domingo, 21 de março de 2010

Espalhando o vírus da paz

JAIME PINSKY*

Foi interessante a recente visita feita pelo presidente Lula ao Oriente Médio, onde se apresentou como candidato a mediador da situação naquele canto do planeta. A mídia logo que se posicionou sobre o que aconteceu lá, como sempre, a partir de sua posição sobre a sucessão presidencial. Provavelmente isso aconteceu também com os próprios assessores do nosso primeiro mandatário. Ora, santificar ou demonizar protagonistas não leva a nada, assim como soa demagógico homenagear Arafat e recusar-se a colocar flores no jornalista vienense Theodor Herzl, considerado o inspirador do Estado judeu.

Há mocinhos e bandidos de todos os lados, essa é a verdade. Ainda há os que apresentam os árabes, todos, como agressivos e belicistas, retrógrados e primários. Primário é o argumento. Somos todos beneficiários da cultura árabe, que está presente em nossa vida, mesmo que filtrada pelo mundo ibérico. O que não se pode é atribuir sempre ao “outro” a culpa da decadência cultural e econômica do mundo árabe e islâmico, sujeito a interferência da religião no Estado, a uma depreciação da mulher, a pouca ou nenhuma liberdade de expressão. Li, há pouco, um artigo que dizia que a culpa de tudo de ruim que aconteceu por lá era dos “bárbaros” mongóis, depois dos turcos, ingleses, franceses, russos e agora americanos. Menos dos povos árabes, é claro...

Povos? Sim, pois a ideia de uma nação árabe única, hoje, é de uma ingenuidade comovente e serve a vários interesses. Antes de tudo, é introjeção de uma visão imperialista de mundo. Nos Estados Unidos somos “latino-americanos” e que confundir La Paz com Rio de Janeiro é prática corrente até entre acadêmicos americanos. Da mesma forma é concebida suposta unidade árabe nas salas do Pentágono e nas emissoras de TV americanas.

A bandeira da unidade árabe, sob a sombra de uma religião única, na guarida de uma única língua e com o respaldo de um passado glorioso, tem tido a função de escamotear conflitos internos e justificar o expansionismo de ditadores de plantão. O fato é que nem todos os árabes são muçulmanos e nem todos os muçulmanos são árabes. Por sinal, as maiores nações muçulmanas não são árabes. Por que então imaginar uma unidade que não existe? Para poder eleger um inimigo comum (o “inimigo objetivo” como dizia Sartre) para estimular o fervor patriótico, esmagar minorias e buscar entre os vizinhos o “espaço vital”, estratégia política recorrente que Hitler utilizou há não muito tempo.

O “inimigo objetivo” das nações árabes é Israel. Os “descamisados e descalços” das ricas nações árabes foram levados a crer, durante muitos anos que a destruição daquilo que chamam de “entidade sionista” e a “libertação” de Jerusalém encheriam seus pratos de comida, eliminariam o tracoma e provocaria sua redenção. Enquanto isso, as contas dos emires e dos ditadores de plantão engordam.

Os palestinos também sentiram na própria carne e ação de seus “irmãos”. Vistos como parentes maltrapilhos e malcheirosos dos “irmãos” árabes, eles tentam desfazer-se dos palestinos oferecendo-lhes uma peça usada de roupa ou um pedaço de pão (ou, melhor ainda, algumas armas e muitos gritos de guerra). Quando insistem em atravessar os portões da mansão do parente rico, são massacrados, por inconvenientes, como haverá de se lembrar o leitor com o que aconteceu com os palestinos no Líbano ou no Setembro Negro na Jordânia.

O fato é que a maioria dos Estados árabes instituídos não tem o menor interesse em resolver o problema palestino: ficariam sem o “inimigo objetivo”. Por seu lado, Israel mudou muito, desde a sua fundação. E nem sempre para melhor. Criado por inspiração de um pensamento sionista socialista laico, estruturado com base no kibutz, colônia coletiva estruturada à base da ausência total de propriedade privada (não só dos meios de produção), Israel tem se curvado às influências chauvinistas, de um lado; e de extremismo religioso, de outro.

Ambas conduzem à rejeição ao “outro”, seja ele o laico israelense, seja o palestino. Ausência de casamento civil (!), de transporte público no sábado em várias cidades, confusão entre origem biológica e status civil são características preocupantes em um Estado que se apresenta como democrático. É verdade que o prolongado conflito com os palestinos aumenta a coesão interna e rotula amigos críticos de inimigos, mas cabe aos israelenses encontrar uma solução para essas contradições. Gostaria que imaginários vírus desinformados da paz resolvessem os problemas de lá. Mas confesso meu ceticismo.
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*Historiador e editor

www.jaimepinsky.com.br
Fonte: Correio Braziliense online, 21/03/2010

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