domingo, 21 de março de 2010

Badulaques 141

Rubem Alves*


O SOPRO DA VIDA

Digo sem o menor constrangimento que a Raquel, minha filha, é uma mulher extraordinariamente forte, paisagista e arquiteta que faz coisas lindas. Foi ela que planejou e executou minha casa e meus jardins. Mas quando nasceu ela era uma criança fraquinha cujos olhos vivos diziam que ela tinha uma enorme vontade de viver. Tinha uns dois meses. O médico receitou um composto vitamínico com a consistência de uma emulsão. As emulsões, vocês sabem, são pegajosas, não têm consistência líquida, são difíceis de engolir. Aconteceu, então, quando lhe demos a primeira colher da tal emulsão. Ela ficou repentinamente silenciosa, parou de fazer aqueles barulhinhos com a boca que uma criança de dois meses faz. Olhamos por alguns segundos para ela para ver o que estava acontecendo. Nenhum ruído. Ela só nos olhava. Foi então que nos demos conta de que a emulsão estava presa na sua garganta e ela não conseguia respirar. Estávamos, então, diante daquela menininha que queria viver mas estava morrendo à nossa frente sem que nada pudéssemos fazer. Sacudimos, viramos de cabeça para baixo, pressionamos o tórax, demos tapas nas costas, tudo inutilmente. A Raquel estava morrendo asfixiada diante dos nossos olhos. Foi então que algum anjo me disse: respiração boca a boca! Deitei a Raquel, abri sua boquinha, apliquei a minha boca sobre a dela e soprei. Foi só uma vez. Uma grande inalação de ar encheu os seus pulmões! Ela estava viva! Não me lembro do que sentimos. Nem sei se foi alegria. O nosso medo tinha sido grande demais. Simplesmente caímos ajoelhados ao lado da sua cama e choramos...

CARCASSONE

Estive brincando com um pequeno relógio de sol de que se valiam os peregrinos a caminho de Santiago de Compostela como marcador das suas horas.

Estranho que se possa usar um relógio de sol como brinquedo. Porque relógios de sol são, normalmente, objetos grandes e pesados, feitos ou de pedra ou ferro. Mas esse relógio é diferente. Ele é do tamanho de um daqueles antigos relógios de bolso, com dois milímetros de grossura. Prodígio da tecnologia medieval. Comprei-o numa lojinha da cidade de Carcassone, no sul da França. Dizem que Carcassone, dentre todas as cidades medievais que restaram, é a mais bem preservada. Um turista que viaje por aquela região não pode perdê-la.

Carcassone era ponto de descanso para os peregrinos. Aqueles minúsculos relógios de sol, eles os levavam como colares à volta do pescoço para facilitar a consulta ao sol.

Gravada no metal do meu relógio está uma sóbria advertência para um viajante: “Tempus Fugit”, o tempo está fugindo.

Podia-se comprar os mais variados tipos de relógio de sol, de pedra, madeira, ferro, todos eles com a mesma inscrição.

Mas por toda a cidade, nas inúmeras lojinhas freqüentadas pelos turistas, vendiam-se também objetos com uma outra inscrição: “Carpe Diem”, que quer dizer “colha o dia” como se colhe uma fruta. Colha hoje porque amanhã – quem sabe o que nos reserva o amanhã? - estará podre... O tempo ignora as “poupanças”...

“Tempus Fugit”, “Carpe Diem”. A presença dessas duas frases latinas numa mesma cidade deixou-me intrigado. E isso porque, muitos anos antes de visitar Carcassone eu havia escolhido precisamente essas duas frases como resumo da minha filosofia de vida. Seria uma coincidência?

Veio-me então a suspeita inevitável: será que em algum século passado eu vivi nessa cidade de Carcassone e que essas frases tivessem ficado gravadas na minha alma até que um acidente qualquer as fizesse emergir do fundo do mar até a superfície da minha consciência? Qualquer pessoa que visitar meu escritório verá esculpidas em madeira essas duas frases: “Tempus Fugit” e “Carpe Diem”.

Meu corpo é uma ampulheta. A areia fina não pára de se escoar. Chegará o momento em que o último grão de areia vai cair. Cada momento é único, grão de areia que cai e não volta.

A ampulheta silenciosamente me interroga. Ela não me pergunta sobre a morte por saber que ninguém sabe as respostas. Pergunta-me sobre a minha vida. “O que é que você vai fazer enquanto a areia se escoa?”

Os peregrinos faziam sua penosa viagem porque estavam convencidos de que a sua escolha era a escolha essencial naquele momento de suas vidas.
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Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
Fonte: Correio Popular online, 21/03/2010

Um comentário:

  1. CARPE DIEM realmente me intriga. Sei que meu contador de "estórias" favorito (Rubem) vive intensamente. Mas há um preço muito caro, CARPE DIEM rapidamente leva-nos à exaustão. Não seria o caminhar, o degustar, apreciar... os verdadeiros prazeres da vida?

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