Mauro Santayana*
Os trovadores medievais, mesmo habitantes de um tempo quase imóvel, cantavam os tempos idos, os amigos e as amadas mortas ou perdidas, com a pergunta: Ubi sunt? Onde estão os intelectuais humanistas, que fermentaram o século passado com seu bravo testemunho? Essa é a pergunta que nos sugere a leitura de artigos de Albert Camus, alguns deles publicados em 1944, quando, libertada Paris, os combates ainda continuavam no Leste. Muitos eram cristãos, outros marxistas, e se destacavam os que não se socorriam de qualquer seita, mas defendiam o primado do homem sobre a barbárie do ódio racial e de classe.
Em dezembro de 1944, Pio XII defendeu a democracia ocidental. Em artigo publicado no dia 26, coincidindo com o Natal, Camus denunciava a cumplicidade da Santa Sé naqueles anos. “Já que temos a ocasião, queremos dizer que a nossa satisfação não está desprovida de pesar. Há anos esperávamos que a maior autoridade espiritual destes tempos condenasse claramente os atos das ditaduras”.
Mais adiante, o autor de L’étranger é mais contundente: “Nosso desejo secreto era que essa voz se elevasse no momento mesmo em que triunfava o mal e em que as forças do bem se encontravam amordaçadas. Esta voz, que acaba de ditar ao mundo católico que partido tomar, era a única que poderia ser ouvida no meio das torturas e dos lamentos. A única que poderia ter negado, tranquilamente e sem medo, a força cega dos tanques”.
Camus era contemporâneo da geração que assistira à ascensão do fascismo e do nazismo. Os intelectuais se dividiam entre os que viam a ordem da força com entusiasmo, e aderiram aos novos bárbaros, e os que resistiram, em defesa da dignidade dos homens. Entre os que se entregaram sabujamente ao nazifascismo se destacaram o norueguês Knut Hamsum e o poeta norte-americano Ezra Pound. Ambos foram salvos, no julgamento por traição, pela atenuante de demência senil.
Camus era 12 anos mais jovem que seu ídolo, André Maulraux, o mais decidido combatente pelo humanismo no século. Próximo dos comunistas durante a insurreição de Xangai, que inspirou seu romance La condition humaine, Maulraux foi dos primeiros a denunciar o barbarismo nazista, no início dos anos 30. Em 36, partiu na primeira hora para defender a jovem República contra a selvageria das falanges de Franco. Piloto das forças republicanas, participou dos combates que lhe dariam material para L’espoir, a mais forte novela sobre a guerra civil espanhola. Combatente nos primeiros meses da Segunda Guerra, membro da Resistência, preso pelos nazistas e libertado pelos companheiros de maquis, Maulraux, que se desiludira do stalinismo, será o grande colaborador de De Gaulle até sua morte. Camus e Malraux eram tanto mais comprometidos com o humanismo quanto mais equidistantes do dogmatismo da Igreja e da ortodoxia dos comunistas. E isso lhes deu a grande autoridade na defesa de suas ideias.
Mas, tanto entre os comunistas quanto entre os católicos, houve heróis e mártires na grande luta do século. Em 1938, o católico Georges Bernanos, o romancista de Sous le soleil de Satan, se horrorizou com o Acordo de Munique, pelo qual seu país e a Grã-Bretanha entregaram o cordeiro tcheco ao lobo germânico. Denunciou corajosamente o fato, em Scandale de la verité, veio para o Brasil com a família e tentou ser fazendeiro, sem êxito, em Cruz das Almas, Minas, e influenciou pessoalmente uma geração de escritores mineiros, entre eles Hélio Pellegrino, Otto Lara Resende, Fernando Sabino, Edgar de Godói da Matta Machado.
Hoje, com as bandeiras do ódio racista desfraldadas em Roma, em Berlim, em Paris, em Londres, em Nova York – e outros lugares – cabe a velha pergunta: ubi sunt? Onde se encontram os intelectuais humanistas, dispostos a lutar em defesa do homem? Onde se encontram as novelas de denúncia, como Darkness at Noon, de Koestler, For whom the bells tolls, de Hemingway? Foram substituídas pelos livros de autoajuda e de evasão, próprias a uma civilização domada pelo medo e o egoísmo, e sob o fundamentalismo mercantil.
Mas não percamos a esperança. Talvez ainda vejamos Ratzinger desculpar-se diante da História por retardar o processo de beatificação do mártir dom Romero, assassinado junto ao altar, e, como conselheiro de Wojtyla, ter contribuído para que o franquista Escrivá de Balaguer, rico fundador da Opus Dei, fosse “santificado”.
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