terça-feira, 2 de março de 2010

Floripa

RUBEM ALVES*


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Gosto do que a cidade me faz lembrar.
Em Floripa, eu me sinto em casa.
Melhor dizendo:
volto para casa

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SE EU PUDESSE , me mudaria para Floripa. Gosto dela por ela mesma, pelo lugar, pelo mar azul, pelas águas mansas, pelo cheiro de maresia, pelos barcos a vela, pelos golfinhos... Sempre me lembro de uma manhã de felicidade boba -felicidade boba é felicidade que acontece de repente, sem preparo, com pouca coisa, em momentos de distração. Eu, mulher e filhos pequenos éramos o mundo (em Floripa, a gente se esquece do mundo), assentados numa baía rasa de água morna catando berbigões, moluscos deliciosos quando feitos com arroz...

Gosto dela mesma, mas gosto também daquilo que ela me faz lembrar. Em Floripa, eu me sinto em casa. Melhor dizendo: volto para casa.

Eu nasci em Minas, lugar onde parece que não há mar. O problema é que os visitantes, ainda não iniciados nos mistérios de Minas, procuram o mar no lugar errado. Tomei muito banho de mar em Minas, especialmente em noite de lua cheia.

Tive uma casa lá no alto de uma montanha, dentro da cratera de um vulcão adormecido há 500 milhões de anos.

Nietzsche escreveu em algum lugar que o segredo da criatividade ou, quem sabe, da juventude é construir uma casa na base de um vulcão. Para a gente nunca dormir descansado. Viver perigosamente. Sempre é possível que o vulcão acorde do seu sono. Agora, com a fúria da terra que acordou do seu sono com terremotos e tsunamis, me pergunto: e se o vulcão adormecido acordar?

Mandei esculpir numa prancha de madeira de lei as instruções para aqueles que querem ver o mar de Minas: "O mar de Minas não é no mar. O mar de Minas é no céu, prô mundo olhar prá cima e navegar, sem nunca ter um porto prá chegar". Peço perdão ao poeta cujo nome esqueci. Lá, eu tomei muito banho de mar olhando pro céu. Eu olhava para cima, via as nuvens, navios que o vento tocava.

Aí sai das montanhas e fui para o mar. Mudei-me para o Rio. O mar é um espanto. Meu filho de quatro anos, depois de molhar os pés nas águas do mar pela primeira vez, me perguntou ao voltar para a casa: "O que é que o mar faz quando a gente vai dormir?"

O Rio era bom porque ele era mar e montanha ao mesmo tempo. E eu fiquei assim dividido, e até escrevi uma história para grandes e pequenos com o título de "A Selva e o Mar".

Mas agora o Rio ficou um lugar de tiros e medos. Tranquilidade não se encontra em nenhum lugar.

Por isso, gosto de Floripa, porque lá eu me lembro da minha infância livre no Rio, embora os cariocas nunca tivessem perdoado o meu sotaque de mineiro. Ir a Floripa é viajar em busca do tempo perdido.

Mas, para eu me mudar para Floripa, é preciso que ela mude de nome. Porque Floripa não é o nome dela. É um apelido de amor, que poderia ser para a mulher amada.

O nome oficial dela, escrito nos documentos e envelopes de cartas, é Florianópolis, cidade do Floriano. Floriano era nome de militar, apelidado de "marechal de ferro", um estranho nascido em Ipioca, distrito de Maceió, Alagoas. Não foi à toa que lhe deram esse apelido. Seus ferros furaram as paredes de um forte onde os inimigos da República eram executados por sua ordem. Pelo menos, foi isso que o guia me contou. E, olhando para a parede esburacada pelas balas, lembrei-me da tela terrível de Goya: "O Fuzilamento". E a cidade, que tinha outro nome, foi rebatizada com o nome de Floriano para celebrar uma vitória militar do férreo marechal.

Quero me mudar para a dita cidade. Mas não me dou bem com o seu nome. No dia em que a capital passar a ser oficialmente chamada de Floripa, cidade das flores, então eu mudo...
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*Educador. Teólogo. Escritor.
Fonte: Folha online, 02/03/2010

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