência e sem
terrorismo.
O
senhor acha que isso que essas tais “pequenas revoluções” são de fato possíveis
ou são apenas um desejo do senhor?
Se
formos inteligentes, creio que esta é a única saída. Na Itália, há 2 milhões de
jovens desempregados. Com a evolução da inteligência artificial, esse número
pode ir para seis ou sete milhões. Hoje, esses jovens têm pais que trabalham e
que os suportam. É o que eu faço com a minha filha.
O
senhor é um leitor de obras brasileiras. Qual foi o último livro que lhe
interessou?
O
daquela jornalista de economia, Miriam Leitão ("História do Futuro").
Quando lancei o livro "O Futuro Chegou" aqui, essa mesma jornalista
fez uma crítica muito violenta contra ele. Já eu acho o livro dela muito
bonito. Também gostei de "Brasil: Uma Biografia", de Lilia Schwarcz
(com Heloisa Murgel Starling). Outro que li recentmente foi "Os Pensadores
que Inventaram o Brasil". E leio sempre Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro,
Sérgio Buarque de Hollanda.
A
percepção sobre o Brasil piorou bastante no mundo nos últimos anos, não?
A
imagem do Brasil melhorou em uma constante desde o início do governo FH até o
primeiro governo Dilma, porque o Produto Interno Bruto (PIB) aumentou. Para
mim, que sempre venho ao Brasil, ficou difícil entender. O Dilma foi eleita com
52%,, depois, em dois meses, começaram a falar de impeachment. Não é
comprreensível. Mas acho que nem os brasileiros entenderam.
O
senhor continua otimista com o Brasil mesmo diante de toda essa situação?
Sim,
claro. O problema do Brasil é mais o Trump do que a Dilma. O Brasil também
corre um grave risco psicológico, o de ter um álibi para tudo o que não
funciona: "Foi culpa da Dilma, do PT". Isso é um álibi que impede o
Brasil de achar as razões verdadeiras.
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Reportagem por
Rennan Setti, Enviado especial
FONTE: http://oglobo.globo.com/economia/sociologo-defende-que-se-facam-pequenas-revolucoes-20538198