sábado, 6 de março de 2010

"Para lutar contra a pedofilia, a abolição do celibato dos padres"

Hans Küng*
"A obrigação do celibato constitui hoje a causa principal do déficit catastrófico no número de padres, do abandono – carregado de consequências – da prática da comunhão e, em muitos casos, do desmoronamento da assistência espiritual personalizada."

"Qual é a melhor formação para as gerações futuras de padres?", pergunta o renomado teólogo católico. "A abolição da regra do celibato, raiz de todos os males, e a abertura da ordenação às mulheres", responde. Segundo ele, "os bispos sabem bem disso, mas é preciso que tenham a coragem de dizer isso em voz alta a inteligível".
A opinião é do teólogo suíço-alemão Hans Küng, presidente da Fundação Ética Mundial, em artigo para o jornal Le Monde, 05-03-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Os numerosos abusos sexuais que membros do clero católico cometeram em crianças e adolescentes, dos Estados Unidos à Alemanha, passando pela Irlanda, não trazem à Igreja Católica só um enorme prejuízo em matéria de imagem. São também reveladores da crise profunda em que ela está se debatendo.

Pela Conferência Episcopal Alemã, foi o seu presidente, o arcebispo de Friburgo, Robert Zollitsch, que tomou posição publicamente. O fato de ter qualificado esses casos de abusos sexuais como "crimes odiosos" e de que, consequentemente, na sua declaração do dia 25 de fevereiro, a Conferência Episcopal tenha pedido perdão a todas as vítimas, certamente é um primeiro passo em direção a um retorno à ordem. Mas ele deveria ser seguido por outros passos. A declaração de Dom Zollitsch comporta pelo menos três sérios erros de apreciação que é preciso denunciar.

Primeira afirmação: os abusos sexuais de padres não têm nada a ver com o celibato. Objeção! Certamente é incontestável que esse gênero de escândalos ocorre também nas famílias, escolas, associações e igualmente no seio de Igreja em que a regra do celibato dos padres não existe. Mas por que o fenômeno se difundiu tanto justamente nas Igrejas católicas dirigidas por homens não casados? Bem entendido, esses desvios não são exclusivamente devidos ao celibato.

Mas essa é estruturalmente a expressão mais relevante da relação distorcida que a hierarquia católica tem com a sexualidade, a mesma que determina a sua relação com a questão da contracepção e de muitas outras.

Porém, basta abrir o Novo Testamento: se Jesus e Paulo preferiram, a título exemplar, não se casar para ficar a serviço da humanidade, mas deixaram ao indivíduo uma liberdade de escolha total nesse quesito. No Evangelho, o celibato só pode ser considerado como uma vocação livremente consentida (Charisma) e não como uma lei universalmente imposta.

Paulo se opôs àqueles que, já então, defendiam que "é bom que o homem se abstenha de mulher": "Para evitar a imoralidade, cada homem tenha a sua esposa, e cada mulher o seu marido". (1 Coríntios 7, 1 e seguintes), respondia-lhes o apóstolo. Segundo a primeira epístola a Timóteo, "é preciso, porém, que o bispo seja irrepreensível, esposo de uma única mulher (3, 2).

Pedro, assim como os outros discípulos de Cristo, esteve casado durante todo o período do seu apostolado. Foi esse o caso, durante diversos séculos, para os bispos e os padres de paróquia, o que, como todos sabem, se perpetua hoje em dia nas Igrejas do Oriente, assim como entre os uniatas que ficaram ligados à Roma e na ortodoxia em seu conjunto, pelo menos no que se refere aos padres. É justamente o celibato elevado a regra que contradiz o Evangelho e a tradição do catolicismo primitivo. É, portanto, conveniente aboli-lo.

Segunda afirmação: é "totalmente errôneo" reportar esses casos de abuso sexual a uma falha no sistema da Igreja. Objeção! O celibato ainda não estava em vigor no primeiro milênio da era cristã. No Ocidente, ele foi instituído no século XI, sob a influência de monges (que eram celibatários por escolha). Ele é devido ao Papa Gregório VII, o mesmo que obrigou o imperador do Sacro Império Romano-Germânico a se ajoelhar diante dele em Canossa (1077), e fez isso apesar da oposição virulenta do clero italiano e mais ainda do clero alemão.

