Apaixonados pelo saber
Hannah Arendt em seminário para professores de uma faculdade, em 1969:
a filósofa dizia que a função do mestre não é transmitir pensamentos,
mas "ensinar a pensar"
Em 1945, o jovem italiano Giorgio Careri se tornou aluno do Instituto de Física de Roma, dirigido por Edoardo Arnaldi, uma das figuras míticas da física na Itália. Cinquenta anos depois, já ele também um físico eminente, Careri saldava em público o meio século de "vida em comum" que tivera com seu mestre. "Ele me amava. Para um rapazinho, é importante sentir que alguém o ama", descreveu. Assinalou, ainda, que estava ligado a seu mestre não só por um dependência científica, mas por uma "intimidade afetiva". Resumia, assim, os complexos laços que prendem o discípulo a seu mestre.
A conquista do saber, assinala o historiador americano Peter Loewenberg, é muito mais que um processo intelectual. "Uma série de relações emocionais são vitais entre estudantes e professores." Stendhal definiu esse laço quando disse que "a paixão pela pesquisa contagia e se traduz em paixão pelo mestre". A palavra "paixão" está na base da construção do saber. Quanto mais um discípulo avança, mais entende a distância que o separa de seu mestre. Diz Stendhal ainda: "Apaixonar-se é exagerar as diferenças entre dois seres humanos".
Que outra palavra usar, senão "paixão", para definir a intensa e tensa relação que Georg Groddeck teve com seu mestre, Sigmund Freud? Depois de estar ao lado do mestre durante o Congresso de Psicanálise de Haia, de 1920, Groddeck escreveu a Freud dizendo: "Deambulei atrás do senhor, alterado, exatamente igual um apaixonado". As consequências da paixão, nesse caso, foram trágicas. Groddeck se sentiu mortalmente ferido quando Freud criticou seu famoso "Livro do Id". Mais traído ainda quando, apesar disso, o pai da psicanálise se apossou da expressão proposta por Groddeck para escrever "O Ego e o Id", um dos pilares da teoria psicanalítica.
Uma análise minuciosa das difíceis relações entre mestres e discípulos está no recém-lançado "Os Filhos de Sócrates", de Françoise Waquet. Sócrates é o modelo de uma linhagem de grandes mestres que se disseminou a partir do Renascimento. A leitura do inspirado livro de Françoise se torna particularmente preciosa em um momento, como o nosso, quando os laços não só entre mestres e discípulos, mas também entre pais e filhos, parecem fadados ao inevitável fracasso.
O mais importante no ensaio de Françoise - diretora do Centro Nacional de Pesquisas Científicas da França - é que, ao historiar a relação entre mestres e discípulos desde o século XVII até nosso século XXI, ela não adoça as dificuldades nem foge dos temas mais espinhosos. Enfrenta com clareza e vigor, por exemplo, a decisiva carga erótica que sustenta esse vínculo. É comum lermos relatos a respeito do "encantamento", do "deslumbramento", do "maravilhamento" que os discípulos sentem diante de seus mestres. Françoise prefere dar um nome mais direto a esse sentimento: ela o chama de "atração irresistível", assinalando os impulsos eróticos recalcados que lhe dão forma.
A esse respeito o escritor George Steiner, autor de inspiradores ensaios a respeito da função do mestre, afirmava que o laço entre o discípulo e seu mestre contém "um Eros feito de confiança recíproca e, em verdade, de amor". Daí não só o ciúme em relação aos colegas, mas também a atroz decepção quando o mestre amado e idealizado não corresponde às expectativas do aluno. A admiração, o reconhecimento, a confiança, o respeito, a deferência que ligam um discípulo ao mestre vêm sempre costurados por invisíveis laços emocionais que, em geral, nem o professor nem o aluno ousam nomear.
É preciso aqui, na verdade, separar a figura do mestre daquela do professor. Enquanto professor ensina e transmite conhecimentos, mostra Françoise, o mestre faz algo bem diferente: ele ajuda o discípulo a se tornar ele mesmo. "Meu mestre e meu autor", dizia Antonio Niccolini a respeito de Giuseppe Averani, seu professor favorito, resumindo essa importante diferença. Não é uma experiência fácil, nem para o mestre nem para o discípulo. Ainda hoje estamos cercados de discípulos que permanecem no estágio da imitação do mestre, "incluindo estilo, gestos, cacoetes, roupas e hábitos cotidianos". Antes de se tornar efetivamente eles mesmos - se é que chegam a conseguir isso -, jovens psicanalistas costumam, por exemplo, cultivar uma barba densa, fumar charutos e cobrir seu divã com um tapete, tudo na esperança tola de que a imitação assegure a transmissão do saber freudiano.
