sexta-feira, 12 de março de 2010

Húbris pós-crise

Márcio Garcia*
Baseados na coleta seletiva de indicadores econômicos, alguns ainda insistem em ratificar o comentário do presidente Lula de que a crise financeira internacional teria chegado ao Brasil como uma marolinha. Com a firme retomada ora em curso, dissemina-se a sensação de autoconfiança, criando um perigoso clima de complacência que ameaça o aproveitamento eficaz do grande potencial de crescimento da economia brasileira. Para evitar que isso ocorra, é necessário ter uma avaliação correta dos motivos pelos quais o Brasil enfrentou bem a crise financeira mundial.
Com o objetivo de contribuir para tal debate, Fabio Giambiagi e eu editamos o livro "Risco e Regulação" (Editora Campus), lançado esta semana. Para avaliar as razões da resiliência da economia brasileira e, em especial, de seu setor financeiro, à crise, recorremos a especialistas de diferentes áreas. Participaram do volume ex-ministros da Fazenda, ex-presidentes e diretores do Banco Central, acadêmicos e participantes do mercado financeiro. O resultado é um rico conjunto de contribuições abordando os aspectos mais relevantes da crise mundial, seus efeitos sobre a economia brasileira e as lições que devemos tirar.
Não há uma visão consensual. Afinal, lembrando uma piada surrada, quando dois economistas discutem, há pelo menos três opiniões distintas! Mas há temas comuns que perpassam diversos capítulos. Inicialmente, é importante ressaltar que foi a continuidade de boas políticas macroeconômicas desde o Plano Real que constituiu a base da solidez que nossa economia demonstrou durante a crise. A simples comparação com a Argentina leva a conclusões irrefutáveis. Em 1994, quando afinal domamos a alta inflação, nosso vizinho já o tinha feito desde 1990. Hoje, nossos vizinhos estão às voltas com múltiplos problemas econômicos, vendo ressurgir a inflação, apesar de mascarada por números fictícios produzidos por seu desmantelado e desacreditado instituto estatístico. Embora, no clima eleitoral que hoje impera no Brasil, gaste-se muito tempo discutindo quem é o responsável pelo sucesso atual, o mais importante foi a continuidade de boas políticas macroeconômicas.
O segundo conjunto de boas políticas reside na regulação e supervisão financeiras que vêm sendo praticadas há muitos anos pelo Banco Central e pelos demais órgãos reguladores. Por se tratar do tema central do livro, a regulação e supervisão financeiras são destrinchadas em diversos capítulos, alguns escritos pelos próprios criadores de diversas das medidas que compõem o cerne da regulação financeira no Brasil. O contraste com as falhas ocorridas em outros países, notadamente nos EUA, permite apreciar os benefícios do conservadorismo de nossa regulação. É também analisado o funcionamento de diversos aspectos da infraestrutura de nosso sistema financeiro, como o funcionamento dos mercados dos derivativos financeiros, que tantos danos causaram nos países desenvolvidos.
O elemento detonador da crise nos EUA foi o desmoronamento dos derivativos de crédito. A crise, então, espalhou-se por diversos outros países, cujas instituições financeiras estavam fortemente investidas nesses derivativos. Em contraste, nossa regulação impediu que as instituições financeiras e investidores daqui detivessem grandes posições nesses ativos e derivativos estrangeiros, o que nos ajudou a passar pela crise. Tampouco houve o surgimento de um mercado interno de derivativos de crédito. Embora a regulação tenha também tido importância ao impedir os excessos registrados nos EUA, a maior responsabilidade pela inexistência do mercado desses derivativos no Brasil advém de um defeito da nossa economia, qual seja, o ainda reduzido tamanho do crédito em nosso país e, sobretudo, do crédito imobiliário. É de se presumir que, se a crise tivesse demorado mais alguns anos para ocorrer, os danos em nosso sistema financeiro talvez tivessem sido maiores. Ter boa sorte é ingrediente de qualquer empreendimento bem sucedido. Além disso, sabedores que somos, agora, das falhas que ocorreram nos países desenvolvidos, podemos aperfeiçoar nossa regulação financeira para evitar os erros por eles cometidos, como, por exemplo, os excessos do sistema de "originar e distribuir" hipotecas nos EUA.
Os problemas que diversas empresas brasileiras, algumas muito grandes, tiveram com derivativos cambiais, e que as abalaram fortemente, são também analisados no livro, do qual consta um capítulo específico totalmente dedicado ao tema. Várias lições são tiradas e medidas propostas, algumas das quais já implementadas. É de se presumir que, no futuro, haverá menos espaço para que empresas não financeiras, portanto fora da competência da supervisão do Banco Central, possam se constituir em foco gerador de risco sistêmico ao especularem com derivativos.
A grande ameaça é a complacência que parece estar tomando o governo, sobretudo na administração da política fiscal. Frente aos problemas muito mais graves de vários países, alguns do clube dos desenvolvidos, os nossos parecem facilmente releváveis. Com isso, deixamos de avançar na velocidade que poderíamos e nos arriscamos a ter problemas mais à frente.
Nossa dívida pública não é alta, sobretudo quando medida pelo conceito de dívida líquida. Entretanto, ela é extremamente cara. Mesmo com a taxa Selic em seu nadir atual de 8,75%, a taxa de juros implícita da dívida líquida chegou a 14,2% na média de 12 meses até janeiro deste ano. Como se supõe que a Selic esteja em vias de ser majorada, o custo da dívida pública poderá aumentar, e o peso dos juros continuará a ser muito grande no orçamento do setor público.
A substancial expansão dos gastos públicos correntes que vem ocorrendo, originalmente sob o pretexto de execução de política fiscal contracíclica, é prejudicial por pelo menos dois motivos. Ao aumentar o déficit público, acelera a acumulação de dívida pública, o que pode voltar a nos causar problemas no futuro. Além disso, os gastos públicos pressionam a demanda agregada, assim exigindo juros reais desnecessariamente altos para manter a inflação sob controle. Essa combinação equivocada de política econômica, envolvendo política fiscal expansionista e política monetária restritiva esteve presente durante quase todos os períodos de bonança internacional desde o início do Plano Real. Ela é extremamente custosa para o país, pois onera o orçamento público, e reduz o investimento, o crescimento e o emprego. A restrição ao aumento continuado dos gastos públicos correntes possibilitaria maior crescimento sob juros mais baixos com inflação sob controle.
Nesse aspecto, a continuidade que tem vigorado ao longo dos quatro mandatos presidenciais pós-Real é ruim. O clima atual de excessiva autoconfiança com nossos resultados econômicos recentes contribui para o conformismo com o status quo. Isso torna ainda mais importante a reflexão contida nos capítulos do livro sobre as causas de nossa privilegiada posição relativa atual. Oxalá nos ajude a não perdê-la.
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*Márcio G. P. Garcia, PhD por Stanford e professor do Departamento de Economia da PUC-Rio, escreve mensalmente às sextas-feiras
Fonte: Valor online, 12/03/2010

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