Na Alemanha, além disso, somente três bispos ousaram promulgar o decreto papal. Os padres que protestavam eram contados aos milhares. Em uma petição, o clero alemão perguntou "se o Papa não conhecia a palavra do Senhor: 'Quem puder compreender, compreenda'" (Mateus 19, 12). Nessa única passagem que se refere ao celibato, Jesus se expressa em favor do caráter voluntário dessa reforma do modo de vida.

A regra do celibato deveria, portanto, se tornar – ao mesmo tempo em que o absolutismo papal e o reforço do clero – em um pilar essencial do "sistema romano". Contrariamente ao que ocorreu nas Igrejas do Oriente, o clero ocidental, tão devoto do celibato, parece por isso completamente separado do povo cristão: como uma classe social dominante singular, fundamentalmente acima dos leigos, mas totalmente submissa à autoridade pontifícia romana. Ora, a obrigação do celibato constitui hoje a causa principal do déficit catastrófico no número de padres, do abandono – carregado de consequências – da prática da comunhão e, em muitos casos, do desmoronamento da assistência espiritual personalizada.

Uma evolução que é dissimulada pela fusão de paróquias, por trás do eufemismo de "unidades de assistência espiritual" que são confiadas a párocos já totalmente sobrecarregados. Portanto, qual é a melhor formação para as gerações futuras de padres? A abolição da regra do celibato, raiz de todos os males, e a abertura da ordenação às mulheres. Os bispos sabem bem disso, mas é preciso que tenham a coragem de dizer isso em voz alta a inteligível. Eles teriam do seu lado a grande maioria da população e também os católicos, dos quais as pesquisas recentes mostram que se pronunciam em favor do casamento dos padres.

Terceira afirmação: os bispos já estão suficientemente cheios de responsabilidades. O fato de que, finalmente, medidas de explicação e de prevenção sejam adotadas é uma iniciativa louvável. Mas o episcopado não tem talvez a responsabilidade de décadas de práticas de acobertamento dos casos de abuso sexual, que muitas vezes tiveram como único efeito a transferência do delinquente, visando apenas a reforçar a porta de ferro? Aqueles que ontem abafaram os escândalos são hoje os mais qualificados para iluminar tudo? Uma comissão independente não seria uma opção melhor?

Até hoje, quase nenhum bispo reconheceu a sua cumplicidade. No entanto, algum deles poderá argumentar que se limita a seguir as ordens de Roma. No Vaticano, com base no mais absoluto segredo, a discreta Congregação para a Doutrina da Fé enfrentou todos os casos graves de desvio sexual cometidos por membros do clero, que, por sua vez, chegaram à mesa do seu prefeito, o cardeal Ratzinger, entre 1981 e 2005. Ainda no dia 18 de maio de 2001, este último enviava aos bispos do mundo inteiro uma carta solene sobre as penosas faltas ("Epistula de delictis gravioribus"). Os casos de abusos sexuais foram postos sob "segredo pontifício" ("Secretum pontificium") e classificados como ofensa que exigia uma punição eclesiástica.

A Igreja, portanto, não deveria esperar também do Papa, em colegialidade com os bispos, um mea culpa? E isso – à guisa de reparação – com a possibilidade de que a regra do celibato, sobre a qual o Concílio Vaticano II não se manifestou, seja enfim livre e abertamente reconsiderada.

Com a mesma franqueza para abordar, enfim, de peito aberto a questão dos próprios abusos sexuais, seria preciso enfrentar a discussão da sua causa essencial e estrutural: a regra do celibato. Eis o que os bispos deveriam propor firmemente e sem meias palavras ao Papa Bento XVI.
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*Hans Küng, presidente da Fundação Ética Mundial
Fonte: IHU - 06/03/2010

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