sábado, 20 de março de 2010

Livro de George Orwell fala do trabalho nas minas de carvão

Alvaro Costa e Silva

RIO - A caminho de Wigan Pier, George Orwell dá uma no cravo, outra na ferradura; morde e assopra. E paradoxalmente jamais fica em cima do muro para apreciar o que está ao redor – uma paisagem feia e desumana, o trabalho nas minas de carvão de Lancashire e Yorkshire no período entre as duas grandes guerras, de maciço desemprego. O resultado é um oxímoro: reportagem com opinião.

Em janeiro de 1936 o editor Victor Gollancz – o mesmo que publicara três anos antes Na pior em Paris e Londres, estreia literária não só do autor como também do nom de plume George Orwell (na pia batismal Eric Arthur Blair) – fez a encomenda ao escritor, pedindo-lhe que contribuísse para a série Left Book Club (Clube do Livro de Esquerda).

O resultado, nas palavras do próprio editor, é um texto “altamente provocativo”. Tanto que o socialista Gollancz queria publicar apenas a primeira parte do livro, a menos polêmica. Com Orwell já lutando na guerra civil da Espanha – experiência que lhe rendeu outro livro de não-ficção, Homenagem à Catalunha – a mulher dele, Ellen, teve de entrar em cena para conseguir a publicação integral, em 1937.

A inspiração de Orwell está no livro O povo do abismo, no qual Jack London descreveu o submundo dos excluídos e miseráveis da Londres do começo do século 20. É um dos primeiros exemplares de uma futura moda: a grande reportagem escrita e vivida na primeira pessoa, existencial e testemunhal. Prática, com o tempo, vulgarizada no jornalismo e tomada de assalto por qualquer tipo de picareta, explorador de sensacionalismos, fazedor de abobrinhas. Qualquer semelhança com a transformação do Big Brother orwelliano no show do Pedro Bial não é mera coincidência.

No primeiro capítulo de A caminho de Wigan Píer, Orwell é visto como hóspede de uma pensão que ao mesmo tempo funcionava como açougue de tripas. O quarto dele “fedia como uma gaiola de gambá”. No café da manhã recebia um pão com manteiga entregue pelo proprietário “fatia por fatia, cada uma firmemente presa a seu grande e imundo polegar preto”. Quando viu um penico cheio embaixo da mesa o ex-aluno do Eton College (a melhor escola pública do Reino Unido, que lá é paga, ou seja, um lugar destinado à elite) picou a mula.

O tempo passado na pensão era apenas a preliminar. A partir do segundo capítulo o bicho pega. Com sua descrição objetiva, o autor nos leva para dentro das minas e nos põe na pele dos trabalhadores cobertos de pó. Sentimos o calor que eles sentiam e sofremos o esforço deles, tendo de andar quilômetros abaixados entre paredes de pouco mais de um metro – a altura do veio de carvão. Orwell desceu lá, e quando pensamos que era um homem alto (1, 86 metro) ficamos ainda mais impressionados com sua coragem e disposição para o trabalho.

Escreve ele: “Falamos desse negócio terrível de ter de andar abaixado no trajeto de ida e volta, o que para uma pessoa normal já é uma tarefa duríssima, e no entanto ele não é considerado parte do trabalho do mineiro, em absoluto; é apenas um extra, tal como a viagem diária de metrô de um funcionário da City de Londres. O mineiro vai e vem dessa maneira, e entre a vida e a volta há sete horas e meia de trabalho bruto, feroz”.

Detalhe: os caras trabalhavam praticamente nus devido ao calor sufocante: usavam apenas uma cueca de tecido fino, tamancos e joelheiras. “Quase todos têm um corpo absolutamente nobre: ombros largos que vão se afinando até a cintura delgada e flexível, nádegas pequenas e bem pronunciadas, e coxas rijas, sem excesso de carne em parte alguma”, descreve Orwell.

Ao contrário da primeira, a segunda parte, a tal que o editor Victor Gollancz queria limar, não é descritiva, e sim argumentativa. Nela, George Orwell – que até os 14 anos, criado numa família de posses, considerava-se um “esnobezinho odioso” – faz uma dura crítica do socialismo inglês e da classe média cheia de boas intenções.

Seus argumentos até hoje incomodam: “E aqui chegamos ao verdadeiro segredo das distinções de classe no Ocidente – a verdadeira razão pela qual um europeu de educação burguesa, mesmo que se considere comunista, não consegue, sem muito esforço, pensar em um operário como seu igual. Resume-se em quatro palavras terríveis, que hoje as pessoas têm escrúpulos de dizer, mas que eram ditas com muita liberdade em minha infância: Essas palavras são: a classe baixa fede. Era o que nos ensinavam – a classe baixa fede. E aqui, obviamente, estamos diante de uma barreira intransponível. Pois quando se trata de gostar ou não gostar, nenhum sentimento é tão fundamental como um sentimento físico. O ódio racial, o ódio religioso, as diferenças de educação, temperamento, intelecto, até as diferenças nos códigos morais – tudo pode ser superado, mas não a repugnância física”.

Dito isto, fica a aviso: o livro é recomendável a leitores que tenham ou não olfato sensível.
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Fonte: Jornal do Brasil online, 19/03/2010

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