O que um mestre quer de seu discípulo, porém, é coisa bem diferente: não a imitação, mas a libertação. Hannah Arendt dizia que a função do mestre não é transmitir pensamentos, mas "ensinar a pensar". O mestre verdadeiro não lega seu sangue, mas sua "visão de mundo". Talvez nem a transmita: ele a oferece como uma fronteira que o discípulo deve vencer e ultrapassar. Um desafio, que não deixa de ser uma lição de coragem. Mesmo entre escritores e poetas, essa passagem entre a imitação e a criação é crucial: Harold Bloom dela tratou em seu famoso ensaio "A Angústia da Influência".
Françoise Waquet entende que a tentação da imitação se torna mais perigosa porque a relação entre mestre e discípulo é, quase sempre, entre homens, isto é, entre semelhantes. "É uma filiação patrilinear. Mais do que isso: não há mãe", ela descreve. As secretas pulsões homossexuais que a sustentam, algumas vezes, desembocam em relações homoeróticas reais - como descreve Stefan Zweig em seu romance "A Confusão dos Sentimentos". E, assim como o filho, para crescer, precisa "matar o pai", também o discípulo não chega a si se não "assassinar" seu mestre. Admite Françoise: "No mundo do saber tampouco é fácil livrar-se da filiação monstruosa".
De qualquer forma, ela assinala, discípulos cultivam sempre uma "dependência proveitosa" de seu mestre. A relação entre mestre e discípulo toma, em geral, um caráter "familiar". O mestre toma a posição do chefe de família, a que todos devem não apenas amar, mas se submeter. Mas, ao contrário dos laços de família, essa é uma relação eletiva - o discípulo não traz a marca de seu mestre no sangue, mas na escolha. É um ato de liberdade. A relação, na verdade, se passa muito além dos livros: o que se transmite não é um saber, mas um estilo de pensar. O verdadeiro mestre não ensina a acreditar, ensina a duvidar. Françoise nos lembra, a propósito, as palavras de Harriet Zuckerman: um mestre verdadeiro ensina "que a simples lógica não governa o mundo, que os raciocínios excessivamente simples ocultam alguma falha e que um experimento raramente é crucial". Em vez de nos acomodar em seu colo, o mestre nos arranca o tapete de sob os pés.
O mestre, é verdade, também tira vantagens substanciais desse vínculo especial. A mais importante delas: "sobrevive" no discípulo, que trata, e deixa, como um herdeiro. Quando se aproximam, mestre e discípulo se inscrevem, juntos, em uma tradição, na qual o mestre simboliza o passado e o discípulo, o futuro. Entre esses dois tempos, o ferver do presente, que é sempre marcado pela paixão.
Como em qualquer relação de amor, também a relação entre mestre e discípulo, mostra Françoise, inclui o terror da traição. O mundo exterior, com sua instabilidade e suas rupturas, está sempre a ameaçar o vínculo amoroso - exatamente como acontece com dois amantes. O elogio pode, facilmente, se reverter em difamação. A fidelidade, em abandono. Como em todo vínculo apaixonado, mestre e discípulo vivem, todo o tempo, sob o signo do medo. A paixão, muitas vezes, se transforma em perseguição.
A leitura do ensaio de Françoise Waquet, por fim, nos ajuda a pensar as relações vazias e distantes que predominam, hoje, não só entre mestres e discípulos, como entre pais e filhos. Talvez tanto aos mestres de hoje como aos pais falte, muitas vezes, a coragem de se apaixonar e se comprometer - isto é, de se envolver e correr riscos. Muitos alunos e filhos preferem, do mesmo modo, se refugiar no universo fantasioso das lan houses e na anestesia das drogas legais e ilegais a enfrentar os difíceis laços de um vínculo verdadeiro.
Pensar na história dos grandes mestres talvez nos ajude, um pouco, a refletir sobre o deserto de que, tantas vezes, nos sentimos prisioneiros. "Só posteriormente se sabe quem foi o mestre", diz Françoise. A relação entre mestre e discípulo não é clara nem se submete a modelos. Ela não se dá por transmissão, mas por "impregnação". Enquanto acontece, tem - como na paixão amorosa - a aparência de uma convulsão. Só muito depois mostra sua grandeza.
"Os Filhos de Sócrates - Filiação Intelectual e Transmissão do Saber do Século XVII ao XXI". - Françoise Waquet. Trad.: Marcelo Rouanet.
Difel, 322 págs., R$ 39,00
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Por José Castello, para o Valor, do RioFonte: Valor Econômico online, 12/03/2010
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