quinta-feira, 11 de março de 2010

Fim do mundo

Dulce Critelli*

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[...] FRENTE À IMPOSSIBILIDADE DE DEFINIÇÕES PRECISAS SOBRE O FUTURO, PEDIMOS AJUDA AO PASSADO

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Deve ser paranoia minha, mas, no meio de tantas enchentes, desmoronamentos, terremotos, nevascas e tsunamis, venho me sentindo personagem do filme "O Dia depois de Amanhã". Temo que o que está acontecendo na realidade seja cópia da ficção!

Minha mãe assiste às notícias, lembra meu avô afirmando que o mundo se acabaria no ano 2000 e suspeita de que pudesse ter razão. Para ajudar, o motorista de táxi, quando soube que eu dava aulas de filosofia, me pergunta se acredito que o mundo irá acabar em 2012. Estão dizendo, ele diz, mas será?

Lembra Nostradamus e a previsão de terremotos, guerras, dilúvios... E refaz a pergunta: será? Será que tudo o que estamos vivendo já estava marcado para acontecer? Acho que só teremos a pergunta e nenhuma resposta, desconfia.

É curioso. Frente à impossibilidade de definições sobre o futuro, a nossa necessidade de explicação e controle sempre pede ajuda ao passado. Parece que nosso espírito sossegaria se soubesse que os acontecimentos que não pode compreender nem alterar já estivessem desde sempre definidos.

Os jogos de adivinhação cumprem essa expectativa de que o futuro se explique por meio do passado. Consultamos oráculos, cartas e búzios na intenção de desocultar o futuro ou o destino e na suposição de que não estão em aberto.

Queremos que o futuro seja real antes mesmo de existir. Ao menos, desejamos que as razões do que vem pela frente já estejam tecidas e nos sejam reveladas. É uma forma de nos assegurarmos de nós mesmos e de aplacar o medo e a ansiedade que nos desestabilizam.

Também recorremos às religiões na expectativa de respostas para a inquietação que incessantemente nos assola: de onde viemos e para onde vamos? Por que viemos e por que temos que partir? Qual o sentido da vida?

Pois, é o sentido da vida que queremos decifrar quando nos alarmamos diante da possibilidade do fim do mundo. O que mais tornaria a existência do próprio mundo sem propósito?

O que mais, além do próprio fim do mundo, tornaria tão sem propósito a presença do homem nele? Por que teríamos sido postos no mundo se não podemos interferir e evitar que ele se acabe?

Eu, por minha vez, quando no desassossego diante do que não posso prever, também recorro ao passado. Vou atrás dos sentimentos de abrigo e segurança que tenho guardados.

Volto para o jardim da casa da minha infância. Para a rua das brincadeiras, que, cercada pelas nossas casas, nos oferecia todo o resguardo de que precisávamos. Esse passado não me explica nenhum futuro. Só me fala da vida sem sequestros, Aids, linhas vermelhas e tráfico de drogas, sem tantas coisas que parecem nos espreitar todos os dias e nos põem sob a intranquilidade do perigo...

Faz quanto tempo que a vida era assim? Quarenta, 50 anos...? E o que são 50 anos na linha do tempo da humanidade? Quase nada. Quase ontem.

Quase hoje pela manhã. Tão perto de nós, mas nunca mais acessível.

Quando penso no fim do mundo, lembro-me mesmo é de um mundo que a memória me diz estar perdido para sempre. E, então, sinto saudade desse tempo que pude conhecer e que não foi nenhum furacão que varreu...
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*DULCE CRITELLI , terapeuta existencial e professora de filosofia da PUC-SP, é autora de "Educação e Dominação Cultural" e "Analítica de Sentido" e coordenadora do Existentia - Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana
Fonte: Folha online, 11/03/2010

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