"Emmanuel Mounier, fundador da revista Esprit, prematuramente falecido aos 45 anos, no dia 22 de março de 1950, se dedicou, diante da 'grande crise', a uma análise espectral da desordem econômica, tendo ao mesmo tempo a preocupação de perscrutar suas causas profundas, que são, a seu ver,
da ordem do 'espiritual'."
Essa é a opinião de Guy Coq, presidente da Association des Amis d'Emmanuel Mounier, Jacques Delors, ex-presidente da Comissão Europeia, e Jacques Le Goff, professor de direito público da Universidade de Brest, em artigo para o jornal Le Monde, 22-03-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Michel Serres compara a crise atual a "uma falha gigantesca no nível das placas profundas que se movem lentamente e se rompem imprevistamente nos abismos tectônicos invisíveis". Seria um erro, diz, localizar seu epicentro na superfície, no "visível" financeiro e econômico. Situa-se em um nível muito mais profundo, na escolha dos valores de orientação que constituem o ethos de um tipo de sociedade, no sentido contrário de "acreditar que uma sociedade viva só de pão e de jogos, de economia e de espetáculo, de poder de aquisição e de mídia". Uma opção tão indigente expõe fatalmente um grave desvio.
Lendo Michel Serres, pensa-se em Emmanuel Mounier, fundador da revista Esprit, prematuramente falecido aos 45 anos, no dia 22 de março de 1950. Diante da "grande crise", ele se dedicou a uma análise espectral da desordem econômica, tendo ao mesmo tempo a preocupação de perscrutar suas causas profundas, que são, a seu ver, da ordem do "espiritual".
Sem conotação religiosa explícita, essa palavra designa o conjunto das escolhas antropológicas que estão no fundamento de uma sociedade. Responde à pergunta que quase se perdeu de vista: que tipo de existência individual e coletiva queremos, que não se feche na busca vã de uma "felicidade" reduzida à maximização do prazer, do poder, do dinheiro, do corpo ou do conforto? De onde deriva o fato de que as condições de acesso ao bem-estar tenham se transformado em fins tirânicos?
Um discurso de uma "boa alma", se dirá, indiferente ao drama daqueles que se chocam com as dificuldades da existência! Nada disso. "Geralmente só aqueles que não são mais obsessionados pela neurose do pão cotidiano desprezam o aspecto econômico", lembra Mounier. "Para convencê-los, seria preferível um passeio pela periferia do que argumentos". Mas logo acrescenta: "Disso não deriva que os valores econômicos sejam superiores aos outros: o primado do aspecto econômico é uma desordem histórica da qual é preciso sair".
E essa "desordem estabelecida" resulta, a seu ver, de um erro inicial sobre o homem, de uma terrível subversão, da qual ele encontra três manifestações patológicas:
1. O autismo do mercado que, sob a aparência de uma pseudoneutralidade moral, se elevou a timoneiro da sociedade com a usurpação das funções de governo. Se lhes cabia contribuir com a regulação dos fluxos, por que então esse motor cego por natureza se arrogou a condução das coisas humanas, senão graças à abdicação do político em nível nacional e internacional e à renúncia da sociedade? Tendo se tornado um barco à deriva, não é preciso se admirar que "a economia capitalista tenda a se organizar completamente, fora da pessoa, sobre um fim quantitativo, impessoal e exclusivo".
Privado de uma direção razoável e de esfriamento pelo social, pelo ecológico, pelo cultural, pelo ético, esse motor chegou naturalmente a se levantar como instância suprema de sentido, ao preço de um nonsense destrutivo que está quase hipotecando o próprio futuro do planeta. "O homem contemporâneo se crê absurdo. Talvez seja só insensato".
2. Nada revela melhor essa falta de regras do que a tendência tão geral de eliminar qualquer pergunta sobre o que Mounier chamava de "ordem das necessidades", sobre o conteúdo da riqueza. Quais são as necessidades humanas cuja satisfação contribui com a realização da nossa "vocação" em uma perspectiva de cumprimento?
Pergunta estranha, se dirá! Na democracia, não cabe talvez a qualquer um saber onde se encontra a sua própria "felicidade"? E com qual direito uma sociedade se atribuiria a competência em um âmbito que cabe à livre disposição de cada cidadão? Viu-se qual resultado se obteve nos regimes que pretendiam impôr uma nova hierarquia das necessidades que se considerava derivar de um projeto libertador!
Não se trata disso. A preocupação de Mounier, como mais tarde a de Jacques Ellul, de Ivan Illich ou até de Jean Baudrillard, objetivava destruir o quieto torpor que nos faz considerar como "livre" o que, na realidade, é só uma normalidade imposta por uma mecânica louca, que se joga sobre o duplo registro da sedução e do sentido de culpa. E isso ao preço de uma corrida desenfreada a satisfações sempre mais fictícias e ao preço do esquecimento das necessidades fora do mercado, fora das relações monetárias: a atenção, a disponibilidade, a qualidade das relações interindividuais e sociais, a presença e o empenho na pólis, todos valores que fogem à ordem do quantificável e que se referem ao essencial.
A força de reflexão do fundador da Esprit está na sua capacidade de sacudir e de desencantar para nos arrancar do sonho de olhos abertos gerador de inquietação, de tensão estéril, de indisponibilidade seja com relação aos outros, seja com relação a si mesmo, em resumo, da alienação, para recolocar os pés sobre o chão do indispensável, sobre o núcleo duro da pessoa, em que o "espiritual", verdadeira "infra-estrutura", diz ele, encontra o seu lugar. Sem ponto de vista externo ao sistema, nada é possível.
3. É também a condição de libertação com relação ao trabalho. De onde vem de fato a manutenção da sua influência anormalmente intensa sobre a sociedade senão, por uma parte essencial, da espiral constantemente ascendente das necessidades e dos desejos infinitos? "Trabalhar mais para ganhar mais" é a sua máxima. Mas para que serve tudo isso quando o nível de vida alcançado é satisfatório? "Para que serve?", dizia Jacques Ellul. É o problema não da frugalidade, mas da moderação dos desejos materiais além de um certo limiar. Mounier indicava a direção. "Regular o consumo sobre uma ética das necessidade humanas recolocada na perspectiva total da pessoa".
Essas afirmações remontam a 1936. A sua pertinência provavelmente nunca foi tão forte.
___________________Fonte: IHU, 23/03/2010
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